D. Ermelinda estava sentada no sofá pequeno com um
xaile de cachemira sobre as pernas e com o Tareco no seu colo dormitando. Suavemente
ia-lhe alisando o pelo, com a mão, percorrendo o lombo do gato desde a cabeça
até à cauda. O bichano, deliciado, ronronava. A seu lado, Clara Mendonça que tirava
da mala um lenço branco de mão, com um bordado de Viana do Castelo, que
ostentava a frase “o meu curassão só por ti sespira”, entre corações e pombas e
raminhos de oliveira, choramingava. D. Ermelinda esperou que Clara limpasse os
olhos e se assoasse, o que ela fez delicadamente, como uma senhora que era, o
faz. Depois suspirou, provavelmente inspirada pelos dizeres do lenço de Viana,
e rematou o suspiro com um suave “ai”. D. Ermelinda quis saber como é que iam
correndo as coisas entre ela e o Jorge Mendonça.
- Nem me fale dele, D. Ermelinda. É um mulherengo
– e, num misto de tristeza e fúria rematou: Um putanheiro!
Ao esgar reprovativo de D. Ermelinda, cuidando de
que se trataria de crítica à linguagem utilizada, acrescentou hesitante um
pedido de desculpas:
- Desculpe-me a grosseria da palavra, D.
Ermelinda, mas eu não suporto mais este constante cobiçar de outras saias, este
permanente estado de adultério. – Depois, atiçando-se contra o belo sexo como
se ela não fosse um magnífico exemplar da espécie, vilipendiou-as: - As
mulheres têm sido a causa da nossa desgraça.
- Eu
entendo, Clarinha, eu entendo – tentou consolá-la, D. Ermelinda que, diga-se a
propósito, era uma santa alma e acrescentou, desta vez atacando o sexo oposto, como
que em contraponto ao que Clarinha acabara de dizer – os homens são uns
patifórios.
«São todos assim, não escapa nenhum», continuou D.
Ermelinda que em pegando na palavra tinha sempre alguma dificuldade em
largá-la. E foi exatamente o que aconteceu de seguida pois que nunca mais se
deteve «que o diga eu, Clarinha. O meu Jovelino, que Deus Nosso Senhor tenha a
sua alma em descanso», disse-o benzendo-se, «era um perdido por mulheres. Saiba
a Clarinha que um dia, saiu-me de casa todo apinocado, exatamente como
costumava ir para a empresa, de fato completo, naquele dia um lindo fato azul-escuro
com uma risca fininha em cinza, bom pano, que o comprei e mandei fazer na alfaiataria
do senhor Desidério, não sei se a Clarinha o chegou a conhecer, um alfaiate que
usava bigode à século XIX, fininho e enrolado nas pontas e que fumava uns cigarros
pretos que eram um fedor», depois atalhando face à expressão desinteressada de
Clarinha, «bom, talvez não fosse do seu tempo». Continuou com a narrativa das
peripécias de Jovelino. «Dizia-lhe eu, então, com aquele fato de três peças, o
colete com botõezinhos de madrepérola, corrente, sim corrente, que o meu
Jovelino nunca saía para reuniões com gente fina sem a sua corrente em ouro,
onde sustinha um relógio, também ele de ouro, adquirido a um lavrador a quem a
vida não lhe tinha corrido muito bem, mas isso são outras histórias. Vou-lhe
contar o que interessa, o meu Jovelino disse-me que ia para a empresa, que
vinham uns senhores de uma fábrica em Santa Iria de Azóia, a Clarinha que é de cá
de Lisboa deve saber onde fica Santa Iria de Azóia, ora não? Pois é verdade
isto que lhe vou contar, tão verdade como estarmos aqui as duas sentadas neste
sofá à espera que a minha Micazinha recomece a contar a história do D.
Bonifácio. Sabe que ela a mim nunca ma contou, Clarinha? Ah pois, não, não
contou, não senhora e olhe que eu acho que ela não está a inventar. Aquilo ou é
coisa que ela leu em algum livro ou então não sei. Porque para lhe ser franca,
Clarinha, eu não acredito em fantasmas. Nem tenho medo. Sabe de quem tenho medo
mesmo, Clarinha? É dos que cá estão. É dos vivos sim senhora. Que Deus tenha em
paz e sossego as almas daqueles que já partiram. Mas os que cá estão, Clarinha,
esses é que são perigosos. Então não é verdade que têm sido essas intrujonas
que se têm atirado ao seu rico marido, que não desfazendo, é uma joia de homem?
E pelo que me dizem, até ganha bem. Uns bons contos de reis por mês, Clarinha.
Mas isso são coisas da vossa vida, sabem vossemecês e fazem vossemecês muito
bem. Ninguém tem nada com isso ou andar por aí a contar as suas vidas. Olhe
Clarinha, aqui nos nossos serões, que lá nisso temos de fazer justiça à minha
Micá, nem ela nem eu, posso jurar à fé de quem eu sou, autorizaríamos outra
coisa. Fala-se de muitos assuntos, muita coisa da cultura, música, poesia e
como a Clarinha deve saber, até já se representou uma peça ali no salão. Foi
tão lindo, Clarinha! Foi um êxito. Parece que ainda estou a ouvir as
pancadinhas de Molière, pum pum pum pum e a minha Micá a fazer de velha
alcoviteira, só de me lembrar, Clarinha, me dá uma vontade tão grande de rir»,
deu D. Ermelinda uma gargalhada e sem perder o ritmo, continuou «querendo casar
a menina Marta com o Fagundes e o Fagundes, coitado, que nunca tinha feito uma
peça de teatro a ficar muito corado por estar em frente da própria mulher,
prestes a se enrabichar por outra, mas que era só a fingir, era teatro. E para
lhe dizer o que me vai na alma, Clarinha, não sei para que é que serviu tanto
acabrunhamento. No final das contas, na vida real, quem acabou por encornar o
Fagundes foi a mulher dele e o coitado que andou por aí a exibir nódoas na
camisa acabou por ser o pobre do Fagundes. Mas fala-se que ele está bem, agora
tem um caso com uma senhora rica, parece que não lhe falta nada e nunca mais o
ouvimos a barafustar contra o Governo por causa do salário e de outras afrontas
aos professores. Mas aqui não falamos das vidas dos outros, como a Clarinha
sabe. O que é pena, Clarinha, é que já não vou ter tempo de lhe contar o resto
da história do dia em que o meu Jovelino saiu de casa, mais perfumado do que o
costume, já que aperaltado ele andava sempre e foram-no encontrar ao fim da
tarde, em Aveiro, a empanturrar-se de ovos moles, ele que sofria do fígado e
fazia uma dieta com leite magro e saladas» relembrou D. Ermelinda consternada,
continuando já com uma pequena expressão de fúria maledicente, mas ao mesmo
tempo aparentando um certo conformismo. «O pior é que foi apanhado em
flagrante, nesses devaneios a que a gula conduz, por uma rapariguita lá de
Albergaria, que estava de criada de servir no Hotel Bela-Ria e que,
inadvertidamente, quando ia para colocar os últimos preparos para os clientes,
se enganou na porta do quarto e abriu aquela que não devia, ou como se costuma
dizer a Providência é Divina, Amén. Foi a pequena dar de caras com o meu finado
Jovelino, só de cuecas, que lá nisso ele era homem muito respeitador, rodeado
por duas espanholas, em trajes que nem lhe descrevo, pois a Clarinha iria ficar
mais corada do que um tomate maduro e com mais de uma dúzia de ovos moles
espalhados sobre a colcha da cama, capaz de se sujar e ter ainda que pagar uma
conta elevada da lavandaria do hotel. Mas depois que a minha Micá acabe a
história eu conto-lhe o resto. Estou curiosa em saber porque é que defunta
Antonieta andou a aparecer assim tantas vezes ao velho Bonifácio. E já agora,
Clarinha, olhe que a menina, que dizem por aí que anda a tratar do divórcio com
o dr. Jorge, faz muitíssimo bem. São uns diabos. E quando são putanheiros...
Dizendo isto, D.. Ermelinda colocou a mão em
concha, a tapar a boca semiaberta e ficou a senhora com o rosto mais rubro do
que a criada Rosalina que como sabemos é roliça, coradinha e tem buço.
Outro para si, Ana.
ResponderEliminarEu também adoro passar por aqui, mas ler! Só que tu às vezes excedes-te, Constantino, e o tempo é curto!
ResponderEliminarVá lá que desta vez a Micá não teve nenhuma das costumeiras entradas supostamente triunfantes e deixou-se ficar contando as suas estórias para outra plateia.
Gosto mais da mãe do que da filha, apesar dela também ter uma boa língua de trapo! Simpatias!!
Belíssimo o conselho dado à Clara; o de pôr o Jorge a milhas. Isso de gajos putanheiros...longe e largo.:))
Não sei onde vais buscar imaginação para tanto, Ó Constantino!:))
Beijocas!:)