Na página noventa e três, Francisca continua a desenvolver o seu
conto a que eu, abusivamente, vou chamando o “Conto das ilhas de lá”, sendo que
o capítulo quatro não destoa dos três primeiros e espero que continue. O jovem
Espinheira, contratado para lhe decifrar o manuscrito, com uma parca avença que
apenas lhe dá para as passagens desde a Quinta do Conde à Rua dos Correeiros e
para comprar uns morangos de Sintra, numa carroça parada em Cacilhas, junto ao
Farol, sim porque naquele tempo ainda havia o pequeno, mas muito doce, morango
de Sintra, estava preparado para começar a ler.
Alguns dos leitores deste que será um potencial livro a ser
vendido um ano depois de editado na Feira de Corroios por um ou dois euros,
para desempatar dinheiro à editora, começaram a ler estas páginas já a
procissão ia no adro. Por outras palavras, já Ismael se tinha introduzido nas
minhas histórias e já o contista Constantino tinha inventado um crime na Baixa
Pombalina da cidade de Lisboa. Se no meio das suas histórias, o tipo que assina
estas prosas tivesse começado a escrever um Tratado de Economia defendendo o
neoliberalismo como o futuro da globalização, não sei se Francisca estaria à
altura de dar pistas ao Espinheira para que este ajudasse alguém a decifrar
hieróglifos mas talvez viesse, um dia, a ter a sorte de ser convidado para
Ministro. Mas talvez não fosse tão confuso e não baralhasse tanto os seus
leitores, nem a moça que um dia encontrou num café. Principalmente porque no
meio de um Tratado de Economia de carater neoliberal o “Conto das ilhas de lá”
não faria sentido e a Fernandinha não seria tão roliça já que o tempo é,
efetivamente, de vacas magras. De qualquer maneira, se a tasca de Ismael não
tivesse já sido substituída por uma hamburgueria americana franchisada ou
fechada para especulação imobiliária, ainda se comeria lá um caldinho verde e
uma sandes de ovo ao balcão e uma bica para rebater, que é assim que a classe
média em decadência se alimenta nos pequenos intervalos para almoço que lhe são
concedidos. Ah, estava a esquecer-me. E um copo de água da torneira, que sai
mais em conta.
Estava o Constantino nos seus pensamentos futuristas, quando, como
que por magia, o inspetor Ismael
Sacadura Flores lhe fez estalar dois dedos, a saber, o polegar com o médio,
mesmo à frente do seu nariz e lhe perguntou, mas você quer ouvir o que a Francisca escreveu, ou não quer? E foi
com a boca cheia que o contista, que mastigava um panado de porco numa bola de
mistura, com um esguicho de condimento de mostarda, que por pouco não lhe
sujava a camisa e bebia uma imperial (reparem como se não fosse por magia,
cronologicamente isto seria impossível, a não ser que o puto Constantino, que
ainda usava fraldas já se metesse nos álcoois, quanto muito estaria a mamar um
biberon de leite de vaca, com um babete à frente), ficou de olhos vidrados na
beleza da escrita de Francisca. Abrindo o manuscrito na página noventa e três e
socorrendo-se de uma pequena cábula em papel quadriculado, com desenhos e
traduções, o jovem Espinheira leu. À sua roda, Ismael, Fernandinha, Rogério e
Sacadura mantinham-se em silêncio. Já não sei hei-de dizer que o contista
também estava presente ou se se tinha ausentado a fim de mudar a fraldinha
mijada. Efeito das bejecas, pensarão alguns. O jovem Espinheira, com toda a
certeza, posso-vos afirmar, estava lá e leu.
“Horas e horas sem me
alimentar, atentava-me uma mesa assim. Não sabia a composição dos alimentos,
mas isso não era importante. No entanto, permaneci imoto. Seria imperdoável
tomar a iniciativa. Mais que imperdoável, inadequado e imbecil. O chefe tinha
um ar rude, a atingir laivos de imane. Qualquer tentativa, mesmo que imaculada
poderia ser considerada uma imisção nos costumes. Esperei. A cena que se seguiu
foi imperdível, mesmo para um observador externo. Dois jovens, um rapaz imberbe
e uma moça implume, aproximaram-se, nus. Alguns dos indígenas desviaram-se
abrindo caminho para o jovem par. O que se passou de seguida é, para um leigo
nos costumes, inarrável. Como que impetrando, os olhos da rapariga dirigiram-se
a mim. Não teria mais de 16 anos, o que me começava a incomodar. Embora
celibatário, qualquer relação que pudesse haver entre nós me pareceria ímpia.
Mas, as circunstâncias, não me permitiriam impeticar com os anfitriões. Deu-me
a mão e obrigou-me a levantar. Uma a uma, num ritual de sensualidade, retirou-me
as vestes. Senti-me impotente para parar aquela espiral de emoções. Nunca fui
casado, nunca tive filhos, mas qualquer ato que eu cometesse me acometia de
incestuoso. Se alguém, da minha cultura, me visse, face a tão inusitados
preparos, me acharia inábil. No entanto, o jogo iria continuar".
Ai, estou com tanto medo que a Francisca não
consiga acabar este conto, suspirou Ismael Sacadura Flores. Depois, agarrou num braço
da Teresa, que entretanto tinha chegado, pé ante pé, para não fazer barulho e
perguntou-lhe, estás a perceber alguma
coisa disto?
Não sei quanto a essa Teresa que chegou agora... mas eu tenho andado a voltar atrás e à frente e acho que já agarrei o fio deste novelo...*
ResponderEliminarParabéns. Olha que não há muitos a consegui-lo :) *
EliminarDisseste uma coisa com a qual não concordo!
ResponderEliminarÉ que um compêndio de neo-liberalismo é das coisas mais claras que podem existir, pois resume-se a... "saquem o que possam aos que pouco têm, que eles calar-se-ão com medo que as coisas piorem!"
E louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!
Não pode ser Manuel. Se fosse só isso não me deixariam publica-lo. Tem de ter muitas páginas.
EliminarAinda bem que eu me mantive em silêncio. Se falasse diria asneira ou qualquer coisa deslocada... é que ainda ando às voltas para me reencontrar no texto. Maldita carroça, de rodas quadradas, incapaz de calcorrear a net e as ruas da baixa.
ResponderEliminarJá sei que tens uma carroça nova, agora é dares-lhe no freio!
EliminarÒ CONSTANTINO, para quando o conto das ilhas de lá?
ResponderEliminardo albert johnny garden?
A TERESA chegou? quando?nã ná vi!
Oh CONSTANTINO tu deixas-me sempre a rir sozinha quando leio os teus comentos. ó depós nao consigo tirar o sorriso da cara fico assim a modos que tonta a rir sozinha, sabes?
e esta dos Antónios deu-me uma pancada de tosse! hihihi
AvoGi essa dos Antónios aprendi no tempo que éramos campeões olímpicos em presos e altares.
EliminarE esta que se assina Teté, que por sinal também é Teresa. diz que sim, que agora já percebeu que parte da história passada em 1956 não foi presenciada pelo Constantino, que ainda andava de fraldas e só bebia biberon. Anos mais tarde, sim, lá lhe dava nos carapaus de escabeche e noutros petiscos. E por lá, leia-se na tasca do Ismael galego!
ResponderEliminarSe não for assim, depois tu explicas, né?
Se pelo meio resolveres escrever um tratado de economia, aí sim, não te admires se perderes leitores... :)))
Beijocas!
A ficção e a realidade misturadas em doses q.b.
EliminarUm beijinho.
Imprimi os capítulos em falta e vou ler e depois volto, já que tenho andado num vai-vem:)
ResponderEliminarDepois digo algo mais:)
Gostas mais de ler com cheiro a tinta? :)
EliminarBeijinho.
Quem o manda andar a "atar" a torto e a direito?
ResponderEliminarÉ um atadinho o gajo.
EliminarNão, mas também não percebo nda dos quadros surrealistas e acho-os belos e estimulantes...
ResponderEliminarJunta-te ao clube!
EliminarAbraço.
Cada vez está mais interessante e intrigante e há que ler devagar porque se não misturam-se os personagens...ai Ismael, Ismael...onde é que irás parar?
ResponderEliminarIsto só mesmo imprimindo, juntar as folhinhas e ler de seguida...ohhhh meu amigo para quando o livro?
Gostei imenso e tens cá uma imaginação que vou-te contar::)
Deixa cá ver se eu percebo. A qual do Ismaeis é que te referes? LOL
EliminarBeijinho.