D. Micá mandou-me um SMS a informar-me que esta
quinta-feira não haveria serão em sua casa. Ainda pensei que fosse pelo facto
de ser feriado, de se comemorar o dia da Liberdade, mas não foi, como poderão
ler adiante. D. Micá nasceu no ano anterior ao da revolução, sendo que em
jovem, quando ainda era uma estudante universitária e incorporava os movimentos
marxistas-leninistas-maoistas, já em decadência nos anos noventa, não só porque
os jovens da sua idade já pouco sabiam de Mao mas principalmente porque o muro
de Berlim havia caído e a União Soviética desmoronava-se, costumava dizer que
ela sim, encorpava o verdadeiro espírito revolucionário, sendo mais
revolucionária que a própria revolução pois a ela se havia antecipado. Hoje em
dia D. Micá seguiu os passos de muitos maoistas da época, está bem instalada na
vida, assume-se como uma burguesa classe média, que gere empresas e fundos, que
não quer nada com a política, mas que sabemos não ser bem verdade, pois todas
as quinzenas é convidada para um painel televisivo, onde se discute economia e
como todos sabemos não se pode dissociar uma coisa da outra.
Eduardo Aragão telefonou-me alguns segundos depois
de eu ter lido a mensagem. Também ele tinha recebido o mesmo SMS e estava intrigado.
«Ouve lá, Constantino, sabes o que é que se passa com a Micá? Então ela foi
logo cancelar o serão desta quinta-feira, quando eu já tinha mandado entregar
lá em casa seis dúzias de cravos vermelhos para a Rosalina enfeitar as jarras?
Se queres que te diga não entendo nada daquela gaja», rematou com ar indignado.
Respondi-lhe que também eu não fazia a mínima ideia mas que me iria informar.
Tentei ligar diretamente à Micá mas o seu telemóvel dava-me sempre impedido
como se D. Micá estivesse numa longo namoro telefónico, até que D. Ermelinda me
esclareceu. Afinal não era nada de grave, antes pelo contrário, era uma questão
de negócios, D. Micá iria estar todo o fim de semana envolvida na Ovibeja. Pela
primeira vez, a FPADEIACDLMCC
tinha sido convidada para ter um stande na grande feira do sul e D. Micá, nunca
connosco tinha comentado. Disse-nos à parte D. Ermelinda que era para nos fazer
uma surpresa e só não o fez porque as coisas parece que não estavam a correr a
preceito. Telefonei de imediato ao Eduardo, encontramo-nos no Fogueteiro e
seguimos os dois no meu carro para Beja.
Não foi com
surpresa que pagamos sete euros cada um para entrar no recinto. Estas coisas
não se fazem à borla e portanto há que pagar e ponto final. Mal entramos e
depois de nos esquivarmos à publicidade, primeiro de um banco depois de uma
empresa de comunicações entramos no pavilhão onde era suposto darmos de caras
com a D. Micá. Em vez disso deparou-se-nos o cheiro irresistível das farturas,
mas como tínhamos almoçado, pelo caminho, um excelente cozido de grão e umas
migas com secretos de porco preto, resolvemos não cair em tentação. Entramos e
nem sinal de D. Micá. Nem nas exposições de azeite, nem nas provas de vinho, o
que aliás não era de espantar, nem no picadeiro onde se jogava um desporto que
confesso não sei o nome mas que me pareceu ser basquetebol equídeo, nem na fila
para os WC, nem junto às sessões fotográficas com araras e muito menos, como
aliás seria de supor, junto às máquinas agrícolas. Ainda nos atrevemos a ir até
aos standes de automóveis e, mais improvavelmente, à zona do gado, onde entre ovelhas,
porcos, cabras e bodes, alpacas e burros e limousines da mais apurada raça,
touros e vacas imponentes, alguns dos quais, os bois é claro, pais de vasta
prole entre machos e fêmeas e vacas já com cinco bem sucedidos partos, a
atender aos escorreitos e bem encorpados novilhos que nos eram apresentados.
Não tem nada de insinuante esta nossa busca por D. Micá entre as vacas, pois,
como é sabido, uma presidente de uma fundação que se dedica ao leite, se bem
que magro e misturado com chocolate, nada de mais normal que esta se
encontrasse entre tetas. Mas não. Nem sombra de D. Micá.
O tempo
decorria, a fome começava já a apertar e face a tão tentadora oferta para o
nosso palato, acabamos por abancar numa tenda de petiscos regionais. Eduardo,
um lambão de primeira, de quem vos falarei dos seus devaneios gastronómicos um
dia destes, pediu logo duas doses de enchidos, uma de quentes e outra de frios,
apesar do meu protesto pois, para mim, umas azeitonas britadas e um jarrinho de
tinto de Borba com uma fatia de queijo de Serpa já me encheria as medidas, que
não, que sair dali sem provar a bela paleta de porco preto ou a não menos bela
farinheira assada não era ir à Ovibeja. Lá acedi, mas fiquei um pouco aquém das
minhas espectativas. Apesar do certame este ano estar completamente virado para
o vinho e para o azeite, azeitonas só de conserva, diga-se de passagem de boa
qualidade, mas nada que nos trouxesse novidade pois qualquer supermercado já as
apresenta há tempos. Valeu-nos a prova de alguns dos melhores vinhos embora de
um deles, quiséssemos provar mas não estava em degustação. Depois conseguimos
perceber porquê. É que cada garrafinha de meio litro, sim de meio litro,
custava a módica quantia de 32 euros, ou, por extenso, para que não restem
dúvidas, trinta e dois euros. Olhamos um para o outro e o Eduardo, sempre com
uma piadinha na ponta da língua, perguntou-me se eu costumava jogar no
euromilhões. Sorrimos para não ofender ninguém e eureka, demos com a D. Micá.
O
seu pequeno mas bonito stande, decorado com imagens de vaquinhas pretas e
brancas e plantas do cacau (confessemos que as paisagens suíças estava um pouco
a contragosto o que, por mim, poderá ser motivo de análise no próximo serão),
estava encaixado entre a barraca das caipirinhas e a loja da ginjinha de Óbidos.
E, como diria neste tipo de situações o célebre diácono Remédios, «não havia
necessidade».
E eu que não sabia... Podia ter ficado a conhecê-la. Assim, passei de raspão pela feira e pouco mais lá fiz do que lanchar uma sandes de leitao. :)
ResponderEliminarLuísa, não era bom dia. Ela estava muito deprimidinha. Afinal quem é que bebe leite magro com chocolate com o nariz a seguir a pista da bela bifana de porco preto?
EliminarObrigada por esta visita guiada. Tudo bastante familiar nesta magnífica narrativa que diz muito para além do dito.
ResponderEliminarUm beijo
A D. Micá não foi a única a estar na Ovibeja ;)
EliminarOutro para si.
Excelente narrativa!!!
ResponderEliminarAbraço
Sónia
Obrigado Sónia.
EliminarOutro para si.
Pois é...Há para aí muito maoísta aburguesado! O Durão Barroso que o diga :)
ResponderEliminarUm beijinho
E não só, não só...
EliminarEsta tua deslocação ao Alentejo teve como fito a Ovibeja, está-se mesmo a ver! Há anos que lá não vou e nem entendi a necessidade da D. Micá lá ter montado o estaminé.
ResponderEliminarQuem é que vai querer saber de leite achocolatado magro no meio de tantas iguarias alentejanas?
A propósito, Constantino, porque razão a Fundação, em questão, precisa de uma sigla deste tamanho: FPADEIACDLMCC???
Não te enganaste nem nada?:))
Beijinhos, sortudo!
FPADEIACDLMCC - Fundação Para A Divulgação E Incentivo Ao Consumo Do Leite Magro Com Chocolate
EliminarBateu certo, Janita?
Beijocas