segunda-feira, 5 de março de 2012

109. Ismael (32) . Um álibi com lençóis



Costumo ler três livros de cada vez, outras vezes quatro e já cheguei ao cúmulo de estar a ler cinco livros em paralelo. Neste momento, não contando com a Bíblia que é um livro que leio amiúde e quase diariamente, só estou a ler mais dois. O “Abraço” do José Luís Peixoto e “Almas que não foram fardadas” do Rogério Pereira. Ambos contam histórias e este é um meio onde gosto de estar e que, quando me movimento, me movimento com algum à vontade. São obras leves, nada de romances de enredos complexos e isso permitiu-me no mesmo entretanto ler ainda “Já não se fazem homens como antigamente”, uma pequena coletânea de contos de quatro autores, o Miguel Almeida, a Daniela Pereira, o João Pedro Duarte e o Pedro Miguel Rocha. Esperem aí que eu vou fazer chichi e já volto. Pronto! Voltei. Desculpem a interrupção. Mas há algo que ainda não vos disse. É que, em simultâneo, ando a acompanhar o jovem Espinheira a decifrar a caligrafia horrível, chamar horrível é um eufemismo, de Francisca num precioso manuscrito que nos deixou, embora incompleto, a não ser que se descubra um segundo caderno, para que se possa desvendar o crime. Como bem estão recordados, refiro-me ao hediondo, sanguinário, diria mesmo que indescritível de horrendo, assassinato da bailarina, há quem lhe chame corista de revista do parque Mayer, no início da segunda metade da década de cinquenta do século passado, espero que tenham gostado do preciosismo cronológico, com sete facadas, a maioria no peito, mas que a polícia, até à data em que se desenrola esta narração, não nos permite divulgar mais pormenores. Ora hoje, depois de ter arrumado o livro do Peixoto na estante da casa de banho, onde aproveito todo o tempo “morto” para ler e o livro do Rogério aqui ao lado do meus comprimidos para o colesterol e as pautas de música para cavaquinho, peguei numas páginas do manuscrito da Francisca e comecei a ler.

Na véspera dos acontecimentos (pressupõe-se que se refere ao hediondo, sanguinário, adiante, ao crime…), Fernandinha recebeu o telefonema de um primo em segundo grau, sobrinho de D. Laurentina que, como todos ainda estão recordados, foi a tia que recolheu Fernandinha, não no rés-do-chão do número 43, como Ismael Gusmán me tinha sugerido em tempos, mas sim numa pequena casa, uma pequena vivenda com cozinha, uma sala e dois quartos, na Quinta do Conde que, quis o destino, não tinha seguido o destino, a redundância aqui é propositada, diz a própria Francisca, da família e não emigrou. Estava a comunicação complicada, entre a Fernandinha e esse seu primo em segundo grau, quase tão complicada como a frase que constituiu o parágrafo anterior, pois telefonar de uma aldeia da freguesia de Lajeosa no Concelho de Celorico da Beira para a Quinta do Conde era ainda mais difícil do que fazer como o narrador deste texto, que mistura factos de hoje em dia com os acontecimentos da época e ainda tem a paciência de ler três livros ao mesmo tempo, que não se conseguiu perceber o nome do primo, tal era o ruído. Continua então Francisca, a comunicação estava complicada mas deu para se perceber que alguém importante no meio financeiro nacional, a teria tentado contatar em Lajeosa mas que aí o informaram que Fernandinha vivia com um Barão francês em Marselha. Ele insistiu, apesar das dificuldades de comunicação, patati-patatá lá vai o narrador repetir-se e conseguiu saber por portas e travessas que a Fernandinha já estava em Portugal e que era tal a sua competência na cozinha que, se ela fosse personagem de uma história, cinquenta anos mais tarde, seria, numa daquelas reclassificações de funções feitas por consultoras internacionais, uma técnica superior de cozinha com especialização em salgadinhos na variante pastel de bacalhau. E aqui entra o narrador para perguntar se Francisca é familiar dalgum profeta ou se se está a fazer ao piso. Na verdade, Fernandinha veio a receber uma nova chamada, alguns minutos mais tarde, do tal senhor da finança, tendo até pedido ao patrão, um galego dono de uma tasca na Rua dos Correeiros, pessoa muito estimada, adepta do Benfica e do Liceo da Coruña, de sua graça Ismael Gusmán, para sair aí por volta das sete da tarde pois ainda teria que ir lavar os sovacos e outras partes que ela se ruborizaria em dizer, já que se ia encontrar com uma pessoa importante. Disseram-me mais tarde, continua Francisca, que o casal foi visto a jantar no João do Grão e que foi depois aos fados na Severa, em plena Mouraria e que, finalmente, deu entrada numa pensão com serviço de águas quentes e frias e pequeno-almoço tipo francez, sim escrito com um z numa placa metálica, junto a um candeeiro a petróleo, sita na parede do mesmo prédio da dita pensão e que, em noites de vendaval, range de tal maneira que quem dorme no quarto com janela para a dita placa não prega olho toda a noite, pelo que os donos da pensão lhes fazem uma atençãozinha no momento de fazer contas. Pois o casal, que depois dos fados se instalou na pensão, terá lá passado a noite, já que, no depoimento prestado pelo rececionista da pensão, ao chefe de brigada Ismaelix, isto já não diz a Francisca, pois o manuscrito é anterior às investigações, mas sabe-o o narrador de fonte segura e próxima da Judiciária, dizia, garantiu a pés juntos que naquela pensão, depois das duas da manhã, os únicos ruídos que se ouviam era de algumas camas, que pela idade dos entalhes já não eram o que foram antigamente ou algum flato mais sonoro por descuido de algum dos hóspedes. Portanto não houve o mínimo movimento na receção e a porta só se voltou a abrir por volta das oito da manhã, já que um rapazinho minhoto, dos seus treze anos de idade, que é marçano numa mercearia na Rua Áurea, paredes meias com o elevador de Santa Justa e que por favor dos patrões que são também os donos da pensão o deixam morar lá no cubículo e que sai sempre àquela hora para ir pegar ao trabalho.

Atendendo ao manuscrito da Francisca e ao que o narrador e contista, que todos conhecem como Constantino, acabou de escrever, parece que Fernandinha tem um irrebatível álibi já que, segundo consta nos autos que o Espinheira, uns anos mais tarde, veio a descobrir nuns arquivos da polícia e que o contista já não se lembra, ao fim destas páginas todas se já foi dito ou não, o crime ter-se-á dado por volta das sete da manhã. Ah sim, é verdade, não foi o contista e narrador quem o disse, terá sido um desabafo de uma misteriosa senhora de Trás-os-Montes ao chefe de brigada Ismael de Almeida quando este se disfarçava do homem que dá milho aos pombos. Pois ao outro, ao tal do bigode como o Chalana, porém branco, ao nosso conhecido Ismaelix, também ele, soubemos há dias, chefe de brigada da Judiciária, pois a esse, ninguém lhe faz o ninho atrás da orelha. E há de, mais dia, menos dia, dar um contributo importante para se desvendar este caso. Ou não andasse ele a dormir com Ekatrina Smirnova e o seu primeiro encontro não tivesse sido na pensão Estrela de Alva, águas quentes e frias.


21 comentários:

  1. Do que tu me foste lembrar...
    Em Setembro de 74 estive a almoçar no "João do Grão" com um grupo de amigos!
    Como o tempo passa...
    Ter-me-ei cruzado por essa altura com o Ismael?! Quem sabe?!

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  2. Olá, Constantino

    Obrigada pela introdução que me actualizou e me reconduziu aos meandros deste conto..
    A Fernandinha se fosse hoje entraria na certa nos 'Master Chef' que pululam por aí. Infelizmente, depois do fim do programa não se ouve falar mais do vencedor, como em todos os programas e concursos que criam expectativas nas pessoas e depois...nada. Salvo raras excepções, bem entendido.

    Este conto está cada vez mais embrulhado apesar do afã do contista de esclarecer o embróglio. Mas acho que vai no bom caminho pois me parece que o Ismael não deixa os seus créditos por mãos alheias. A ver vamos...

    :)

    Abraço

    Olinda

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    1. Ai Olinda, você diz que o conto está embrulhado? E o contista credooooo... ele já nem sabe qual é ponta que tem de cortar para sair, ele próprio, do embrulho. Mas isto não é um conto, na verdade é um livro inexistente num embrulho de papel pardo.

      Outro
      :)

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  3. Diz-me a experiência de leitora antiga e persistente de policiais que os alibis com lençóis nunca são fiáveis...
    Vamos ver!
    Abraço

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    1. Estou em crer que o contista vai ainda arranjar álibis para mais alguns. Não sei é se os inspetores não serão perspicazes para os desfazer.

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  4. Isto de deixar passar dois posts é dose! Para a história fazer sentido, depois tem de se ir atrás, para não perder o fio à meada. E curiosamente, nem sei se seria necessário, porque às tantas são mais os pormenores dos carapauzinhos de escabeche ou dos pastelinhos de bacalhau da Fernandinha, do que propriamente no enredo criminal... :)))

    Ainda não percebi é porque a história vai a 56, quando tinhas apenas um ano de idade e não frequentavas a tasca do Ismael. Quer dizer, tinha ideia que tinhas começado a história nos teus tempos de liceu e nas primeiras idas à tasca... Confesso que começo a estar um bocadinho baralhada! :)

    Também tenho o "Abraço" de José Luis Peixoto na estante, à espera de vez. Mas não, não leio livros ao mesmo tempo, que acho confuso... :))

    Beijocas!

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    1. Olá Teté,
      Vamos lá ver se eu te consigo explicar e a mim também. Ismael, não é um livro policial. Aliás, Ismael não é um livro nem pretende ser. Ismael era, já faleceu, um amigo meu que teve uma tasca na Baixa. Se era na Rua dos Correeiros ou não, deixa isso para as conjeturas do narrador e não te preocupes. Ismael estabeleceu-se na Baixa, alguns anos depois da Guerra Civil de Espanha, ainda eu não era nascido. Vim a conhecê-lo por via do meu pai. Muitas das histórias que conto passaram-se efetivamente num “environment” (desculpa a palavra mas parece-me abrangente) que poderia ter sido a tasca do Ismael. O nome é fictício e todos os restantes personagens podem ou não ser de ficção e qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Entretanto em 1956 deu-se, quer dizer, o escritor inventou, um crime no número 43 da Rua dos Correeiros, paredes meias com a tasca do meu amigo. Quando o contista, que tem a liberdade de escrever sobre factos ou ficção de qualquer época, caso contrário nenhum livro de ficção científica poderia ser escrito, nem, tampouco, livros de História, já que os historiadores são normalmente mais novos do que a própria História, situou as ações em 1956, toma também a liberdade poética, chamemos-lhe assim, de vestir a pele de narrador e de protagonista em simultâneo o que, se por um lado pisca o olho aos restantes personagens, misturando-se com eles e saboreando dos seus petiscos, mormente dos carapauzinhos de escabeche que tanto gosta, por outro consegue por a cabeça dos leitores a andar á roda como se tivessem vazado de seguida uma garrafa de ginjinha. Ora, aparece no meio disto tudo uma outra personagem de nome Francisca, que não está livre de ser uma criminosa, ai isso não, que ainda é melhor, aliás eu como criador do personagem garanto-te que é muito melhor, escritora do que o autor deste modesto pseudolivro. E esta Francisca que também escreve contos, deixou manuscrito no livrinho que adotou o substantivo, O conto da floresta virgem. É assim normal que Espinheira e Ismael Sacadura Flores que é outro Ismael que não o meu amigo tasqueiro se interessem também por esta narração. Resumindo, contarei as minhas histórias neste ambiente (lá estou eu outra vez com o environment) de taberna, escreverei o meu conto policial e misturarei quando isso vier a propósito O conto da floresta virgem, escrito por Francisca. Mais claro que isto só aquele bagacinho puro de vinho verde que deixa passar a luz do Sol e a transforma em arco-íris. Não achas?

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  5. Cá para mim o recepcionista estava a dormir no serviço e não quis perder o emprego...*

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    1. Ai tétisq, nem imaginas o que é que um rececionista de pensão de 2 estrelas é capaz de fazer...

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  6. e nao baralhas as personagens? ai se ea eu metia o padre a casar com o assassino e o cavalo a beber champanhe
    baralhava tudo assim como o meu amigo MAX
    kis :=)

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    1. Não os baralho muito, mas às vezes fico à nora com as cronologias.
      Beijos

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  7. Pronto, um pouco de publicidade grátis. Se as fotos forem boas...

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  8. As fotos são sempre minhas,Vitor, a não ser que não sejam...mas nesse caso eu informo:-))))
    Obrigada pelos elogios, sempre saborosos!
    Abraço

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    1. Os elogios são sempre sinceros, Justine, a não ser que não sejam... mas nesse caso não os faço :))
      Um abraço

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  9. Olá Vitor Constantino!

    Já viste o que seria se todos viéssemos para os blogues dizer...ai, estou tão mal...ai, dei uma dúzia de espirros...ai, dóiem-me as costas...ai, sinto-me a desfalecer...ai, que os meus olhos me andam de novo a deixar ver tudo enevoado... pois, a blogosfera seria um manancial de maleitas!
    ( essa dos olhos é maleita minha e como não o digo no meu blogue, digo-o no teu. Lol)

    Posto isto, quero que saibas que não te "abandonei" nem esqueci. És um grande e bom amigo, para além de um fabuloso contista, que adoro ler.

    Não sei se isto já vão sendo reflexos da miserável PDI ou se precisarei de ser operada à vista, como os gajos lá do Hospital de S. João querem. Vou aguardar até dia 9 para saber.

    Vai lá dando tu continuação a esta intrincada saga e podes contar sempre com esta tua fiel leitora e amiga...assim Santa Luzía não me abandone...

    Muitos ósculos e amplexos, querido amigo Constantino.

    Janita

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    1. Minha amiga. Se forem cataratas aproveita para tirar umas fotografias. Dão sempre imagens muito bonitas. Mas como com a vista não se brinca nem com quem é de Olhão ou com quem tem vistas curtas, o melhor é cuidares-te mesmo.
      Gosto muito de saber que aqui vens mas nunca duvidei que o fazias. Perguntei por ti porque não só estava com saudades, mas também porque temia que algo não estivesse bem.
      Uma beijoca e não te esqueças de te cuidares.

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  10. curioso
    qaundo leio, estou sempre a ler mais que um livro, 2...
    agora não estou a ler... a afazer uma pausa...

    abrazo serrano

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    1. Eu só estou a ler 3 neste momento. Acho que ando a perder faculdades.

      Abraço

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  11. Vim, até que enfim. Depois de tanto tempo impedido, porque a uma carroça está vedado o transito na baixa e também não dá para calcorrear os caminhos virtuais, como alternativa. Varrido o disco duro e espantados os vírus malfadados cá venho na máquina nova e tentar retomar o enredo. E... credo ler cinco livros a par? Dá para deixar os personagens cada um em seu lugar?

    A coisa que me deixou mais feliz neste regresso foi saber que a Fernandinha tem um irrebatível álibi...

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