segunda-feira, 13 de junho de 2011

39. Saraiva


D. Eugénia era amiga de casa da nossa família. A minha mãe e D. Eugénia foram amigas desde a infância e por isso não me era difícil conhecer algumas confidências. Através da porta semicerrada do meu quarto, onde eu passava quase todas as tardes a ler os livros de banda desenhada, camuflados entre os manuais de História Universal e as Selectas (naquela altura usava-se o c antes do t) Literárias, ouvia as que queria, as que não queria e, houve tempos até, as que nem entendia. Foi assim que soube o que tinha acontecido ao Saraiva.

Os rapazes, entre um jogo de pião e um de berlinde, entre a barra do lenço ou uma partida de futebol no terreiro para lá do bairro, reuniam-se na esquina do prédio do Dinis para dois, ou muito mais, dedos de conversa. Quantos toques um gajo era capaz de dar com uma bola de catchú, quantos bilas o patife do Jaime tinha hoje abafado ao artolas do Amadeu e até, desculpem a dureza da expressão, quantas cada um tinha batido à conta de um postal ilustrado que o pai do Chico Peruca (alcunha devido ao capachinho que o seu próprio pai usava e que deixava o Chico em brasa) tinha trazido do estrangeiro e que passava de mão em mão. Imaginem o conteúdo. E era no meio destas parvoíces, que nos faziam rir muito, que de cada vez que passava a Susaninha, o Saraiva dizia sempre em voz alta, ainda um dia vou tomar chá com a Susana. Tantas vezes a Susaninha ouviu isto que, um dia, se dirigiu ao grupo onde alguém terá pensado, lá vem chapada, mas não. E para espanto geral, a Susaninha que já tinha catorze anos e mandava umas maminhas muito gabadas na trupe, disse ao Saraiva que na sexta-feira às quatro, a mãe dela gostaria que ele fosse lá a casa tomar chá. Não sabemos o que terá passado pela cabeça do Saraiva, ficou vermelho, ficou gago, durante largos minutos não disse coisa com coisa, deve até ter pensado no postal ilustrado do pai do Chico Peruca.

Esta parte da história ouvi-a eu contar a D. Eugénia em casa com a minha mãe. De calções com suspensórios, sapato de verniz e lacinho numa camisa branca impecável, lá estava o Saraiva, às quatro da tarde em ponto como combinado, para tomar chá com a Susaninha. Só que, à revelia de D. Eugénia, nem uns biscoitos que a mãe tinha preparado, vieram para a mesa. A Susana fez o Saraiva tomar tanto chá que este, indisposto, viria mesmo a desmaiar. Ambas, mãe e filha, muito aflitas, sem telefone em casa porque isso era um luxo, correram escada acima a chamar o Dr. Crispim que morava no 3º Esquerdo e que, felizmente, se encontrava em casa naquela sexta-feira, com um ataque de bexigas. O Dr. Crispim, auscultou o Saraiva, apalpou-lhe a barriga, observou-lhe os olhos, viu que estava tudo bem com o garoto, deu-lhe a cheirar um éter que o fez acordar de imediato e, sem saber a causa do problema, por omissão da Susaninha, aconselhou a que, mal ele se recompusesse, lhe dessem uma chávena de chá a beber. Esta história que não foi contada até hoje, nem por mim nem pelo Saraiva, não acaba sem vos dizer que este meu amigo ficou uma semana de cama a curar um surto de bexigas e que, naturalmente, nem teve disposição para pensar no postal do pai do Chico.

Nota:  O que vos contei hoje veio-me à memória um dia destes em que li que há uma associação de mulheres que pretende que sejam incluídos o piropo e o assobio na lista de crimes por assédio sexual. Longe de mim qualquer comportamento machista, nem mesmo em pensamento, mas acho ou que a história ou está mal contada ou estamos a entrar num extremismo conservador que nem na comunidade Amish dos Estados Unidos da América, provavelmente, existe. Mas adiante que o objectivo do Constantino foi contar um conto a que acrescentou um ponto.

Texto e foto do autor (pernas de uma amiga). Todos os direitos reservados (a minha amiga reserva as pernas para os fins que ela bem entender, nomeadamente caminhar).

24 comentários:

  1. O conto está muito bem "esgalhado", com postal, ou sem postal. lolol
    Se o piropo é assédio, mandem-me já prender mas na lista de onde tirei este, há uma meia dúzia irresistíveis:
    Tens um cu que parece uma cebola!
    É de comer e chorar por mais!
    Lololol

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  2. Boa crónica de costumes
    A nota merece a minha ovação.
    Sou da mesma opinião.

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  3. Um piropo bem mandado... é uma peça de arte!!

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  4. Aqui não dizemos piropo. Dizíamos " fulano mexeu com beltrana", ou paquerou, ou, muito antigamente, fulano "arrasta um bonde por sicrana" ( o que, convenhamos, deve ser difícil a beça, arrastar um bonde!). Mas eu, do alto dos meus sessenta e um anos, lembro com muito carinho e saudades dos tempos em que os homens me davam assobios ou "mexiam" comigo ao passar de mini saia pelas ruas! Jamais reclamei, por mais grosseira que fosse a "cantada; afinal, sempre era um elogio! Lembro que meu pai assobiou para mulheres até morrer, o que deixava minha mãe enlouquecida...

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  5. Aposto que essa tal associação de mulheres é constituída maioritariamente por exemplos de fealdade extrema. lolololololol.

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  6. E onde pára actualmente o tal postal?

    Rafeiro Perfumado disfarçado de anónimo, pois o teu blog não me deixa colocar a autenticação!

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  7. Para além do conto, com a criatividade a que já nos habituou, gostaria de saber se há alguma mulher que não se tenha sentido lisonjeada por ouvir um assobio à sua passagem.
    CBO (cronicasdorochedo)

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  8. Olá, Constantino!

    Lá diz o ditado:"cuidado com o que pedes", e o coitado do Saraiva recebeu mais do que pediu...
    Está lindamente contado, e ousado para um mundo cada vez mais regido pelo "correctamente político", ideia que levada ao extremo é uma idiotice completa, eu acho...

    Um abraço.
    Vitor

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  9. Eh pah! Os piropos são sempre bem-vindos, desde que não sejam ordinários demais. Só mulheres que não gostem delas próprias é que não gostam de piropos!

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  10. Será que eu sei quem és? Ou estarei a confundir-te com alguém de um blogue do passado??

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  11. Constantino!

    Correcção: leia-se politicamente correcto em vez de correctamente político; distracção - acontece...!

    vitor

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  12. Nunca achei piada a piropos, nem a assobios, mas daí a considerá-los assédio sexual, vai um grande passo. Esta gente anda toda doida e fundamentalista, é o que é! Até porque já os antigos diziam, mulher honrada não tem ouvidos. Ou se os tem faz-se de mouca... :)

    A história do Saraiva que se entupiu em chá e ainda apanhou bexigas, está uma delícia... :D

    Beijocas!

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  13. eu j´escrevi sobre isso do piropo eu acho mal assim nao eleva o astral da mulher quando é assobiada pelo camionista de braço de fora do camião e cigarro na boca desdentada
    kis .=)

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  14. Excelente prosa!! Os meus parabéns!

    Um beijinho
    da
    Assiria

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  15. Já consigo comentar com o meu nome! E o postal, afinal, onde pára?

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  16. Constantino!
    Hoje, numa passada mais rápida, já que as minhas perninhas ( só não digo pernocas para não dar ares de gabarolice) estão a ficar mais musculadas e vigorosas, venho aplaudir o comentário do nosso amigo mfc.
    É isso mesmo!
    Não há mulher que não se tenha sentido lisonjeada com um piropo "bem mandado com arte".

    "És de gritos, de apitos e de três assobios" seguindo-se os 3 assobios, sendo o último bem prolongado, foi um piropo que ouvi muitas vezes na juventude.
    Hoje a vulgaridade é tanta que até o piropo caiu em desuso. Sim, porque sendo o piropo um elogio, qual é a mulher que se sente elogiada ao ouvir frases ordinárias?:-))
    Sigo na minha caminhada.
    Até breve Constantino.

    PS. Constantino, um dia ainda me há-de explicar qual a utilidade da moderação de comentários.

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  17. Ó Rafeirito!
    A tua jove que saiba deste teu interesse desmedido pelo postal, vais ver como elas te mordem!!!!

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  18. Existem cantadas e...CANTADAS!...

    Só sendo uma mulher para saber a diferença entre as duas :)

    Fique bem, amigo.

    Abraço,

    Cid@

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  19. Rafeiro tenho mesmo de perguntar ao Chico Peruca pelo paradeiro do postal.

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  20. Janita, no início do blog houve um tipo que primeiro começou a provocar-me e depois começou a tratar mal os comentadores. Tive de chegar a este estado de moderação. Peço desculpa por incómodos que possa trazer aos outros comentadores mas assim estamos todos mais protegidos.

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  21. Pseudo, de facto ando nestas lides há muitos anos, mas não sei se nos conhecemos.

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  22. Mais uma história que me fez rir até às lágrimas e recuar no tempo em que...ai coitados muito sofreram comigo:):):)

    Quanto a essa associação de aparvalhadas versus frustadas, nem sei o que dizer! Há lá melhor coisa que ouvir um piropo e comparar isso com assédio sexual, só de gente doida!

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