Não se faz. Isto não se faz. Isto não se faz a uma mulher
como eu. Não há direito fazerem-me isto. E fungava, e limpava os olhos rasos de
lágrimas e tapava a cara. Não, mas isto não pode ficar assim, não pode. Quem é
que aquele inspetor pensa que é? Pois eu vou dizer-lhe quem sou, ele vai provar
do meu veneno. E fechava os dois punhos e elevava os braços aos ares com os
punhos fechados e ao mesmo tempo lançava a cabeça para trás. Depois, desatava os
nós do lenço preto, ajeitava o cabelo, colocava de novo o lenço na cabeça e
dava-lhe dois nós. Não, não, isto não fica assim, intimar-me, ele?
Interrogar-me, ele? Mas quem é que ele pensa que é, hein? Mas quem é que ele
pensa que eu sou, hein? Sente-se aí minha senhora, o farsante, a tratar-me por
minha senhora, quando sempre me tratou pelo meu nome próprio. Cínico! Cínico é
o que ele é. E depois vem com falinhas mansas, patati, patatá, coisa e tal, que
tinha que me interrogar, que não era um simples proforma, era a obrigação dele,
não que eu fosse suspeita, mas porque eu poderia saber mais do que tinha
referido e escrito e outras palermices sem nexo. Mas interrogar-me? E aquele
desgraçado do Sacadura ainda me fala em álibis e outras coisas cretinas do
género. Álibi, eu? Estava onde, minha senhora, na noite em que mataram Isabella
Vicentini? Farsante! Farsante, cínico e não lhe chamo mais nomes porque é um
agente da autoridade. Um pulha! Estava onde, minha senhora, na noite em que
mataram a corista? Minha senhora? Minha senhora, o raio que o parta, a mim que
toda a gente sabe o meu nome e ele com muito mais propriedade. E tem testemunhas
disso? Testemunhas? Ai meu Deus, que eu passo-me. Então eu digo-lhe, para o
processo, é claro, que passei a noite toda na Quinta do Conde (e ele sabia-o
bem) e de repente pergunta-me se eu tenho testemunhas? Palerma! Ele paga-mas,
ai paga-mas ou não me chame Francisca! Pois este anexo é para isso mesmo. O
pulha do Ismael Sacadura Flores passa a noite comigo, na minha cama, numa
casinha simples mas muito séria, na mesma rua onde, dessa sim ele devia
desconfiar, onde mora uma misteriosa senhora de Trás-os-Montes, que nessa noite
não pôs as pantufas em casa, desculpando-se que ouviu uns passos no andar de
cima e pergunta-me por testemunhas? Pois eu não disse que ias provar do meu
veneno, não disse? Então chama-me de novo à Judiciária e vais ver quem é a
testemunha. És tu, meu pulha, és tu mesmo. E depois quero ver se escreves isso
no processo. Dormes comigo na cama e perguntas-me se tenho testemunhas. Sabes o
que é que eu te digo, meu inspetor de meia-tigela, meu Poirot de pacotilha, meu
Sherlock Holmes de Sacavém, meu Gabriel Allon da Gomes Freire, sabes? O
inspetor Sacadura dorme comigo na cama pelo menos uma vez por semana, o pulha,
sempre naquela de que mais dia, menos dia, resolve o assunto com D. Inocência,
o grande mentiroso e chama-me para depor, depois de eu lhe ter dado de mão
beijada o meu manuscrito? Ele paga-mas! Paga-mas!
O jovem Espinheira que só viria a descobrir este anexo
muitos anos depois, quando já não era jovem, uma vez, em conversa com o
inspetor Ismael Sacadura Flores, insinuou-lhe que ele sabia muito mais sobre a
Francisca do que ele dizia nos breefings
sobre o caso. E, de repente, lembrou-se do dia em que o inspetor, em Cacilhas,
com um embrulhinho feito pelas mãos do próprio Ismael Gusmán, o meu amigo
galego dono da tasca da Rua dos Correeiros, com meia dúzia de pastéis de
bacalhau e quatro croquetes de sangacho de atum, apanhou o autocarro para a
Quinta do Conde.
Ah, Constantino, o que tu já me fizeste rir!!!
ResponderEliminarDepois das boas notícias que ontem recebi, estas gratificantes risadas foram a coisinha melhor que me poderia acontecer.
Bem-hajas, por isso! :)
Com que então o Inspector e a Francisca...eu, hein!!
Mas olha lá, ó Constantino...não achas que esse álibi é altamente improvável? Lol
Beijinhos.
Desejo-te um óptimo fim de semana.
Muito feliz pelas boas notícias e satisfeito por rires de novo.
EliminarQuanto ao álibi é esperar para vermos.
Beijinhos.
Realmente essa Francisquinha é fresca... e o Inspector a pedir testemunhas...depois de ter estado com a pobre na sua casinha simples, onde chegou com um embrulhinho de salgados que, entre outras coisas se deve ter deliciado a comer...oh meu Deus, mas onde é que isto nos leva?*
ResponderEliminarEu acho que ela ainda está é fresca que nem uma alface.
EliminarAs vidas duplas sempre existiram e existirão... fazem parte da vida!
ResponderEliminarAté digo que são necessárias!
Um abraço.
É uma duplicação da crise :)
EliminarOutro abraço para ti, Manuel!
Com as mulheres não se brinca!
ResponderEliminarAbraço.
... e o Ismael que o diga!
EliminarOutro!
Relato bem interessante e apimentado! Apetece perguntar também, com a personagem:
ResponderEliminar«Mas quem é que ele pensa que é, hein?».
bjs
E será que lhe responde, Ana? Será, hein?
EliminarBeijinho.
ia bem atestado com esse farnel. e se bem o pensou bem o fez
ResponderEliminarkis .=)
Ele ía lá para levar algo de comer e comer algo... O melhor é eu ficar calado.
EliminarBeijinhos.
Lá no meu canto, comecei por me emocionar com o pranto - sim porque tudo que o que à Francisca afligia, me atingia - mas depois, depois comecei a achar demais, um desconchavo, aquele amontoado de palavras assanhadas e bravas. O que menos gostei, quase me arrepiei, foi daquele confessar intimo de partilha da cama... a minha Francisca... e depois mais tarde saber que o Flores, pela omissão, lhe deveria favores... Vou ver mas é se fico com um grão na asa e ir esquecer tudo... direitinho a casa.
ResponderEliminarÉ o que dá comer pastelinhos de bacalhau na intimidade da sala de estar, com lareira e vinho tinto de Palmela.
EliminarQue pulha esse Ismael Sacadura Flores! Passa a noite com a Francisca e a interroga querendo testemunhas kkkkkkkkkkkkkk
ResponderEliminarMereceu o anexo colocando às claras o caso.
Fez me rir um cadinho.
Beijokas doces
A Francisca é um poço de surpresas. Vai ver que ela...
EliminarBeijocas.
Que grande cara de pau, a desse inspetor! A Francisca que meta a boca no trombone, que ele merece! Testemunha, se ele estava lá partilhando o mesmo vale de lençóis? Que grande crápula!!!
ResponderEliminarBeijocas!
Já não tem idade para isso. Ups... Ele é polícia ou bandido, vamos lá a saber...
EliminarBeijocas.
É a face oculta (negra?) da lua.
ResponderEliminarBeijo
São as fases!
EliminarBeijo.
Pois olha que a D. Francisca, para uma senhora de lenço preto na cabeça, até é muítissimo culta! Até sabe quem é o Gabriel Allon! Quem diria! Isto de onde menos se espera...
ResponderEliminarAbraços:-)))))
Ele há pessoas que são autênticos boiões de cultura.
EliminarÉ óbvio que não se deve brincar com os sentimentos das mulheres! A minha aposta vai no sentido de um 'saborosíssimo' prato servido gelado pela dita senhora!
ResponderEliminarAté já, já. : )
Duplicidade de vidas...e que "álibi"...pois é, pois é...de onde menos se espera lá vem bomba:)
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