Quando o meu amigo Eduardo Aragão ouve falar em
chá começa a ficar em transe. Nem por brincadeira, quando ele saboreia um puro
malte, se lhe pode referir ao chá da Escócia e se, nalguma tertúlia, alguém se
refresca na mousse de uma cerveja bem tirada, nenhum infeliz tente sequer
insinuar a expressão plebeia do “chá” de Vialonga. Muitas das pessoas que
frequentam os serões de D. Micá, a bem dizer a maioria, não conhece Eduardo
Aragão tão bem como eu o conheço pelo que, a história de hoje foi contada por
mim próprio e não, como habitualmente, pela nossa incontornável D. Micá. A
propósito deste meu conhecimento profundo de Eduardo Aragão, talvez um dia, se
se proporcionar, eu aqui vos conte detalhadamente a história da sua vida. Mas
se o fizer será bem mais lá para a frente, já que a outras coisas mais
importantes se deve dar prioridade.
- Conte-nos cá essa história, Constantino –
pediu-me D. Micá depois de Eduardo ter dado as boas noites e, com o argumento
de que teria uma viagem bem cansativa este fim de semana, colocara um boné de
pura caxemira aos quadrados em dois tons de azul, um marinho, outro azul
ultramarino, já que o frio se faz sentir, levantou a gola do sobretudo, atou ao
pescoço um cachecol Pierre Cardin, e saíra. Poucos minutos passados, a dr.ª
Gisela, esposa de um diplomata itinerante, saiu também.
- Com certeza, por quem é – respondi-lhe cordial e
formalmente, como quase sempre é o nosso tratamento. E foi assim, que depois de
ter aquecido as entranhas com uma chávena de cacau quente e fumado uma cigarrilha
espanhola que me foi ofertada pelo Ezequiel Pintasilgo, um novo camarada destas
tertúlias, figura caricata, com uma pequena barbicha a pender-lhe do queixo e
um bigode tipo mosca não mais largo que as narinas que veste camisas com gola à
padre e coletes de cores garridas e que só fuma cigarrilhas espanholas,
pigarreei para aclarar a voz e comecei, mais do que a explicar a fobia de
Eduardo Aragão ao chá, a contar a história que lhe deu origem.
Como já vos falei anteriormente, não que com isso
queira falar da vida de Eduardo Aragão, este meu amigo sempre teve um fetiche, chamemos-lhe uma queda, para
evitar estrangeirismos, por mulheres casadas. E, apesar da educação que os pais
lhe deram, em bons colégios de base religiosa, Eduardo Aragão não conhecia por
vezes os seus limites. Não foi portanto de estranhar que sempre que se cruzava
com Carlota Monteiro, uma senhora a rondar os seus trinta e seis anos, bem
empregadinhos, visto a correção do seu porte, as linhas definidas das suas
ancas e a beleza das suas coxas, uma cintura quase que poderíamos dizer de
vespa e um busto não demasiado farto mas que se realçava pela firmeza, fosse isso
no restaurante que ambos frequentavam no intervalo para almoço, fosse na
repartição de finanças onde a bela Carlota Monteiro trabalhava e que Eduardo
frequentava sob qualquer pretexto, mesmo que não houvessem impostos para pagar,
nem valores a declarar, fosse ainda no autocarro que, Eduardo Aragão, por mera
“coincidência”, apanhava juntamente com Carlota Monteiro, nem que para isso
fosse obrigado a regressar pela mesma via, para pegar o carro que entretanto
estacionara num parque próximo da paragem, pois não havia ocasião que Eduardo
não transmitisse a Carlota Monteiro o seu desejo de um dia tomar um chá com a
senhora. Aqueles convites perturbavam Carlota. Se é verdade que a presença tão
assídua de Eduardo na sua vida a começava a atrapalhar, não fossem as más-línguas
começarem a fazer conotações erradas, não menos verdade é que a própria Carlota
começou a sentir, ela própria um secreto desejo de tomar chá com o meu bom, mas
um tanto ou quanto descabeçado amigo, Eduardo Aragão. Mas não. Ao invés do que
os seus pecaminosos pensamentos tentados em desejos a invetivavam a fazer,
Carlota introduziu cautelosamente o tema ao seu muito ciumento, quiçá por vezes
colérico marido o senhor Paciência Monteiro, comerciante de prestígio, cujos
armazéns importavam as mais belas e qualificadas sedas da Índia. Debalde toda a
diplomacia e cautela de Carlota. Inesperadamente, o senhor Paciência Monteiro
ordenou-lhe que ela aceitasse o convite mas na condição de o tomar em sua
própria casa, a deles, a do casal Monteiro. E assim se decidiu, assim se fez,
pois que Carlota Monteira, argumentando com Eduardo de que estava cansada de
tanto assédio, se dispôs a aceitar o convite, mas fê-lo nas condições impostas
pelo marido.
- E ele? - perguntou preocupado Eduardo Aragão.
- Não estará – respondeu, ligeiramente nervosa por
estar a mentir, Carlota Monteiro.
- Não estará?! – perguntou exclamativamente
Eduardo Aragão, parecendo incrédulo com a resposta, mas ao mesmo tempo
denotando, para quem estuda essas coisas da expressão facial, um certo ar de
satisfação. E ainda acrescentou, no mesmo tom: - Como não está?
- Este fim de semana, ele terá uma viagem de
negócios pelo que se ausentará sábado de manhã e só regressará no domingo pela
tardinha.
Para Eduardo, o meu bom amigo, mas um tanto ao
quanto desbragado, outras coisas lhe começaram a passar pela ideia, visto tão
prolongada ausência de Paciência Monteiro lhe poder proporcionar algo mais do
que uma chávena de chá, quem sabe se acompanhada por algum biscoito caseiro,
sim que Carlota, tinha ar de quem era mulher de perceber de pastelaria. E não
lhe perguntem porquê que ele achou isso, que ele, com toda a certeza não
responderá e já vão saber porquê.
Resumindo para que se não enfastiem, contar-vos-ei
que, como era de esperar e com a desculpa de que o seu propósito, por motivos
alheios à sua vontade fora adiado, Paciência Monteiro foi ele em pessoa quem
veio à porta receber o meu amigo Eduardo que, com toda a educação que recebera
em criança, não quis deixar as suas boas intenções a débito e aceitou entrar
para tomar chá, desta vez, com o casal. Não se tocaria no assunto dos vários
convites para um “chazinho” como o meu amigo se referia nas aproximações a
Carlota, não fora o caso de depois de tomada a primeira chávena de chá e
recusado que fora a degustação de um biscoito caseiro, Eduardo não tivesse
resolvido que havia chegado a hora de agradecer tão amável receção e tenha
decidido retirar-se.
- Ora essa – dizia Paciência Monteiro – não
convidou Vossa Excelência por mais do que uma vez a minha esposa para um
“chazinho”, como era sua a expressão? Pois se o fez não é agora que ainda mal
começamos que já vai querer debandar de nossa casa.
E, ato contínuo, serviu-lhe mais uma chávena de
chá e ainda outra, depois mais outra e tantas mais que Eduardo Aragão esteva à
beira de uma congestão por excesso de líquido ingerido, tendo chegado a perder
a consciência.
Vendo assim o convidado naquele despropósito,
desmaiado sobre a carpete, uma chávena de porcelana inglesa decorada com
motivos florais literalmente em cacos no meio do chão, pouco faltou para que o
casal Monteiro entrasse em pânico. Mas, no meio da confusão e da aflição, sim
da aflição, porque não dizê-lo, ainda houve o discernimento de Carlota para
limpar os vestígios e levantar a mesa e para Paciência ligar para um amigo seu,
o Dr. Fabrício Páscoa, que embora fosse médico veterinário, sempre saberia
melhor do que eles resolver a situação. Sem explicar ao dr. o que exatamente se
tinha passado, receberam o Dr. Fabrício como se fosse um Deus, deixaram que o
médico mexesse e remexesse no corpo inanimado de Eduardo, apesar de tudo com uma
respiração normal e sem sintomas de qualquer traumatismo, lhe abrisse a pestana
para ver os olhos e até, talvez por deformação profissional, lhe abrisse a boca
e desviasse a queixada, verificando-lhe assim língua e dentes. Com calma e
usando uma solução que tresandava a amoníaco, fez o dr. Fabrício Páscoa com que
o meu amigo retomasse os sentidos e, quando ele já parecia restabelecido,
aconselhou-o:
- Agora vá para casa, descanse um pouco e antes de
se deitar tome dois destes comprimidos – e passou-lhe para a mão um blister contendo quatro comprimidos
brancos, pequeninos, acrescentado – e quando acordar tome os outros de dois. De
preferência com uma chávena de chá.
Por momentos senti pena do pobre Eduardo Aragão, saiu-lhe o tiro pela colatra e como se isso não bastasse leva com quatro comprimidos que deveriam ser tomados com mais um chazinho.
ResponderEliminarMuito chá para uma pessoa só, penso que nunca mais poderá ver à sua frente esse precioso líquido.:)))
Por isso ele agora só bebe whisky. Ah e leite magro com chocolate ... :)
EliminarUma história deliciosa, plena de suave ironia ...mesmo boa para ler num final de tarde, com um chazinho...
ResponderEliminarE um biscoito :)
EliminarUma boa viagem com apeadeiros
ResponderEliminara lembrar os tempos
dos comboios que apeteciam
Boa partilha
Caro Vítor
ResponderEliminarPasso para lhe desejar um Natal Feliz e que 2013 nos traga muitas histórias bem humoradas da D. Micá
Abraço