“Sabes
meu caro Aristides, a minha vida com Antonieta nunca foi uma vida fácil. Nem
fácil nem pacífica. Antonieta era uma mulher muito bonita. Diria mesmo, sem
exagerar, que ela era fascinante. Tu lembras-te, com certeza, pois em jovens
muito íamos ao cinema juntos, aquelas divas do preto e branco primeiro e do
Technicolor uns anos mais tarde? Ahahahah, até parecemos dois velhos marretas a
desfiar memórias. Ó Aristides, tu vais com quantos? Sessenta e oito? Bem me
parecia. Eu sou um pouco mais velho, não muito, fui às sortes, deixa cá ver, em
cinquenta e nove, se não me falha a memória. Nasci em quarenta. Eu era um belo
rapaz, Aristides. Não é para me gabar, mas era. E era um pimpão! Arreava bem.
Os meus pais, aristocratas, muito boa gente, nunca quiseram nada com o velho
ditador e, olha, se eu tive lugar de relevo na diplomacia não foi por
colaboracionismo. Antes pelo contrário, creio até que foi por receio. O velho botas
não se queria dar mal com as velhas famílias nobres, o meu pai, que Deus tenha
a sua alma em descanso, não alinhando com a política dele, também não o
hostilizava. Dizia-me às vezes em segredo, pois à polícia política tudo lhes
cheirava a conspiração, que os monárquicos um dia voltariam ao poder para a
honrar a memória do senhor D. Carlos. Coisas dele. Mas não era disso que eu
estava a falar, mas entende, famílias finas, aqui o teu amigo vestia muito bem,
usava sempre chapéu, Aristides, que não é como agora, essa juventude nem garbo
tem com o traje, ele é calças de ganga, blusas sem rei nem roque, sapatilhas,
bonés de basebol. Não! Eu ia sempre na marcança. Ainda me lembro de um fato completo,
bege claro, do chapéu, a que chamavam palhinhas, mas o meu não era de palha,
era de verguinha entrelaçada, comprado na Chapelaria Janota, não era qualquer vendedor
ambulante que fornecia aqui o rapaz, eu sempre com o lenço a sair do casaco, a
condizer com as gravatas que a minha mãe mandava vir de fora pela mala
diplomática, as camisas italianas. Enfim… E andava sempre de automóvel. Quando
cheguei à Graça, no dia que fui às sortes, foi de automóvel. E eram aqueles
labregos todos, das quintas de Almada e da Charneca, das terras da Porcalhota e
de Caneças, a olharem para mim, a assobiarem e comentarem, olha não querem lá ver
o pipi? O meu falecido pai tinha um Ford Coupé de 1936, que com mais de vinte
anos parecia novo. Havias de ter gostado de conduzi-lo, Aristides. Não era uma
bomba, mas era muito bonito. Eu saía daquele Ford preto, de fato bege e chapéu
como te dizia há pouco e parecia o Al Capone. De mulheres, então, nem te falo.
Infelizmente nunca assentei para me decidir a casar. Mais tarde, quando
enveredei pela diplomacia, seguindo os passos do meu velho pai, depois de me
ter formado na Faculdade de Letras, fui-me dividindo entre a profissão e as
acompanhantes. Em Londres, meu caro Aristides, posso-te dizer que o meu quarto
era mais cosmopolita que toda a cidade de Lisboa alguma vez se imaginaria vir a
ser. Por lá passaram bailarinas italianas, esquiadoras norueguesas, ciganas
romenas, princesas árabes, revolucionárias soviéticas, gueixas japonesas,
floristas holandesas, roliças lavadeiras portuguesas, fotógrafas francesas e se
mais não te digo é porque, mais uma vez afirmo, não gosto de me gabar. Mas não
assentei e quando já pensava que iria adotar o sobrenome de tio, eis que me
deparo com a linda Antonieta. Pois a Greta Garbo, a Rita Hayworth, a Elizabeth
Taylor, a Joan Crowford, a Bette Davis, a Bergman, a Monroe, a Bacall, com ela
iam a meças, ouviste? Sabes que chego a ter pena que não possas vislumbrar a
aura do seu fantasma, quando ela me aparece aqui na mansão? Mas dito isto, D.
Bonifácio calou-se repentinamente e ele e Aristides voltaram em simultâneo a
cabeça para a porta do amplo salão nobre da mansão. Pensou-se que o gato
Gatófio, só poderia ter sido ele, tenha soltado um estridente miado e como que
rolassem berlindes, ouviu-se no silêncio do salão e na agora calmaria da noite
um barulho que atacava o soalho, caindo em ritmo compassado como se caíssem de
uma prateleira. Um a um, o que pareciam ser berlindes, caiam, ecoavam no vazio
do aposento, rolavam pelo soalho e Gatófio depois do susto inicial que pregou
aos dois interlocutores, parecia uma criança a brincar com eles no mosaico da
cozinha”.
D. Micá parou de contar, numa atitude tão
repentina como a dos personagens da sua história. Espontaneamente, todos os
assistentes ao conto que D. Micá retomava, uma vez mais, numa das suas famosas
soirées da Lapa, com exceção da Rosalina que ficou estarrecida, qual estátua
viva, viraram à uma a cabeça em direção da porta da cozinha. Geninha também não
resistiu e caiu para o lado, vítima da garrafa de vodka que foi reduzindo em
muitos pequenos shots. Marta Caracinha nervosamente tirava e recolocava o
elástico dos totós. Fagundes pôs os apontamentos de geografia debaixo do braço
e ficou em posição de quem vai sair cheio de pressa. Justino Carlos roía as
unhas. Dona Ermelinda, a contas com uma enxaqueca, dormitava no canapé e não
dera por nada e Eduardo Aragão, que sempre foi um exemplo de coragem, a
propósito da qual vos contarei em breve um ou dois episódios, abriu de supetão
a porta da cozinha de D. Micá e de olhos brilhantes, com um sorriso nos lábios,
informou a plateia:
- Oh, não é nada. Foi o Tareco que entornou o
pacote das amêndoas lisa-cores e agora anda a brincar com elas, como se fosse
uma criança.
Mas ninguém ficou descansado. Ali havia fantasmas
como no conto de D. Micá.
Para mim foi o tareco...ou outra garrafa de vodka:))
ResponderEliminarAbraço
A da garrafa coitada, está perdida.
EliminarCada vez me convenço mais que desta vez a história que nos vais descrevendo, é passada num hospício!
ResponderEliminarA começar pelo gabarola do Bonifácio, apanhado na mais louca peta de todos os tempos! Lavadeiras de Caneças, em Londres, num quarto mais cosmopolita do que toda a cidade de Lisboa, à mistura com gajas indígenas de todo o mundo, ao serviço do pipi da tabela?
Coisa de loucos!
Até me fizeste lembrar de um filme, que adorei, "Voando sobre um ninho de cucos"...
E a D. Micá é o Jack Nicholson!...))
Tadinho do Schubert, até ficou de olhos arregalados com o "labarinto" que aquela gente doida fez, só por ouvirem rolar meia-dúzia de amêndoas.
Eheheh
Passa bem, Constantino.
Beijocas.
O D. Bonifácio era um finório. Gente rica, da diplomacia, grandes vidas... Coitado foi cornudo e por isso... bom não conto mais porque no suspense é que está o segredo.
EliminarBeijocas.
Um fantasma guloso! Não fosse o Tareco a pará-lo, o tipo tinha roubado as amêndoas!
ResponderEliminarBeijo :)
Ele há fantasmas que gostam do belo docinho.
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