- Deixe-se disso, Eduardo. Você não vê que eu sou
uma mulher solteira? – dizia com ar pouco austero, antes porém com o seu
maravilhoso sorriso nos lábios, D. Micá, que não levava o meu amigo Eduardo
Aragão muito a sério.
Sois a flor que no meu vaso desponta
Quando o matinal Sol meu lençol vem beijar
E cujo perfume me deixa inebriado, em tonta
E incontrolável vertigem de te amar.
Não desistiu Eduardo de terminar o poema que com
um joelho no chão e um cotovelo apoiado na coxa da outra perna recitava a D.
Micá, como nos bons velhos tempos em que em Coimbra se atirava à esposa do
comendador Formoso Reimão, o que lhe valeu um R na cadeira de Patologias
Tropicais, quando, por insistência de um velho tio que era padre, o meu amigo
Eduardo Aragão entrou no curso de Veterinária, contrariando a sua grande e
antiga vocação que sempre fora o Direito. Talvez seja agora a hora de vos falar
um pouco deste meu amigo, que desde muito jovem se perde por mulheres casadas e
que colecionou RR atrás de RR na Universidade nunca tendo passado do segundo
ano e que, por felicidade ou desígnio de Deus, nunca desgostou o velho tio, já
que o Senhor o resolveu chamar à sua presença antes que dos desviantes caminhos
do sobrinho achasse conhecimento, ele que o nutria dos maiores desvelos.
Conheci Eduardo Aragão quando eu era um imberbe
adolescente. Uma amiga da minha mãe desposou um rico agricultor provinciano que
a levou a viver para uma pequena aldeia no Concelho de Arganil, onde possuía um
solar e era farto em criadagem. A minha mãe e essa amiga correspondiam-se por
carta, é claro, e um dia a D. Edmunda, que era assim o nome dela, convidou a
minha mãe a ir visitá-la. Que não se preocupasse, ela pagaria não só as
passagens mas também, enquanto a minha mãe lá quisesse ficar, a estadia seria
por conta dela. Logicamente, este convite só pode ser aceite nas nossas férias
escolares e, num pretérito mês de Julho, lá fomos arrastados para uma aldeia
desconhecida, para casa de quem não fazíamos ideia de quem fosse pois lá em
casa só ouvíamos falar em “Mundita” para cá, “Mundita” para lá. E num dos nosso
passeios pela região, sempre no automóvel do senhor Ferreira, nome que me fazia
muita confusão pois estava acostumado a conhecer os amigos dos meus pais pelo
nome próprio e aquele, para os meus doze anos, era apenas o senhor Ferreira, de
tal modo que eu pensei que ele se chamasse Ferreira-qualquer-coisa, paramos
para lanchar numa pastelaria de uma vila vizinha, mais propriamente em Coja,
nome do qual nunca mais me esqueci e que já tive a oportunidade de visitar em
adulto. Na mesa ao lado, um casal muito bem vestido, o homem de fato completo,
colarinhos levantados, gravata, sapatos de verniz, colocava o guardanapo de
pano sobre uma perna e comia uma fatia de bolo com faca e garfo, muito
diferente do senhor Ferreira que era o que a esta distância poderíamos chamar
de burgesso, mas rico, que vestia umas calças de fazenda, embora limpas porque
a D. Edmunda era muito asseada, mas muito assaloiadas, um casaco de fazenda
grossa, botas de couro cru e um boné de fazenda com pala, em vez de chapéu e
que mandou logo vir um prato com meia dúzia de pasteis para as senhoras e para
as crianças e para ele uma sandes de presunto e um copo de vinho, que comeu sem
tirar o boné da cabeça, com a boca aberta e a deixar cair as migalhas. A
senhora do casal também ela muito fina cuja aparência me impressionou com os
seus lábios pintados de carmim, a sua camiseira às flores, um colar de pérolas
ou de imitação, uma saia plissada de fino recorte e um blaser curto de bandas arredondadas. D. Edmunda, que não tinha nada
a ver com a boçalidade do marido, era uma senhora de pouco mais de trinta anos,
muito bonita, que se maquilhava a contragosto do senhor Ferreira, que a
questionava sempre com um ar enjoado, que se ela já tinha a quem agradar porque
é que se pintava, palavras que caiam sempre muito mal a D. Edmunda e que não
era raro vê-la (pelo menos eu vi nos dias em que lá estive) com uma furtiva
lágrima no olho. E um rapazinho que acompanhava o casal, mais ou menos para a
minha idade nos seus doze, treze anos, de fato completo de casaquinho e calção,
com uma camisa branca com folhos e uma gravata fininha que caia como duas fitas
de seda. Ao fim de alguns minutos, aproximou-se de mim, pareceu-me até que um
pouco tímido, ao contrário do que se viria posteriormente a revelar e
perguntou-me:
- Queres brincar?
Aceitei e fomos para a rua, onde não havia perigos
e onde os únicos dois carros, que se podiam ver à distância que os nossos olhos
alcançavam, eram o do pai dele e o do Sr. Ferreira, mas estacionados, pelo que
não representavam nenhum perigo. O outro menino, em vez de tirar do bolso um
pião ou dois berlindes, perguntou-me baixinho:
- Qual das duas senhoras é a tua mãe?
- Então esta noite vou sonhar com a outra.
Nunca mais perdemos o contato, exceto quando
Eduardo andou pelo Brasil, vindo mais tarde a pedir-me desculpa, mas que os
negócios, de que um dia vos falarei, não lhe davam tempo nem para um bilhete-postal.
Quando Eduardo se levantou e sacudiu as calças no
joelho, deu uma gargalhada e sossegou D. Micá:
- Ó D. Micá, não se assuste. Estes são os versos
que escrevi para a menina Lucinda que veja lá, coitadinha, foi atacada pelas
artroses.
D. Micá fingiu respirar fundo e dirigiu-se ao
canapé, onde o seu lugar estava reservado para continuar a contar a história de
Antonieta e de D. Bonifácio.
era fresco este Eduardo. Sempre atrás do fruto proibido.
ResponderEliminarE ainda se vai desvendar muito mais.
EliminarAi, meu Deus! Estes saraus andam tão concorridos que se me não ponho fina, quando cá chego já o nobre portão da mansão foi fechado.
ResponderEliminarHoje vim numa correria louca para chegar em primeiro lugar.
A história de como tu e o Eduardo se conheceram está muito elucidativa e apesar da Mundita para cá e para lá, o que me fez correr foi para ensinar o Aragão com que poema ele deve presentear a Micá.
Ei-lo:
Na incontrolável vertigem de te desamar
Vejo-te como a rosa que na minha floreira desponta
Quando o Sol matinal na minha cama vem bocejar
E o teu perfume me enjoa e desencanta.
Aragão, Aragão, quando uma mulher finge respirar fundo...no fundo não sabe nem suspirar.
Não te deixes levar pelas falinhas mansas dela, como faz o Constantino; tem tino!!
Eheheheheh
Na prosa ou na poesia me observas
EliminarNo teu humor me encanto e me revejo.
Falta-me a rima, busco-a em conservas
e assim para acabar deixo-te um beijo.
Obrigado Janita por me acompanhares.
Estou atrasada nestas leituras. Pô-las-ei em dia muito brevemente.
ResponderEliminarAbraço
Por acaso, Edmunda - raio de nome... só falta ter farto bigode. E quanto ao fruto proibido só é quando elas querem, essa é que é essa...
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