Passou a
correr Marieta, a chuva começava a cair. Molhou os sapatos numa poça de água à
beira do passeio. Molhou os peúgos brancos que lhe chegavam ao joelho. Não
molhou a saia, Marietta. Disse-lhe adeus através dos vidros fechados. Marieta
sorriu e agitou o braço. Marieta ainda corria e desapareceu na esquina da rua.
Pedalava lento o Pedrito saboreando a chuva miudinha que lhe salpicava as
melenas. Sentiu água nas grandes pestanas e sorriu a pensar que se Idalisa ali
estivesse lhe beijaria as pálpebras, saboreando o salobro da água da chuva nas
suas pestanas reviradas. Idalisa não estava nem passou por ali. D. Leopoldina
carregava dois sacos, um em cada mão. Em passo lento, curvada nos seus quase
oitenta anos, não lhe incomodava a cacimba. Nos ombros o casaco de malha já
pesava alguns gramas mais, mas isso era o menos. Tomara que Pedrito ou Idalisa por
ela passassem e a ajudassem na carga. Pedrito já tinha passado. Idalisa não
iria passar. Passou um cão branco de pelo encaracolado, pequeno e irrequieto,
sem o dono. Passou um dono depois com calça de golfe, quadrados largos, de
tecido escocês, usava um boné, fumava cachimbo, sem o cão. Cão e dono se
encontrariam já depois da curva da rua que se fazia para a esquerda. Ele
levantaria a patita de trás e mijaria contra um candeeiro. Ou contra uma
árvore. O cão. À direita tinha uma esquina por onde se tinha deixado de ver
Marieta. À esquerda tinha uma curva por onde se tinha deixado de ver o cão e o
dono do cão. Antes da curva o dono voltou-se e olhou para cima. Estendeu o
braço e virou a mão, primeiro a palma para cima depois virou-a de novo e as
costas da mão ficaram viradas para as nuvens. Tirou o chapéu e coçou a cabeça. Assobiou
duas vezes em silvos estridentes. O cão branco, de encaracolado pelo, não se
lhe chegou. Limpou a água, que lhe tinha molhado as costas da mão, à perna da
calça de lã escocesa, quadrados verde e pretos desenhados a linhas amarelas.
Não o conhecia por isso não lhe acenou. Mas acenou a D. Leopoldina, que de curva
nas costas e olhos no chão não lhe reparou no gesto. Não retribuiu o aceno D.
Leopoldina, nem o Camilo da lambreta que hoje vinha a pé. Às quartas-feiras
folga o Camilo da lambreta que trabalha na pastelaria do senhor Francisco
Sebastião. O Camilo da lambreta vai e volta do emprego sempre de lambreta. Mora
a oitenta metros da pastelaria e diz que é porque não quer que a lambreta se
não habitue a não trabalhar. Também lhe chamam Camilo padeiro mas ele afina
porque diz não ser padeiro, mas sim pasteleiro. Talvez por isso, para que não
seja incomodado pelo caminho, se desloca de lambreta. Hoje vinha a pé porque
era quarta-feira. Quando alguém, às quartas-feiras se lhe dirige, clamando-o como
Camilo padeiro, ele não responde. À quarta-feira ele está totalmente de folga.
Não é nem padeiro, nem pasteleiro, nem tem de se justificar. Passou um casal de
namorados, já a chuva tinha parado. Ainda assim, enquanto ele segurava um guarda-chuva
de cor grená, aberto por cima das suas cabeças, mas não necessário, pois já não
chovia, ela abraçava-o pela cintura para que se não afastasse de modo que o
guarda-chuva cumprisse a sua função quando fosse caso de ter função para cumprir.
E como não era de facto necessário, aproveitaram para se beijarem. O guarda-chuva
tapou-lhes a visão da vidraça da janela, onde entre vidros, que agora já podiam
ser abertos, ela os observava e os cumprimentava. Por isso não lhes acenou e
por isso eles não lhe acenaram. Abriu a janela. Chegou-se à sacada. Um gato
miava na varanda da vizinha. A vizinha não estava, o gato estava. Só. A janela
fechada, o gato na varanda. O gato queria saltar e a altura, tal como qualquer
desmancha-prazeres a desmotivá-lo. A água da chuva, que lhe caíra no pelo,
desconfortava-o. Ela teve pena do gato e mandou-lhe uma carícia verbal.
Chamou-lhe Tareco e se assim lhe chamou é porque era Tareco. Para ela todos os
gatos são Tarecos, todos os cães são Bobis. Um Bobi de pelo encaracolado branco
regressava agora vindo da curva da estrada e atrás dele, também com as pontas
dos cabelos encaracolados e ruivos, o dono com um cachimbo apagado no canto da
boca, vestindo calças escocesas e assobiando Flower of Scotland. Um Bife. Para ela todos os estrangeiros são
Bifes. Todos os cães são Bobis e todos os gatos, Tarecos. Passou um
amola-tesouras com calças de bombazina e uma flauta de beiço. Reparava guarda-chuvas,
pano e varetas e afiava facas. Punha rebites em tachos de alumínio. Ela recuou
30 anos. Há trinta anos, da mesma janela via a peixeira passar com a canastra à
cabeça, apregoando sardinhas, carapaus e chaputas frescas. Via passar um chinês
com uma corrente de couro ao pescoço onde se suspendia um suporte de gravatas.
O chinês apregoava gravatas substituindo o erre pelo ele. Achava glaça ouvir o chinês. O ardina apregoava
o Século pela manhã e voltava à tarde para vender o Lisboa e o Popular.
Vendiam-se figos da capa-rota e passava todas as tardes o senhor Gervásio que
já faleceu, para visitar a mãezinha dele que também já morreu. Hoje lembrou-se
do senhor Gervásio quando viu a neta dele, a Henriqueta. Coitadinha, caiu na
vida, mas é tão simpática. Disse-lhe adeus, como lhe diz todas as manhãs, bem
junto ao meio-dia quando sai para tomar o pequeno almoço. De manhã não se
aperalta, mas à tardinha sai sempre de minissaia e botas altas. Seja verão,
seja inverno. Parara de chover e o passeio estava escorregadio. Passou o 42 que
parou na paragem em frente ao consultório do dentista. Entraram duas pessoas
que ela não reconheceu e saiu a D. Evita da veterinária. Pôs mal o pé,
espalhou-se ao comprido. Ficou toda molhada e um pouco enlameada. Benfeita,
pois tinha sido por culpa dela que passou uma tarde da semana passada a chorar.
Não lhe salvou o Bobi, coitadinho, o seu melhor amigo.
D. Micá
pediu a Efigénia que lhe ajudasse a animar o serão. Efigénia não era uma pessoa
alegre. Ainda era relativamente jovem, não tinha sequer completado os
cinquenta. Era solteirona e fazia garbo nisso. Dizia que não queria sentir a
trela de um dono. Se nem o Bobi usou trela… Efigénia sempre disse que não sabia
contar histórias que não tinha o dom de D. Micá, que a sua vida não daria um
filme. «Ó, mulher, conte o que vê quando vai à janela», disse em voz alta o meu
amigo Eduardo Aragão, de quem um dia vos falarei. E Efigénia contou.
és brilhante...beijos meus :)
ResponderEliminarBrilhante é a poetisa maravilha.
EliminarTe retribuo com amizade.
estórias que se entrelaçam...
ResponderEliminarinteressante.
um beijo
E vidas que se cruza.
EliminarUm beijo.
Ai, Constantino, com tantas passagens para cá e pra lá de tanta gente que passa pla frente da janela da Efigénia, isso dava para faser uma longa metragem.
ResponderEliminarFaz muito bem o Camilo em dar gás à lambreta. Oitenta metros para lá mais oitenta para cá, já é uma canseira.
Quer-me cá parecer que vou gostar mais das histórias da Efigénia, é mais alegre e não é má língua como a emproada da D. Micá!
Tens que lhe perguntar porque razão a Henriqueta, coitadinha, caiu na vida. Então o avô não soube tomar conta da neta? Tomara que para o próximo episódio a vidraça não esteja tão embaciada....muito eu gostava de ver esse bife no pão, de calças escocesas, cachimbo apagado e a assbiar essa tal "Flower of Scotland"...
Ai, quem me dera que a minha rua fosse assim movimentada e eu tivesse tempo para estar à janela, havias de ver as estórias que eu contava, assim...nunca tenho nada de interesse para contar.
Dá lá um beijo ao pessoal e mando outro para ti.
A D. Micá é uma boa senhora. Um dia destes apresento-ta.
EliminarBeijocas.
Uma rua muito movimentada quer chova ou não.
ResponderEliminarQue contador de estórias! : )
Apesar de tudo, um lugar pacato. :)
EliminarUm autêntico corropio por entre os pingos de chuva de gente que passa que tem sempre um pormenor ou outro que até parece banal, mas que através da escrita do Vítor ganham uma riqueza invulgar!
ResponderEliminarPoderia ter tirado uma fotografia, mas preferi descrevê-la e refinar-lhe algumas cores.
EliminarSabe o que prefiro no que leio? Histórias e personagens. Gosto das suas. :)
ResponderEliminarDesta vez, Vitor, entraram em cena todos os habitantes do quarteirão...
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