No momento em que despejei a última gota de whisky no copo ouvi um grito. Na verdade não foi exatamente um grito, mais se assemelhando a um suspiro. Um ai que se situava entre a dor e o desespero com um não sei quê de resignação. Ela estava a dar as últimas e precisava desabafar.
Praticamente em discurso direto, quase sem deixar que eu a interrompesse, sempre me foi dizendo que a vida dela não tinha sido fácil. Durante milhares de anos, que nem ela sabe quantos, foi rocha. Foi rocha dura, sentada entre outras rochas que faziam, como ela, o papel de serem duras. Só quando os mares as começaram a fustigar e os ventos também, por ventos e marés se desfez em areia mais tarde feita praia. E os tormentos não terminaram por aí. Pisada por pés pequenos, pisada por pés adultos, mexida e remexida, foi efémero castelo de areia, desfeito por uma bola de futebol perdida na praia e recolhida pela pá de um trator. Foi um passeio curto mas aquela mudança de ambiente pareceu-lhe bem. Depois, achando-a suja, deram-lhe um grande banho de agulheta o que a deixou um pouco ferida mas fresca e de alma lavada, como nova, isenta de sal o que, como já tinha ouvido dizer, far-lhe-ia bem à tensão. Não gostou de ter sido encerrada num armazém escuro mas pelo menos ficou a saber o nome dela. À entrada um cartaz com a designação de areia lavada servia de ornamento ao portão. Que pomposo. Dona Areia Lavada. Estava a gostar de ter nome mas a felicidade durou pouco. Sujeitaram-na a um calor enorme no meio de queixas e lamúrias de arenosos familiares que por ali convergiam mas, como não há mal que sempre dure, logo veio um ser humano soprá-la, arrefecê-la, moldá-la, depois tocar-lhe e acariciar-lhe o bojo. Para que não se sentisse tão infeliz, deu-lhe um novo bilhete de identidade. Agora, para onde quer que fosse seria conhecida por D. Garrafa. Deram-lhe um novo banho, que só não foi mais agradável porque um produto, a que lhe ouviu chamar detergente, era um tipo tão agressivo que lhe fez arder o gargalo. Mas depois disso, tudo bem, juntaram-lhe umas amigas gémeas, tão bonitas como ela e acima de tudo transparentes, levaram-nas para a destilaria, encheram-nas com um licor agradável com um ligeiro travo a malte destilado e envelhecido e, quando a vida dela parecia correr melhor, acontecera-lhe isto.
Contou-me toda esta história quase de um só fôlego. Não tive coragem de interrompê-la tal era o seu empolgamento. Mas uma coisa me estava a deixar intrigado. O que é que ela quereria dizer com aquele, acontecera-lhe isto? E foi aí que a interroguei. Fez um ar de espanto e perguntou-me se eu não sabia que ela, daqui a pouco iria ser encerrada numa caixa verde de plástico, mais tarde desfeita em mil pedacinhos, triturada, lavada e de novo mandada para o inferno. E se no fim, quando a soprassem e acariciassem, não tivesse a sorte de se enredar com um pipo perfeito capaz de a encher com um prazer de 12 anos e virasse uma simples garrafa de aguarrás, enchida à pressão por uma vulgar mangueira de borracha?
Texto (hoje meio esquisito) e foto do autor. Todos os direitos reservados.
Mundo cruel. Alguém alguma vez pensou o quanto um grão de areia sofre? ;P
ResponderEliminarA vida dá tantas voltas...e as tuas metáforas estão geniais e tiro-te o meu chapéu!
ResponderEliminarUm momento de leitura que me fez pensar! Obrigado!
A vida e muitas vidas, que se transformam, que tomam outros contornos, que aliciam, que desiludem que destroiem e que tantas vezes encantam para logo a seguir desencantar.
ResponderEliminarMomentos que interpretei á minha maneira ao ler esta história que é a de um grão de areia, mas que podia ser a de alguém.
Gostei de te ler Constantino.
Manu
É sempre com imenso prazer que te leio!
ResponderEliminarMena
Transformações - e a gente, assim como a garrafa, nunca temos o poder de escolher em que nos transformar e nem como.
ResponderEliminarbeijocas
Vamos ver se consigo mandar este. Li todos os outros mas não consegui mandar nenhum
comentário. :(
Mirian
Constantino, texto meio esquisito? Nada disso. É um texto muito belo, inspirado e inspirador.
ResponderEliminarAté me deixou com uma lágrima ao canto do olho.
Tivesse eu ouvido esse relato de uma existência tão sofrida, de tanta reviravolta, tanta passagem do céu ao inferno e vice-versa, sabe o que eu teria feito?
Lavava-lhe o interior com um suave sabão de sedas, para lhe retirar todo o odor a álcool. Enchia-a de água fresca à qual adicionaria uma leve quantidade de água de colónia, pintava-lhe uns alegres arabescos à volta com as cores do arco-íris e finalmente colocava-lhe dentro um belo ramalhete de cravos vermelhos.
Poderia não ser o mesmo que ter a sorte de se enredar com o tal pipo perfeito capaz de a encher com um prazer de 12 anos ou mais, mas assim, livrava-a dessa cruel incerteza de se ver cheia dessa rasca aguarrás, através de uma vulgar mangueira de borracha.
As dores da reciclagem ela não iria sofrer mais.
Às vezes faz-nos bem sentir que está nas nossas mãos mudar o Destino às coisas. Melhor ainda, contribuir para a felicidade alheia.
Bjo.
Janita
náo achei esquisito, apenas "diferente"
ResponderEliminargostei!
beij
No ciclo das marés
ResponderEliminarremar contra a corrente
sem desperdiçar uma gota
Isto é o que dá conversar com garrafas: um textinho delicioso! :)))
ResponderEliminarBeijocas!
Uau, homem! Você realmente tem o dom da escrita!
ResponderEliminarGostei demais!
É sempre muito bom vir até aqui! :)
Jinhos,
Cid@
Preciso voltar para ler. Agora observo as fotos desta página, bem interessante o ângulo das fotos, o recorte na pessoa, ou nos objetos - a perna da amiga e as pedras, a do moinho (achei que é um moinho), e esta deste post, diferente, artística.
ResponderEliminarPreciso tempo e atenção para ler com calma. abraço
Olá, Constantino!
ResponderEliminarAté para se ser garrafa é preciso ter sorte, como aqui ficou muito bem demonstrado. Entre um whisky velho e aguarrás, que enorme diferença...
Um abraço.
Vitor
Menino, quantos copos você já tinha bebido até ouvir a voz da garrafa??
ResponderEliminarÉ o que dá tomar uisque ruim. Mas não posso falar muito, que lá pelo fim do mês, quando meu salário já acabou mas os dias ainda não, meu vinho dá-me lições de moral, falando pelo copo: que vinho ruim não é bom, que vinho barato é ruim e aquela coisa toda...
Ah, esses copos e essas garrafas tagarelas...
beijos
As voltas que o mundo dá enquanto se dá uma golada num bom whiskye!!
ResponderEliminar