Uma nuvem de cheiros
atravessou a casa e penetrou-o no estremunhado sono que ainda lhe restava. Um
agradável odor, misto de café e torradas, anunciava-lhe a presença de alguém na
cozinha, onde um tiritar de colher beijando a chávena confirmava um leve
receio. Estendeu o braço esquerdo perpendicularmente ao corpo e obteve a
certeza da primeira desconfiança. Ela já lá não estava e um apenas quase vazio era
preenchido por uma almofada. Do outro lado com uma ligeira apalpadela descobriu
os óculos e colocou-os. Depois abriu os olhos e pestanejou várias vezes como
que a dar os bons dias ao raio de luz que atravessava a frincha da janela mal
fechada. Desceu cuidadosamente da cama (a malvada dor de coluna acompanhava-o
há largos anos), mal acordado, olhou em volta e descobriu na cadeira onde tinha
deixado de véspera o roupão em cetim azul-escuro que ela lhe tinha oferecido no
início deste verão. Por uns momentos ficou a pensar na importância que tem uma
cadeira de quarto, no seu papel de fiel depositária e da tranquilidade de um objeto
que durante anos não sai do mesmo local. Palermices, pensou, será a idade… De
repente alteraram-se-lhe os humores (terá descoberto que dia era hoje?).
Arrastou os pés até estes se enfiarem nos chinelos, quase com uma precisão
matemática. Pudera. Durante mais de quarenta anos colocava os chinelos de
quarto sempre no mesmo sítio e sempre que se levantava era a segunda coisa que
procurava. A primeira eram os óculos depositados sobre o livro da noite na mesa-de-cabeceira.
Pegou no roupão, seguiu a trilha dos cheiros e observou-lhe a nuca prateada na
entrada da porta da cozinha. «Bom dia!», disse-lhe ela, mal o pressentiu. «Bom
dia», respondeu-lhe ele, acariciando-lhe o cabelo e debruçando-se para lhe
beijar o pescoço. «Acho que adormeci», acrescentou, como que a desculpar-se. «Porque
não me acordaste?», perguntou-lhe semicrítico mas com uma entoação carinhosa. «Hoje
vou chegar atrasado», concluiu. Depois numa autocrítica pesarosa terminou murmurando
«maldito vício de adormecer agarrado aos livros. Esta noite, juro, apagarei a
luz mais cedo e serei eu quem fará amanhã o pequeno-almoço». Ela rodou a
cabeça, olhou-o com ternura nos olhos, pediu-lhe que se sentasse no lugar em
frente e relembrou-o «Agora já não precisas». Uma pequena lágrima correu-lhe,
inevitável, pelo rosto. Pela primeira vez, desde os seus vinte anos de idade,
que não tinha de ir trabalhar à segunda-feira. E vieram-lhe à memória, numa
catadupa de imagens, os anos da fábrica que acabara de fechar. Como que um
macaréu, uma ânsia subiu-lhe corpo acima num curto percurso do estômago ao
peito. Baixou a cabeça, e começou a barrar o pão com doce de cereja. Uma
segunda lágrima caiu-lhe na chávena de café.
Repost de http://predatado.blogspot.pt/2006_06_01_archive.html
Constantino, este é daqueles textos que me calam fundo e de que eu já sentia tantas saudades de ler por aqui!
ResponderEliminarSáo tempos difíceis os que se avizinham e levam a um retorno de um passado que se pensava ter ficado definitivamente para trás.
Mas quando se tem ainda com quem se compartilhar uma chávena de café pela manhã, ao levantar, e um cabelo branco para acariciar, os tempos difíceis sempre ficam mais leves.
Vitor, esse link tem algo errado. Hás-de ver o que se passa, porque não dá acesso ao Pre.
Ainda hoje falei nele, no meu blog, mas ainda não tinha vindo aqui.
Adoro, quando escreves com o coração, Constantino!
Beijinhos.
Já o tinha lido e guardado...um cenário que ocorre todos os dias a tanta gente e não consigo dizer mais nada porque mal vejo as teclas!
ResponderEliminarBeijos rapaz!
Tantos desses dramas, camuflados por aí!
ResponderEliminarBjs
Uma história triste, mas quem sabe uma realidade em muitos lares nesta altura de crise.
ResponderEliminarComovente o relato e escrito de forma que me deixou comovida.