No tempo em que trabalhar aos treze anos de idade não era
considerado trabalho infantil, o Constantino, (aqui o je) trocava as suas férias de verão por uma atividade remunerada.
Era assim o compromisso entre o filho do operário que andava no liceu e o pai operário
do menino que quis estudar no liceu. Não é que isso tenha tido muita graça mas
para que o Constantino pudesse “guardar vacas e sonhos” não andaria com um
cajado, mas entregava fatos e camisas em casa dos clientes em Lisboa e
concelhos limítrofes, carregando sacos de roupa por vezes maiores que ele, a
subir o elétrico, a mandar parar o autocarro ou a picar o bilhete do metro. Era
assim a vida de um paquete de uma loja de confeções. Uns dias a limpar o pó das
roupas, outros à porta da loja a perguntar a algum cliente em que é podia
ajudar, outros ainda, Lisboa fora ou fora de Lisboa. E quando pelo caminho lhe
sobrava tempo, saía na estação de metro do Parque Eduardo VII e subia e descia,
vezes sem conta, melhor dizendo, vezes com conta pois tinha de voltar à loja,
as escadas rolantes, enormes e saborosas. Era tão bom andar de escadas
rolantes.
Com treze anos, quando eu chegava a casa, vindo do trabalho,
ainda era dia. Trabalhava nas férias de verão, os dias eram longos, sabia-me
bem apanhar o barco no Terreiro do Paço pelo fresquinho do fim de tarde, depois
o autocarro em Cacilhas. Como era baixinho atrevia-me a pedir meio bilhete e só
se o revisor desconfiava e me perguntava a idade é que respondia, pronto, é um bilhete inteiro, o revisor
fazia cara de mau e eu dava uma gargalhada. Depois era a alegria de beijar os
meus pais, de despir o fatinho que me faria falta amanhã, de vestir qualquer
coisa mais fresca, de trincar uma maçã riscadinha ou de comer um alperce ou uma
ameixa e dizer à mãe que ia até lá abaixo. Não
te demores que o jantar está quase pronto e já sabes que o teu pai não gosta de
esperar. E uma bola já saltava escada abaixo, dois chutes na praceta, um
mano a mano com o Zé Carlos e eu a chegar esbaforido para o jantar com a cara
mais vermelha que um tomate, um duche à pressa, que o pai não gostava, não
gostava mesmo nada, de esperar para o jantar. E nesse dia à mesa, sobre as
escadas rolantes fazia silêncio. Ai de mim se a mãe soubesse.
Com treze anos, jogava ao pião, à macaca e aos cobóis. Dois
anos antes tinha partido um braço a saltar ao eixo o que me incutiu um medo particular
por esta brincadeira. Por outro lado a minha altura, assim a modos como o mais
baixote (a par do Carradas), também não me incentivava muito a pular por cima
dos “calmeirões”. No pião era um ás, quer a lançar, quer a apanhar, quer a
pilar os outros piões e fazê-lo sair da rodinha. Admiro-me de que com esta
pontaria nunca tenha tido a mínima vontade de ser caçador. Por falar em
pontaria também era um ás a jogar ao carolo, que era como na minha zona se
chamava ao berlinde. Fosse às covinhas, ao renas ou ao ganhas, onde eu gostava
mais de ser marralhos, fosse à rodinha-bota-fora ou ao pixe, chegava a casa sempre
cheio de bilas ganhos, a não ser que algum pirata de catorze ou de quinze anos,
lá aparecesse com um abafador e me abafasse os carolos todos. Mas esses, alguns
deles, claro, tinham o castigo que mereciam. Não sabiam, nem haveriam de saber
que no parque Eduardo VII havia escadinhas rolantes. O mais certo mesmo era não
saberem o que eram escadinhas rolantes.
Naquele dia, o senhor Ismael estava com cara de caso. Olhava
muito para mim e não me dizia nada. Dei-lhe a marmita para aquecer e pedi uma
gasosa. Dei-lhe os doze tostões e agradeci quando me trouxe um prato com a
comida. Aos outros putos e alguns adolescentes e até adultos, aquecia-lhes as
marmitas e trazia-lhes a comida assim mesmo, pousando-as em cima da mesa de
madeira. A mim não, porque o senhor Ismael era amigo do meu pai, a comida vinha
sempre num prato. A tasca do senhor Ismael tinha uma parte para quem trazia
comida de casa. Eram outros tempos. Mas já ouvi falar que já não só os
operários que levam a marmita. Dizem nas televisões, só pode ser mentira, já se
vê, que as pessoas, até alguns empregados de escritório, que no meu tempo de
miúdo eram gente fina, agora também levam a marmita para o emprego. Alguns, por
vergonha, não a vão aquecer à tasca. Comem mesmo no escritório, quase às
escondidas. Bom na verdade, tascas como a do senhor Ismael já não há muitas.
Mas a cara do senhor Ismael naquele dia não era para brincadeiras. Quase que me
fulminava com os olhos. Foi quando vi entrar aquele senhor de bigode à Chalana,
porém branco, apesar de naquele tempo ainda não haver Chalana, só Simões, Cavém,
José Augusto, Torres, Jaime Graça, Coluna, Eusébio e José Águas, que percebi o
que é que se estava a passar. Eu bem o vi lá ao fundo da estação, mas não o
conhecia, embora ele já me topasse. E assim, veio o nosso velho Ismaelix a
chibar-se ao senhor Ismael que o Constantino, o filho do seu amigo da outra
banda, andava para baixo e para cima nas escadinhas rolantes do Parque. E eu,
com uma lágrima no canto do olho, perguntei ao senhor Ismael se tinha pudim
flan e pedi-lhe encarecidamente, não diga
nada ao meu pai.
Memórias de outros tempos em quase tudo era... diferente!!
ResponderEliminarTambém jogava bem ao pião.
Aqui chamavamos ao pião, sobre o qual se lançava com toda a força e pontaria o nosso, o pião das "nicas" pois era o que apanhava coça dos outros!
Ahhh... e naquele tempo sobremesa, era um luxo do caraças!!
Nas tascas havia aquele pudin flan numas forminhas de alumínio ou então laranjas e melão.
EliminarAtrasado para o jantar e a pedir segredo com medo do pai...já todos passamos por isso.*
ResponderEliminarEm minha casa tínhamos o feliz costume de comermos todos juntos, excepto nos dias que o meu pai, trabalhando por turnos, não jantava com connosco. Isso foi muito bom na nossa educação e aquisição de valores.
EliminarFizeste-me recuar no tempo com as mesmas brincadeiras, já que eu não era nada dada a bonecas e afins, talvez por muita cumplicidade com o meu irmão com a diferença apenas de um ano.
ResponderEliminarSempre levei a marmita para o trabalho, mas não havia Ismaeis que aqueciam a comida, e os meus sempre levaram e levam.
Adorei este teu espraiar de recordações.
Beijos
Hoje em dia já não é nas tascas. Há microondas nos serviços.
EliminarBeijinho.
Nunca soube lançar piões mas sabia apanhá-los. E era um ás a saltar à corda. E por falar em escadas rolantes, não me recordo a primeira vez que subi ou desci umas escadas rolantes... provavelmente teria sido em Lisboa; não creio que na “província” as houvesse ainda naquela altura...
ResponderEliminarBoas recordações.
Provavelmente não haveriam. Eu também saltava bem à corda, mas no meu tempo isso era mais brincadeira para miúdas e nós "homens" só entravamos na brincadeira para mostrarmos que éramos melhor. Machistas! LOL.
EliminarMeu querido amigo
ResponderEliminarpassando para agradecer a visita e ler este nostálgico e belo texto...voltei atrás no tempo e regressei às raízes, na minha planicie dourada.
Um beijinho
Sonhadora
Quando a nostalgia é de coisas que nos deliciavam, vale a pena recordar.
EliminarAinda sei lançar piões e apanhá-los na palma da mão...escadas rolantes ainda me assustam um pouco...
ResponderEliminarBelo relato.
Agora eu já as começo a dispensar. para ver se abato a barriguinha opto muitas vezes pelas escadas paradas.
EliminarSalvo erro, foi no Grandella que subi as primeiras escadas rolantes, mas o que eu adorava era mesmo subir e descer as da estação do Parque :-)
ResponderEliminarQuanto aos piões, parece que estão outra vez na moda, mas já não são aqueles belos de madeira. Agora são cheios de luzinhas psicadélicas d alguns até têm música...
Abraço e bom fds
As do Parque eram mais fixes. Enormes :)
EliminarÉ, as escada rolantes do Grandella eram sempre uma novidade. E lembro-me de uma tia avó que tinha medo de andar nelas, pelo que a minha mãe tinha de ir de braço dado com ela... :)))
ResponderEliminarQuanto às marmitas, temo que seja verdade, que muita gente já as leve de casa, para poupar no almoço. Não conheço é nenhuma tasca em que sejam aquecidas, mas já há empresas que têm micro-ondas onde os funcionários o podem fazer. Sinais dos tempos...
E porque é que o pai não podia saber que o Constantino dera umas "voltinhas" nas escadas rolantes da estação? Porque devia estar a trabalhar e não a brincar? Naquele tempo os pais eram muito mais exigentes com os filhos jovens, é certo. Por vezes penso que caímos no extremo oposto, que nós, que fomos essas crianças, somos condescendentes demais com os nossos filhos... ;)
Beijocas!
Principalmente a minha mãe, desde que eu saía de casa até que chegava estava sempre com o coração nas mãos, pois tinha muito medo que eu trabalhasse em Lisboa. Afinal eu só tinha 13 anos :)
EliminarEsta história é deliciosa e fez-me rever semelhantes vidas...
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