Foi só quando o Espinheira, depois de ter feito umas
investigações a antigos arquivos por causa de uma herança de umas casas na
Baixa, veio ter comigo e me falar de um crime ao qual ele não tinha ainda encontrado
o desfecho, ocorrido muitos anos antes na Rua dos Correeiros, 43, 6º andar, que
as nossas relações começaram a ficar tensas. Primeiro porque o Espinheira não
tinha nada que meter o bedelho onde não era chamado, já que o crime de que ele
estava pretensamente a falar nunca ocorrera, uma vez ter sido uma invenção
minha para o livro, que por acaso ainda não tem nome mas que estou tentado a
chamar-lhe qualquer coisa do tipo “Crime à sombra de um carapau de escabeche” .
Em segundo porque, indiscretamente ou por distração, poderia vir a público
revelar ou insinuar quem tinha sido o assassino de Isabella Vicentini, já que
quando me referiu a ausência de desfecho, frisou bem o advérbio ainda e isso
estragar-me-ia o enredo. Pois assim, quase de costas voltadas, entramos na
tasca de Ismael Gusmán, que era até há bem pouco tempo, um local de puro relax,
um local onde todas as tensões se quebravam, um local de onde até casais
desavindos saiam de braço dado e de onde outros, casais não formalmente
constituídos, eventualmente adúlteros, saiam à procura de uma pensão com ou sem
águas quentes e frias. Era assim como que um antro de paz e reconciliação e
toda a gente sabia que não havia discussão, mau estar, tensão pessoal ou
conflito protoexistencial que resistisse a um pastel de bacalhau e a um tinto
das Gaeiras, em vez de um crepe de rebentos de soja e a uma coca-cola gelada,
fruto da globalização, da imigração chinesa e da invasão imperialista. A velha
laranjada AUA já era, a gasosa La Casera, que era muito apreciada, apesar de
ser um produto espanhol, facto que muito orgulhava o meu amigo galego, dera o
seu lugar à sevenape e à sepraite. Mas na
tasca do Ismael mantinha-se a tradição e ainda se podia apreciar um bom pastel
de bacalhau, talvez herança dos tempos em que Fernandinha brilhava naquela
cozinha e o tinto, que agora jorrava de caixas de cartão, já não era bebido em
fininhos do Cartaxo, mas ainda assim, Ismael tinha garbo em vender do melhor e,
se algum cliente o pedia, numa prateleira superior, a fazer lembrar o antigo
terceiro anel do Estádio da Luz, deitadas para molhar a rolha, como deve ser,
lá tinha ele uma boa dúzia de garrafas de vinhos DOC e VQPRD, das melhores
regiões nacionais.
O dia estava fresco, era o fim de uma manhã de início de
Outono, pedi dois pastéis de bacalhau e uma fatia de pão, só para fazer
boquinha, mandei abrir uma garrafa de tinto da granja da Amareleja, ignorando se
o Espinheira o merecia ou não, o meu amigo Ismael perguntou se íamos almoçar e
eu perguntei-lhe, como resposta, o que é que era a ementa nesse dia. Ele
gaguejou um pouco, começava já a desculpar-se dos tempos modernos e tal, falava
em hambúrgueres e bitoques, eu abri-lhe um pouco mais os olhos do que ele
estava à espera e já curvado nos seus setenta e tal anos, deu meia volta e
soltou uma sonora gargalhada e, passada que não era ainda uma meia hora já nos
trazia duas belas postas de bacalhau à lagareiro com batata a murro e tudo, que
lá nisso, o galego nunca deixou os seus créditos por mãos alheias. E entre
conversa de circunstância do tipo, o Espinheira a esfregar as mãos e a dizer
que com este tempo este azeite quentinho
com alho é que vai saber bem e veja lá, os chineses, não sei quê e tal e eu
então disse-lhe no meio de duas garfadas, Pronto!
Está decidido. E ele, o quê? E
eu, já sei como resolver todo este
imbróglio. E ele, como assim? E ainda
acrescentou, não estou a perceber. E eu, mas primeiro tem de me dar uma garantia.
E ele, oh senhor Constantino só para lhe
ver esse sorriso número vinte e sete, dou-lhe todas as garantias. E eu, não brinque porque isto é coisa séria e tem
que ficar combinado. E ele, combinado
o quê? E eu, você não fala do crime
da Rua dos Correeiros a ninguém, não menciona o nome de Isabella a ninguém, não
insinua, sequer, que alguém morreu com sete facadas num sexto andar de um
prédio da baixa a ninguém, não diz… E ele, interrompendo-me, está bem, mas diga lá de uma vez por todas o
que me quer dizer senhor Constantino, isso nem parece seu, por aí a enrolar as
coisas. E eu, pronto, não se exalte
Espinheira, mas você é que é culpado por me estar sempre a interromper. E
ele, desculpe, e eu, pronto, desculpado e ele, obrigado, e eu, não tem de quê, mas você garante-me o que lhe pedi e eu meto-o na história
como um jovem estudante da Faculdade de Letras e avençado do Estado a colaborar
com a polícia judiciária, mormente com o inspetor Ismael Sacadura Flores. E
antes que ele me perguntasse como é que eu sabia que ele tinha andado a estudar
na Faculdade de Letras, acrescentei, sim
porque eu sei muito do seu passado e você vai ver que não se vai arrepender de
fazer parte de algumas páginas do meu livro. Apertamos as mãos e acabamos
de comer o nosso bacalhau à lagareiro, além de termos brindado à Isabella
Vicentini e à Fernandinha, à medida que o vinho recuava na garrafa e avançava
na nossa circulação sanguínea, brindamos também ao fio de ouro com uma
medalhinha, ao velho Ishamil Baruch que é coxo, à idosa e misteriosa senhora de
Trás-os-Montes, ao falecido Günter Freitag e às pensões com águas quentes e
frias.
Irresistível mesmo, foi, após o cafezinho e aquele bagaço de
vinho verde que repetimos, o Espinheira ,já a cambalear, tirar dois caderninhos
do bolso do casaco, um deles de capa preta, mostrarmos e dizer-me, este você reconhece e eu, sim esse é o manuscrito de Francisca, e
ele, acertou e eu, então e outro? E ele, calma e eu? Tanto mistério porquê? E ele, já
vai ver, e eu, O que é isso? E
ele, é um anexo. A páginas 145, diz-me entusiasmado, Francisca refere-se a um anexo e só passados estes anos todos é que eu
o vim a descobrir e nem lhe digo onde. E eu, onde? E ele, não lhe digo. E
eu, diga lá. E ele, não. Pediu o seu terceiro bagacinho e
só visto, porque contado não tem graça, caiu sentado no banco corrido da nossa
mesa na tasca do Ismael e deixou-se adormecer sobre o anexo. Irresistível
aquele momento, que só visto, pois contado não tem a mínima piada.
Boa, eu é que deixei a carroça e o Constantino é que vai na guita... o ritmo disto é...limpo. Os diálogos são de estalo, da qualidade do tinto...
ResponderEliminar(tenho que lhe arranjar um editor. Tenho, sim senhor...)
Às vezes temos de ser realistas mesmo quando ficcionamos. Eu tenho muitos diálogos na vida real, parecidos com este.
EliminarObrigado.
Um abraço.
e isso é crime? pedir bagaços? quem me dera a mim ter aqui um cálice desse nectar, ma so que é bom nao vai à boca do pobre
ResponderEliminarkis :=) era sinal d
E uma cana não vai? Disfarçada de poncha é tão bom!
EliminarE eu que já me faltava uma série de capítulos para ter esta história em dia... em dia? huumm... com anexos a surgirem assim, não sei como vai ser... :))
ResponderEliminarÉ apenas uma questão de mais Ismael, menos Ismael. :):)
EliminarA partir do 3º pastel de bacalhau, acompanhado por um copo de três, estou semopre pronto para me concentrar em qualquer conversa... devidamente sentado à mesa e com o guardanapo ao pescoço!!
ResponderEliminarE venha o petisco seguinte :)
EliminarHá malta que não aguenta a bebida, uns reles 28 bagaços e metem-se logo a testar a teoria da gravidade.
ResponderEliminarE às vezes caem. Fraquitos.
EliminarEpá, também não vale a pena o Espinheira e o Constantino zangarem-se por tão pouco, que afinal história inventada não é motivo para isso! Quer dizer, exceto no caso de plágio, mas essa já é outra conversa! :)
ResponderEliminarMas pronto, fizeram as pazes como de costume na tasca do galego e depois, no auge do suspense, quando finalmente nos seria dado a conhecer o anexo de Francisca... PUM! ele cai de bêbado em cima do dito??? Que maldade!!! :)))
Beijocas!
davas-lhe mais uns bagaços e logo abria-te o jogo ou seja dava com a boca no trombone, eu tb sou assim só digo depois de uns tantos 30 ou 39 daí para cima é ganho
ResponderEliminarkis .=)
Pelo menos era bagaço de vinho verde...pinga de qualidade!Mas, se ainda existisse a laranjada AUA talvez tudo isto fosse evitado...*
ResponderEliminarCada vez mais intrigante e nem com bagaços te disse:)
ResponderEliminarÉs genial rapaz:)