Acordei com a fronha da almofada ligeiramente
sangrada e a rir às gargalhadas. Gosto de acordar assim. Não, não gosto de
acordar com a almofada suja mas gosto de acordar bem disposto. Às vezes até
acabo, eu, por desatar a rir do pretenso disparate de acordar a rir. Parece
confuso mas não é, só que agora não tenho tempo de vos desfazer este laço de
risos e contra risos. Mas tenho para vos contar porque é que acordei a rir e
também porque é que acordei com a fronha com uma mancha de sangue. Abro entretanto
um parêntesis, para referir que a minha mulher me fez uma observação descabida.
Dizia-me ela que sendo o conjunto de cama de fina cambraia branca de algodão,
as rendas dos lençóis e das almofadas de bilros genuínos de Peniche e a cama
feita de lavado, porque é que, tendo eu ido ao dentista na véspera, não
protegera a almofada com uma fraldinha do meu neto? Claro que é descabida. A
criança usa fraldas descartáveis. Mas, fraldas à parte era qui mesmo que eu queria
chegar. Na véspera, uma desgraçada dor de dentes tinha-me mandado para o consultório
do dentista. Como a coisa se precipitou e eu não tinha consulta marcada, o Dr.
Eurípedes não teve compaixão. Mandou-me esperar, com uma gaze embebida em
álcool etílico feita um pasto junto ao dente e um lenço de assoar de fino pano,
que por sinal era ainda da minha toilette
do casamento da minha filha, em verde-claro que condizia com a gravata e
com o lenço de lapela que usei nesse dia, monografado, onde, do lado de fora da
bochecha eu encostava a mão, de cabeça inclinada, num ar dramático e de sofrimento
que quem por ali passasse saberia que estava a olhar para um coitadinho. E foi
por causa deste episódio doloroso e sangrento, que cheguei atrasado ao serão na
casa da D, Micá, a minha amiga contadora de histórias cor-de-rosa e órfã do
magnata do leite com chocolate, à dimensão deste cantinho à beira mar plantado,
como seria apanágio o poeta dizê-lo. O magnata, claro.
Quando entrei no majestoso salão de D. Micá, onde
o chão de carvalho sueco tinha acabado de ser embelezado com uma maravilhosa
carpete de Arraiolos, no canto onde o piano se situava, fazendo de chão ao
mesmo, o que acabou por dar uma qualidade superior à já inconfundível vibração
das cordas do Steinway, um magote de convivas, entre os quais o Ricardo, ria à
gargalhada, O Ricardo era a exceção pois, ao redor de um tema que o embaraçava,
D. Micá tinha acabado de contar a história dessa noite. Ainda muito
desinsofrido do meu passado recente, que não contava mais de uma hora de
antiguidade, protagonizado na cadeira do dentista e que não passou despercebido
aos meus companheiros de serão, muito menos a D. Micá que, com um maternal
«então senhor Constantino, o que é que lhe aconteceu?», sem que eu pudesse
balbuciar mais do que uma ou duas palavras impercetíveis, resolveu contar,
quase só para mim, o que tinha sido motivo de tanta risada naquele grupinho. O Ricardo,
saiu de mansinho, disse-nos até já, foi para o varandim saborear um Glenlivet
longe da chacota, acompanhado de Rafaela, que também tinha ido ao serão, a quem
convidou a olhar para as estrelas e a identificarem as constelações. Lá dentro,
D. Micá estava imparável e a história foi esta.
Ricardo saíra de um bar com alguns companheiros,
numa das pausas de quinze dias para preparação de exames, que o curso de arquitetura,
que frequentava em Lisboa, lhe concedia. O bar situava-se fora das paredes da
cidade, numa região semirrural. Para lá irem, ter-se-iam de deslocar de carro.
Ricardo conduziu o todo-o-terreno do tio Artur, que era o carro com que normalmente
se deslocava nestes períodos de miniférias. Quando saíram do bar, onde duas
brasileiras e uma ucraniana, dançavam e se despiam contra um varão de aço
inoxidável e os shots de vodka e as
cervejas importadas tomavam conta da cabeça dos clientes, eles que tinham
começado brejeiramente a fazer trocadilhos com a palavra vaca, a propósito não
se sabe de quê ou de quem, sem demora passaram a discutir chocas, cavalos,
toiros e touradas, uns prós e outros contra, resolveram que estava na hora de
fazerem uma pega de caras. É claro que nem Ricardo, nem os seus companheiros,
tinham arcaboiço para pegar um boi, nem tão pouco um vitelo de dois meses, nada
melhor do que pegarem de caras uma ovelha. E ainda com o álcool a falar mais
alto do que eles, roubaram um borrego ao rebanho do ti Benevides, cujo dito
rebanho bem berrou da invasão mas, de cujo facto, o ti Benevides nem deu conta,
pois que era surdo que nem uma porta. Afastados que estavam do bar, do rebanho,
com a vodka a tomar-lhes conta da lembrança, sem o borrego avançar, também ele
um pouco amorfo, com sono e sem saber o que era investir contra uma t-shirt vermelha, apenas berrando uns
estridentes més. Acabaram por meter o borrego no jeep. E pela manhã, sem saber mais o que fazer, Ricardo levou o
borrego para casa com a promessa do Adriano de que iria lá resolver a situação.
Na pior das hipóteses matavam o borrego, tiravam-lhe a lã para mandar fazer um
casaquinho para a Rafaela e deliciar-se-iam com uns ensopados e umas costeletas
grelhadas na brasa. A verdade é que o Adriano, nunca mais se lembrou da
história, varreu-se-lhe da cabeça como se um tufão lhe tivesse soprado, naquela
noite, o crânio, desatou a estudar para os exames, desligou o telemóvel e
esteve quinze dias incontatável. Ricardo dormiu, dizem as más-línguas, quinze
dias com o borrego, alimentou-o, deu-lhe carinhos. Maldizem outros que até
Rafaela teve ciúmes. Eu, pessoalmente, tantas eram as dores na minha boca, não
consegui nem rir nem desdenhar da sorte de Ricardo. Mas na manhã seguinte
acordei a rir às gargalhadas. E não foi apenas da história. Foi por causa do
agasalho que a Rafaela tinha vestido nessa noite. Parecia uma ovelhinha num
casaco rústico de lã, comprado numa loja de artesanato da Serra da Estrela. A
verdade é que segundo nos disse a própria D. Micá, assim trajada, ela sentia-se
muito mais acarinhada por Ricardo, que até comidinha lhe dava à boca. E foi
isso que me fez dar aquelas gargalhadas.
e sem ofensa, mas eu também após ler , estou a rir às gargalhadas.
ResponderEliminarboa semana
um beijo
obrigada
Fico contente quando as pessoas riem assim. ;)
EliminarDei risadas só até chegar na parte das dançarinas, não dá pra trocar a nacionalidade das duas não, as que não são ucranianas? Podiam ser francesas, espanholas, sei lá...?
ResponderEliminar:)
Oi minha amiga linda.
EliminarPoder até que podia, trocar essas nacionalidades, mas não era a mesma coisa. Você conhece bailarina mas alegre, mas sensual, mais tropical que brasileira? A historinha perderia metade da qualidade. :)
Beijo.
As noites da casa da Micá já estão a ficar mais divertidas.
ResponderEliminarTambém eu já houve ocasiões em que acordava a rir. Aquilo é era sonhos alegres! Agora, acho que nem chego a sonhar vê lá tu.
Sabes que a parte que mais me divertiu neste texto foi a referência aos lençóis de fina cambraia e à admoestação da tua mulher acerca da tua displicência e negligência com a cama feita de lavado. Realmente és muito descuidado!
Ah, também gostei muito da ovelhinha. A da foto e aquela que gostava de se parecer com ela. Comidinha na boca, é? :))
Bela narrativa, Constantino!!
Uma beijoca.
como tu Prosista...só tu :))
ResponderEliminarBeijos meus
Uma leitura onde os animais fazem a sua parte e os sonhos ou recordações completam o cenário.
ResponderEliminarQuando se acorda no meio destas lembranças é fácil estarmos de dentes arreganhados pela boa disposição.
Desejo um óptimo dia de folga - 01 de Novembro
O texto como sempre uma delícia
ResponderEliminarNão fora a carneirada estar no poder
partilhava o riso
com as ovelhas
Abraço
Pois eu tenho outra teoria. Estavas tu a rir, perturbando o sono da tua jove e ela pregou-te uma solha, daí a mancha de sangue. Cá em casa já sucedeu coisa do género... Abraço!
ResponderEliminarUma prosa que me deixou a rir às lágrimas, vamos ver se amanhã ao acordar,o faço a rir, lembrando-me daquilo que li aqui.
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