quinta-feira, 9 de junho de 2011

37. Robot


Era um tipo marcado pelas rotinas. Todos os dias se levantava à mesma hora, todos os dias se deitava à mesma hora. Desde que tinha a noção do tempo que não se lembrava de ter dormido mais do que seis horas por dia. Quando se levantava, já depois da sua higiene básica diária, mesmo antes de ir tomar banho, abria a janela do quarto, quer chovesse ou fizesse sol. Colocava os cotovelos no parapeito e fumava um cigarro. Era o único cigarro que fumava em todo o dia. O pequeno almoço só variava na qualidade do doce. Escolhia no frigorífico o frasco, colocava em cima da mesa, tostava uma fatia de pão de forma e bebia um copo de leite para acompanhar. Só depois tirava a toalha do banho de volta da cintura e vestia-se. As peças de roupa, uma a uma, seguiam uma ordem austera. Primeiro as cuecas, depois as meias. Nunca usava camisola interior, para não ter de mudar hábitos do verão para o inverno. Só condescendia em vestir um blusão nos dias mais invernosos que testava na hora de fumar. O autocarro das seis e trinta e quatro, o barco das seis e cinquenta e dois, o comboio das sete e dezassete, a camioneta das sete e trinta e nove. Quando chegava ao largo da escola, entrava no café do senhor João e bebia um café sem açúcar. Seguiam-se as aulas, às oito da manhã, o almoço às doze e quinze, a partida de cartas que quer tivesse terminado ou não ele abandonava às treze e vinte e quatro. A tarde estava sob controlo e o regresso fazia-se sempre com uma precisão suíça de sentido inverso ao da manhã. Fazia parte da rotina vespertina a compra do Diário de Lisboa ao senhor Mário, o ardina à entrada do vapor. Como está senhor Mário? O ardina respondia-lhe e perguntava bem, obrigado e tu?,  estendia-lhe o Lisboa  e recebia os quinze tostões. À tardinha, quando a namorada chegava da faculdade, atravessava a rua e ia namorar. Não mais de 15 minutos.

O pior para ele eram as férias. Tudo tinha de mudar. Nas horas de se deitar ou levantar não se mexia. Isso era sagrado. O ritmo até à hora em que habitualmente saía de casa mantinha-se, mas depois ficava-lhe um vazio. Não sabia o que fazer. Tentava ler, não se concentrava. O disco, no gira-discos ficava a fazer plum, plum, plum na agulha, por largos minutos após acabado. Se pensava ir à praia, ou perdia o autocarro, ou esquecia-se dos calções, ou quando reparava nele ia com os chinelos trocados. Chegou mesmo a sair com um havaiano num pé e com um chinelo de quarto no outro.

Quando, numa daquelas manhãs dos primeiros dias de férias, recebeu um telefonema da namorada para que fossem almoçar, ficou radiante. Tinha ainda mais de duas horas para se programar, tudo iria sair certinho. Mesmo não se tratando de uma rotina não falharia. Ainda mais que hoje era o último exame dela, o curso de Economia estava terminado, em breve poderiam casar. O curso dele ainda demoraria mais um ano, mas nada indicava que algo pudesse correr mal. Ela esperá-lo-ia em Entrecampos, junto à Feira Popular. Saiu de casa e apanhou o autocarro das onze e trinta e quatro, o barco das onze e cinquenta e dois, o comboio das doze e dezassete, a camioneta das doze e trinta e nove. Entrou no café do senhor João e bebeu um café sem açúcar. Só quando deparou com portão da escola fechado para férias é que reparou que estava em Paço de Arcos. Não se sabe se a namorada continua à espera dele em Entrecampos. Nem há meio de saber, pois isto já se passou há mais de trinta anos.  

Texto e foto do autor. Todos os direitos reservados.

18 comentários:

  1. Muito bom o texto.

    Coitado, perdeu a namorada para não ter que mudar o itinerário... E o pior que essas manias vão piorando com o tempo.

    Bjs

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  2. Admirável texto. Reparei num pormenor interessante. O horário do encontro é precisamente igual (nos minutos) ao horário da rotina. Diferem em 5 horas de diferença. Foi esse factor o grande responsável por ter falhado ao encontro. É demasiada rotina a mais. lololololol.

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  3. Vai a
    -definições
    -comentários
    e tira as letras de verificação dos comentários. A moderação é mais que suficiente. :))

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  4. L.O.L., essas letras de verificação não servem para evitar o spam?

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  5. Mas o spam só aparece nos grandes blogs DE DOWNLOADS DE FILMES, MÚSICA E PROGRAMAS com milhares de visitas diárias. Nunca será o caso do teu e nem do meu. Eu nem sequer tenho moderação nem letras de verificação e nunca recebi spam :)

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  6. Essas rotinas de horário ainda existem muitas. Tem pessoas que seguem ali na ponta do pé o horário pra tudo, acho que isso aumenta até o stress do dia, devido a preocupação com o horário. Gostei muito do texto. Voltarei mais vezes. Um Abraço!

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  7. Hehehehehehe...

    Me lembrei do meu sogro, que também era muito apegado aos horários e à rotina diária.
    Minha sogra, ao contrário, gostava é de novidades.
    Mesmo assim, ou talvez por isso mesmo, viveram um casamento de mais de setenta anos.

    Que pena que o seu caso já passou há mais de trinta anos...gostaria, ou "gostava", como vocês dizem por aí, de saber o final...:)

    Constantino, te desejo um lindo e iluminado final de semana.

    Paz e Bem, pra você.

    Beijoooooooo

    Cida

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  8. Caro Constantino, não poderei afirmar, sem ficar corado de vergonha, que li o blog de fio a pavio. Não que os textos excelentes, a fazerem lembrar as obras dos verdadeiros mestres do Neo-realismo que saboreei nos tempos em que ainda não havia internet, a televisão era a preto e branco e a coluna não reclamava das longas noites de almofada alta, livro na mão e cinzeiro equilibrado em cima do peito, não o merecessem, mas a minha vida não é isto e, como já deve ter notado, aqui pela blogosfera, poucos são os que se aventuram a ler mais do que as primeiras três linhas. Por isso é que optei por fazer um blog de postagens curtas, grossas e meio idiotas, que o pessoal amante do "fast food" consiga engolir em dez segundos, empurrados a goles de coca-cola. Mas o nome já me tinha despertado a atenção, o suficiente para ter dado uma espreitadela que me levou a dizer para os meus botões: - isto é fruta a mais para ti e antes que dês uma daquelas calinadas pseudo-intelectuais que mostre o verdadeiro ignorante que habita dentro de ti e alguém decida oferecer-te um fardo de palha, como prenda, no próximo aniversário, deixa-te estar caladinho.
    Mas com fardo de palha, ou não, já agora que aqui estou, deixe que lhe diga que, para "bicho de contas", se dá muito bem com as letras e para amante de futebol, até que nem dá muitos pontapés na gramática (lolol).
    E "prontes", por hoje está tudo dito. Prometo que vou voltar, o que não prometo é comentários tão longos e, muito menos, com a seriedade que a obra do mestre merece.
    Abraço. Lolol

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  9. Post com barco
    é, para mim, sucesso assegurado
    Mas ocorre-me uma pegunta idiota
    casou com outra garota?

    (julguei que o cúmulo da distração era eu...)

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  10. Se o 'Cagando e AndANDO' VAI VOLTAR ISSO SIGNIFICA QUE ISTO VAI FICAR MAL FREQUENTADO...VOU CARREGAR NA TECLA DE CAPSLOCK...Resultou,o que eu percebo disto!Agora esqueci-me do que ia a dizer por causa deste último pseudo-comentário...Volto mais tarde*

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  11. Faz-me tanta impressão pessoas que só sabem funcionar dentro de rotinas rígidas, mesmo que admire tanta organização! Ainda por cima em jovens... Assim, 30 anos volvidos, deve ser insuportável conviver com tal pessoa! :)

    Beijocas e bom fim de semana!

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  12. Gostei muito do texto. Mas aqui há qualquer coisa que não bate certo. Um triste rotineiro, normalmente, não é um distraído.
    Imagine do que eu me fui lembrar? Do último "Diário de Lisboa", que guardo religiosamente.

    Realmente isto hoje ficou um pouco a cheirar mal, por causa de alguém com diarreia mental. Será que está com medo da concorrência, ou será algum esclavagista, que o quer a trabalhar nas suas terras, já que, ainda por cima, sabe contar carneiros?

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  13. eu até que gosto de rotinas, sabe? Mas meu país não me permite. Jamais aqui houve ou haverá um ônibus que passe todos os dias a mesma hora, que dirá minutos!! Tampouco os encontros têm hora marcada. E eu, que sou quase uma suiça de pontualidade, hoje, por exemplo, acabo de voltar da médica marcada para 11:00 hs, onde fui atendida às 12:15hs! Pontualidade é palavrão por aqui. O que ocasiona que qualquer encontro ou compromisso seja sempre uma aventura: nunca é na hora marcada, por vezes nem no dia marcado. Apesar daquela música do Chico Buarque: "todo dia ela faz tudo sempre igual, me acorda às seis horas da manhã...". Quer saber, nem mesmo meu despertador é pontual: anda atrasando todo dia um pouco e, como dizem, relógio que atrasa não adianta" ;)

    abração

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  14. Rais partam Paço D'Arcos...
    E assim não se perdeu a rotina!!

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  15. Olha mais um que imprimi...só que vou alterar os terminais Entrecampos e Paço de Arcos:):):):)

    Parabéns rapaz e não deixes de escrever e fartei-me de rir:):):)

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  16. Numa vida assim programada minuto a minuto dia após dia, sem dar espaço ao mínimo imprevisto, onde até o tempo para namorar era cronometrado ( 15 minutos) estava-se mesmo a ver que o homem não estava mentalizado para fugir à rotina.
    Para mim nem é esse o pior mal, ou seja, ele ter faltado ao encontro. O mais preocupante, na vida deste homem-robot, é ainda hoje ele não saber se a jovem lá estará, quando ela nunca lá esteve.
    Preocupo-me porque eu sei que ela não podendo comparecer o avisou, ele é que se esqueceu disso. É terrivel ao que a rotina pode conduzir uma pessoa.
    Eu que sou avessa a programar seja o que for com mais de cinco minutos de antecedência, até me estou a sentir mal.
    Ou será por pairar no ar um certo cheiro nauseabundo?
    O autor que me perdoe, mas vou ter que me retirar...com licença.

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