Ekatrina Smirnova tem andado um tudo-nada triste nestes
dias. Talvez o facto de estar longe a sua afirmação na Companhia de Bailado
também lhe esteja a afetar o espírito. Quando saiu do seu país, o protocolo não
era muito claro, mas ela tinha decidido que, custasse o que custasse, só
regressaria quando já fosse uma grande bailarina. Talvez prima. Talvez a
relação com o Chefe de Brigada da Polícia Judiciária, Ismaelix, não esteja nos
seus melhores dias. Ekatrina , desconfiada e ciumenta, não gostava nada dos
olhares que o homem de bigode à Chalana, porém branco, com uma longa trança, como
que saído de uma banda desenhada de Uderzo,
trocava com a sua colega de quarto, a corista de revista no Parque Mayer
cujo nome, bem sabemos, é Isabella Vicentini. Talvez a missão que ela
considerava secreta, tão classificada que até o narrador teve dificuldade em
saber qual era, que lhe tinha sido incumbida e de que não poderia falhar sob
pena de não só pôr em risco toda uma carreira na qual havia apostado todas as
suas gotas de suor, não raro algum sangue e muitas, muitas lágrimas, mas também
a sua própria vida, pois ela sabia que com os Serviços Secretos não se podia vacilar.
Talvez nunca se tivesse acostumado à comida mediterrânica de base nacional
constituída por batata e feijão catarino, couve ratinha e toucinho, de quando
em vez um frango de capoeira ou um par de alheiras de Mirandela que uma
familiar, bem provavelmente prima, de uma misteriosa senhora de Trás-os-Montes,
sua vizinha do quinto andar, não sei se esquerdo ou se frente, pois do direito
não é com certeza, lhe trazia lá da terra quando vinha fazer limpeza de rotina,
pelo menos o pó e ver se estava tudo no lugar, enquanto a prima passava a sua
temporada no Canadá, já que a sua condição de bailarina requeria uma dieta
especial para nunca aumentar o peso e poder voar como, anos mais tarde, o Zé
Gato voaria entre os postes defendendo a baliza do Glorioso. Talvez Ekatrina,
que conhecia bem o segredo da medalha que a sua companheira de quarto, a
corista de revista no Parque Mayer, acho que já tinha escrito isto acima,
possuía, ou guardava, ou escondia, ou exibia, ou liberava, ou o diabo que a
carregue pois ela, nunca lhe tinha posto a vista em cima e se o tinha, não era
a medalha da missão, mas sim uma imitação falsa, ou o seu pai, desaparecido sem
deixar rasto e sem nunca se ter sabido o motivo, não constando que alguma vez
tenha ido ao Uzbequistão para comprar cigarros ou apanhar uma bebedeira de
vodka a Helsínquia, não fosse ele um exímio ourives, quiçá o melhor de, à época
assim chamada, Leninegrado, quiçá o mais famoso também. A ela, coisas do ouro
nada lhe escapava e talvez fosse, por isso mesmo, que de entre todas as
bailarinas do Bolshoi, ela a escolhida para a missão. Talvez porque Ekatrina
soubesse que, à volta de uma taberna onde se comiam belos petiscos, onde
intelectuais se sentavam a ler jornais e a beber ginjinhas, onde se faziam os
mais famosos pasteis de bacalhau da Baixa lisboeta mas que ela não comia pois
era obrigada a dispensar os fritos, onde um pide se sentava num canto e nunca
tirava o chapéu preto da cabeça, onde rufias discutiam se o fado das tabernas
era mais puro que o fado dos salões, onde navalhas não serviam apenas para
cortar a côdea de um pão mais duro ou a casca de uma castanha crua, rondavam,
entravam e saiam estranhos suspeitos de se virem a interessar pela medalha, sombras
bizarras, fossem judeus coxos e velhos ou estranhos médicos dos quais não
consta nenhum registo em nenhum Hospital conhecido, fossem marinheiros de
suspeito comportamento com as mulheres, fossem velhas misteriosas e de
suspeitas viagens cá e lá entre Lisboa e a Quinta do Conde, entre a Quinta do
Conde e Toronto, entre Toronto e Lisboa, com fugazes passagens por Mirandela,
fossem almas vencidas, filhas de suspeitos sapateiros de apelido Bate-sola que
é nome que não existe lá na sua longínqua União Soviética. Talvez ela soubesse
que entre as mulheres desta história houvesse amor e ciúme. Talvez que para ela,
todos fossem suspeitos e mais aqueles que o inspetor Ismael Sacadura Flores
iria juntar ao processo que se abriu após o vil, sanguinário, horrendo,
indescritível crime que vitimou a sua companheira de quarto, corista de revista
no Parque Mayer, com sete facadas, isto eu não tinha dito ainda neste capítulo.
Nem que tudo isto eram cinzas e eram lume. Ou talvez porque ela soubesse que
uma desgraça estaria em breve para acontecer. Talvez por isto tudo, Ekatrina
Smirnova tem andado um pouco triste, como se tudo isto fosse um fado. Ou talvez
porque ela não saiba como é que há de dizer ao seu amado escritor e narrador destes
contos que o gajo é um incorrigível chato. Quiçá.
Ena , com (E)Katrina, isto hoje foi a eito, nem meteu intervalo...
ResponderEliminarE eu que ainda vinha ressacado da piela, com o desgosto do que tinha ouvido no confesso romance entre a Francisca e o Ismael Sacadura Flores.
Rogério é quando menos esperamos tufa! Mas há mais marés que marinheiros...
EliminarEu acho que a Ekaterina sabe mais do que diz. Sabe mais do que o narrador pensa!
ResponderEliminarSão umas matreiras é o que elas são. E deixam o narrador com a cabeça à roda.
EliminarAi e salta-lhe a boca para a verdade, a dela claro que eu cá nã te acho chato acho-te chatérrimo
ResponderEliminarkis :=) (sabes que é a caçoar)
Quem diz a verdade não merece castigo :)
EliminarEm pulgas para ler a continuação ... : )
ResponderEliminarE de premeio outras histórias sem creme, quero dizer sem crime.
EliminarA Smirnova, com ambições a prima (dona?) que não se acanhe, porque tudo isto, todos os Ismaeis e todos nós, um dia seremos pó, cinza e nada!
ResponderEliminarSe ela acha mesmo que o seu amado escritor é um chato de galochas, pois que lho diga abertamente. E sem quiçás!
É bem feito!
Aonde já se viu ele ter tido o despautério de ter deixado o Rogério num desgosto tão profundo...que até corta o coração??
«Quem é que ele pensa que é, hein?»
;)
Só pode ser um chato, Disso não há dúvidas!
EliminarTudo isto é triste, tudo isto é fado! E numa desgarrada tal, que nem sequer há lugar para uma pequena pausa, para recuperar o fôlego... :)))
ResponderEliminarResta esperar para ver se os "fadistas" desfalecem por falta de leitores ou... de ar! :D
Beijocas para o escrevinhador!
Acho que é por falta de leitores :)
EliminarFico à espera de mais... :))
ResponderEliminarÉ mais ou menos, dia sim, dia não.
EliminarDurante a leitura perpassam no ar aqueles cheirinhos bons vindos da cozinha da tasca...
ResponderEliminarOra saia mais um pratinho de bolinhos de bacalhau e um copo de três aqui para a mesa do canto!!
Oh, Manel...agora fizeste-me rir com vontade!!
EliminarHaja o que houver...
bolinhos de bacalhau e copos de três,
é o que mais interessa a este freguês...
Desculpa lá, Constantino!!
Uma beijoca para os dois.
Está a sair e quentinhos, à maneira! E o tinto, queres verde ou maduro?
EliminarMeu amigo
ResponderEliminarGostei da narração onde nem faltaram as facadas...um belo fado (digo, uma bela história)...ADOREI e vou voltar mais vezes.
Um beijinho
Sonhadora
Cheiros e prosa criam um ambiente excelente para a história.
ResponderEliminarbj
Tenho que ler alguns episódios anteriores para apanhar o fio à meada! : )
ResponderEliminarMuito bem escrito... como sempre.
Abraço
Quando tiver tempo e paciência para aturar este chato :)
EliminarPara já são todos suspeitos mas este capítulo ainda veio dar mais confusão à desconfiança e deve-se ler sem perder o fôlego, ou melhor sem largar as várias pontas de suspeitas. Tu és genial:)
ResponderEliminarEu tomo todas as manhãs um produto para me ajudar a respirar e se calhar é por isso que estes textos me saem de rajada :)
EliminarApostar o tempo onde vale efectivamente a pena. Gostei de o dispensar aqui. Parabéns pelo texto.
ResponderEliminarabraço
cvb
Ultimamente está tão prolífico que tenho dificuldade em acompanhar.*
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