As portas da sala de jantar de D. Micá raramente
eram franqueadas aos seus convidados. O salão, o varandim, a copa de apoio e os
WCs socias eram mais do que suficientes para se passarem serões agradáveis. Ali
se tocava piano, ali se tocavam guitarras, ali, principalmente, se contavam
histórias. Uma vez por outra, se falava de moda e, com menos frequência, se
falava da vida alheia. A não ser que isso viesse a propósito. Quanto a
religião, futebol e política eram quase temas tabú embora não fossem proibidos.
Só que havia sempre alguém que, quando a conversa decaía para esses temas, se
propunha a contar uma história e todos assumiam que os serões na D. Micá eram
para isso mesmo. Mas naquela noite foi diferente.
A comprida mesa estava posta e o lugar de topo
reservado para D. Ermelinda. À sua direita, a cadeira pertencia a sua filha D.
Micá e os restantes lugares seriam ocupados por um protocolo muito pouco
definido, mas que todos assumiam que os lugares mais próximos das anfitriãs
seriam ocupados pelos amigos mais antigos. Eu, que por deferência de D.
Ermelinda e por insistência de D. Micá, me viria a sentar no topo oposto da
mesa, perdia assim a oportunidade de privar mais de perto com a mãe e a filha
mas, em contrapartida, ficava num lugar privilegiado para tomar nota de todo e
qualquer detalhe. E é por isso que vos digo que a mesa de consoada de D.
Ermelinda, fazia juz à atual presidente, por inerência, da Fundação para a
divulgação e incentivo ao consumo do leite magro com chocolate ou, abreviando,
da FPADEIACDLMCC.
O serviço de copos era completo e estava quase completo
na mesa. Só para que conste, o cristal era Atlantis de 24% de Pb3O4,
isto é, de extrema pureza, constituído por um copo para água, dois copos para
vinho, branco e tinto e ainda uma flute
para os apreciadores de champanhe à refeição. Apenas os copos de licor se
reservaram para a sobremesa. Um lindo serviço Vista Alegre, com prato de
entrada, um prato de sopa e dois pratos de prato principal, pois, na noite da
consoada, havia não só o tradicional bacalhau com couves, ovo cozido e batata, mas
também o mais suculento peru assado em forno de lenha, que acabara de chegar
diretamente da Arruda. Eram aliás dois perus e não apenas um, dado o número de
convidados que se sentariam à mesa. No salão, uma grande mesa de vidro, ali
colocada apenas para a época, estava recheada das mais apetitosas vitualhas,
onde não faltavam as filhós, os sonhos e as azevias, as rabanadas, a aletria
doce por cortesia ao Armindo e à Tansinha que são do Porto, os figos secos e as
nozes, as amêndoas torradas e pinhões descascados, as frutas cristalizadas e as
avelãs, a lampreia de ovos e o tronco de chocolate, ameixas secas, damascos,
sultanas doiradas, passas de uvas sem grainha, já para não falar de uma taça
com mousse de chocolate e um cesto de frutas frescas com líchias, romãs, ananás
dos Açores, mamão do Brasil, mangas importadas via aérea, laranja do Algarve,
uvas chilenas e uma enorme taça com cerejas compradas numa frutaria da baixa
que as importa diretamente da África do Sul, especialmente para esta época
festiva. Infelizmente, o Armindo não chegaria a tempo para jantar, pois uma tão
arreliadora como inesperada avaria no seu novo automóvel, fê-lo ser anunciado
pelo segurança Alfredo já passava das 23:00h. Ainda assim, na copa, a sempre
diligente Estela, uma empregada que veio servir para Lisboa no século passado e
que já passada dos cinquenta anos foi cooptada por D. Ermelinda, preparou-lhe
uma sandes de peito de peru com maionese e uma folha de alface e um copo de
vinho tinto. Depois juntou-se ao grupo para comer uma broa castelar já que os
diabetes não lhe permitiam abusos de qualidade nenhuma.
Vieram o Pedro Rebocho e a Marta Caracinha, como
não podia deixar de ser, ela de totós e ele com mais gel do que cabelo, mas
ambos, desta vez, impecáveis no traje, se bem que eu não tenha gostado muito da
bolsa da Marta. Havia ali qualquer coisa que não condizia, mas tenho de olhar
com mais atenção para as fotos para o poder detalhar. Foram também convidadas a
Geninha e a Luisinha Monteiro, que por pouco não virava, esta, uma garrafa de
champanhe na antecâmara do jantar, enquanto a primeira, para não se ficar atrás,
ia bebendo shots de vodka. Pelo que se me foi dado observar a Geninha já estava
bêbada antes de ser servido o bacalhau, mas se, mesmo atendendo a este
comportamento desviante e habitual da Geninha, a D. Micá a continua a convidar,
é lá com ela que eu não tenho nada a ver com isso. O Fagundes também veio,
trazia uma bonita gravata Hermès e um blaser
muito fino comprado na Sacoor, azul-escuro com botões dourados. Segundo consta,
depois do par de cornos que Graziela lhe tinha pespegado com o Faria, o
professor do ensino secundário, andou um bocado abalado e um tanto ou quanto à
deriva mas, parece-me (e também consta aqui nos bastidores dos soirées da D.
Micá), que namora uma senhora fina, mais velha que ele uns catorze anos, viúva,
com uma boa renda mensal, mas que, talvez por estratégia, ainda não contou nada
aos seus parceiros das quintas-feiras à noite. Mas a D. Micá, inevitavelmente
já conhece a história toda. Um dia contar-nos-á. O Pedro Pinto Aragão, primo do
Eduardo, por se encontrar a usufruir dos quarenta graus do Rio de Janeiro
mandou uma mensagem de Boas Festas para todos e claro está com os desejos de um
Feliz e Santo Natal. O Justino Carlos veio com a mulher, ela toda espampanante,
com uma gargantilha incrustada de brilhantes e uma pulseira a fazer pandan e o Justino com um alfinete de
gravata, em ouro de lei de 24 quilates. No aperitivo, enquanto eu espetava um
palito num camarão com alho e ervas provençais, segredou-me, «isto foi o
corno», que era como ele designava o amante da mulher, «que pagou» e apontou
para o alfinete. Jantaram também connosco o Ricardo e o Adriano, uma vez que a
Rafaela iria consoar com os pais dela e que os pais do Ricardo estavam emigrados
na Suíça. Já o Adriano, por questões relacionadas com a crise no seu emprego,
não pode ir seque à terra e por isso também se juntou a nós. Felisberto Passinhas
e Sebastião Jerónimo fizeram a noite de consoada com as respetivas famílias mas
o Ezequiel Canário e o Julião Guedes vieram. este último muito mais atinado do
que é habitual pois passou pela Luisinha Monteiro e não lhe apalpou o rabo. Com
certeza que era por ser noite de Natal. Foi bonito ver Efigénia chegar com
Henriqueta. Apesar da condição de prostituta da Henriqueta, D. Micá gostava
dela. Só lhe pediu para desta vez não vir de minissaia cor-de-rosa por cima das
leggings brancas, nem de casaquinha
de pelúcia roxa, ao que Henriqueta deu uma gargalhada e segredou-lhe «Ó filha
eu vou ser a gaja mais elegante da tua mesa de consoada». E só não o foi porque
D. Micá nunca deixava os seus créditos por mãos alheias, ou seja, quero dizer
exatamente o contrário, pois foi pelas mãos de Tenente que ela estava deslumbrante
que nem uma princesa. E com um decote que, olalá,
nem vos conto.
Pois eram mais os convidados, os vinte e quatro
lugares estavam ocupados, até o otorrinolaringologista Luís Lopes Lacerda, o
casal Carlota e Paciência Monteiro, o dr. Fabrício Páscoa e, claro está, o meu
amigo Eduardo Aragão estiveram na nossa consoada. Hoje, Eduardo entrou
discretamente, vinha acompanhado por uma senhora casada, sei-o eu porque a
conheço de outras andanças e, quiçá, sabê-lo-á D. Micá, que ele apresentou como
menina Lucinda, obrigando-me a disfarçadamente pigarrear e receber um olhar cúmplice
da “menina”, cujo marido é oficial da marinha mercante e estaria nesta noite a
consoar com uma turbina a vapor ou um motor a fuel . Trazia com ele um saco de grandes dimensões e, tendo
segredado qualquer coisa a Estela, entregou-lhe o saco, sendo que, depois, mais
descontraído serviu-se de um Chivas Regal de 18 anos, olhou para D. Micá e
brindou à FPADEIACDLMCC.
Já vinte e três se tinham sentado à mesa, quando
olhando uns para os outros, inquirimos a menina Lucinda sobre o paradeiro de
Eduardo. Ela, corou, colocou a mão à frente dos lábios e sorriu. Eis se não
quando, vindo do WC contíguo, logo atrás de Estela, que saía da copa com uma
bandeja cheia de postas de bacalhau asa branca do Atlântico Nordeste e
ornamentada com ovos cozidos, surge o nosso Eduardo Aragão, em traje de Pai
Natal. Todos riram, só eu não achei qualquer piada porque uma rocambolesca
história, com traje similar, em outro Natal fê-lo consoar nos calabouços da
polícia, ainda por cima, podre de bêbado. Mas da vida de Eduardo Aragão falar-vos-ei
quando for oportuno, que hoje é noite de Natal. E pode também trazer o peru,
amiga Estela.
kkkkk
ResponderEliminarimpossível não dar muitas risadas, Vitor
com esses'convidados' a mesa de D.Micá está completa não? fico daqui a imaginar as cenas do próximo capítulo,já que estivestes num posto de destaque e há toda uma diversidade de'egos'_ e em várias condições e restrições... rs
Ô Vitor, gosto muito das trapalhadas dessa sua turma!! rs
abraços e bom 2013
Mais uma história deliciosa... Trouxe-me à memória as histórias da minha avó quando eu passava o natal na "terra"...
ResponderEliminarConte, conte mais!
ResponderEliminarOs detalhes são deliciosos!
Outra estória bem contada.
ResponderEliminarFeliz Ano Novo, Vitor. Tudo de bom para si.
Delirei como de costume com mais um relato detalhado de um repasto natalício, em que o Vítor de olhar atento e escrita primorosa, me faz sentir como se estivesse nesse requintado salão. Aguardo ansiosa as cens dos próximos capítulos.
ResponderEliminarImagino que um dia destes saírá aqui a descrição pormenorixada do reveillon :)
Feliz 2013!
Abraço
Amigo Constantino.
ResponderEliminarA poucos minutos de soarem as doze badaladas, não na Torre de S. Dinis, mas aí no relógio de casa, apresso-me a desejar-vos uma Boas entradas no Novo Ano.
Feliz 2013, Amigo. Felicidades e muita inspiração para novos lançamentos dos teus contos brilhantes.
Beijinhos.:)