quarta-feira, 27 de março de 2013

199. O mau tempo já passou e os fantasmas vão de vento em popa




“D. Bonifácio, fez aquela referência e calou-se” , recomeçou a contar a sua história D. Micá, praticamente refeita de várias apoquentações, desde logo o episódio da matraca, a perda da Eduardinha, que a esta hora deve estar a servir um cafezinho ao Alfredo, a febre que a gripe lhe trouxe e outras que a tinham impedido de cumprir o desígnio de que, quer fizesse chuva ou sol, trovoada ou vendaval, canícula ou  frio de rachar, as quintas-feiras à noite eram sagradas e seriam exclusivamente dedicadas aos serões na sua residência. Continuou, D. Micá. “Calou-se e ficou pensativo. Depois, como que resignado, virou-se para Aristides
- Meu caro Aristides – disse bocejando. – Estou cheio de sono.
- Ó Bonifácio -  como sabem, o tratamento informal quando estavam a sós derrubava qualquer barreira entre patrão e motorista – mas nem o teu pijama trouxemos. E ainda se fosse só o pijama. Os teus comprimidos do colesterol, os da tiroide e o principal, os antiestamínicos ficaram em casa. E tu bem sabes como sofres com o pó desta velha mansão. Felizmente que a humidade de hoje fê-lo acalmar e assentar sobre estantes e prateleiras, mas não estamos a salvo das correntes de ar como ainda há pouco acabamos de sentir”.
Foi a vez de D. Micá fazer a pausa e perguntar para os presentes se estavam ou não a achar maçadora esta história de fantasmas, que se arrasta mais do que uma serpente atrás de uma ratazana, passe a arrepiante, para a ratazana, claro está, comparação. É então que o meu amigo Eduardo Aragão, que hoje veio sozinho mas muito janota, o que fez com que quase todos e todas ali presentes conjeturassem qual seria o destino de Eduardo mal arrefecesse na caneca o leite magro com chocolate, que Rosalina, recomposta do vómito e já com o chazinho tomado, tinha voltado a aquecer, o mesmo será dizer, já que hoje me deu para as metáforas, para onde é que iria esta noite Eduardo, mal o serão acabasse, vestido que nem um lorde, de fato completo de tweed em espinha, cinzento não muito escuro, de corte fino italiano, uns sapatos que se nota que são produção artesanal de altíssima qualidade, provavelmente feitos à mão por algum mestre sapateiro de S. João da Madeira e sem qualquer sombra de dúvida, modelo único, a camisa, impecavelmente branca e da mais pura cambraia, plissando nos peitilhos, com duas pequenas pregas em cada lado, estilo meados dos anos 70 e no bolso do paletó um lenço em seda, exatamente igual ao laço que lhe substituía a costumeira, mas não menos fina e garbosa gravata com que habitualmente se indumenta, se levantasse, tomasse a palavra e eloquentemente discursasse:
- Senhora e senhores, minhas amigas e meus amigos, deixem-me cumprimentar com o enfâse que merecem as nossas anfitriãs, as queridas senhora D. Ermelinda, minha senhora, espero que vá melhor das suas artroses e a D. Micá a exímia contadora de histórias cor-de-rosa, a quem aproveito também a solenidade deste momento para lhe endereçar os meus mais sinceros parabéns pela recente aquisição da roliça Rosalina, que por sinal a vejo ali ao fundo a corar, não core menina que eu apenas estou a ser sincero.
Depois do cumprimento, com os apartes que Eduardo introduziu, fruto de vários workshops que frequentou, dos quais destaco “Relações intrapessoais em ambientes hostis”, “A arte da comunicação e a anedota proposital” e ainda “Como cativar uma plateia em cinco minutos ou desistir” facultados por consultores norte-americanos, Eduardo Aragão, que foi uma pessoa muito viajada na sua adolescência, viagens que vão desde os inter-rails às boleias em estradas britânicas, onde Eduardo se acostumou a pedir boleia com a mão esquerda dado o fluxo do trânsito se fazer em sentido inverso ao das estradas continentais, mas que, infelizmente para vós que estão ansiosos para que vos fale do passado, riquíssimo diga-se a talhe de foice, de Eduardo Aragão, não vem hoje muito a propósito ficando para melhor oportunidade, continuou, num discurso emotivo, pedindo quase encarecidamente para que D. Micá não interrompesse tão bela história de fantasmas e enigmas que, pese embora o facto de esta ainda se encontrar praticamente no início, apesar de já vir a ser contada quase desde que este livro começou a ser escrito, todos acreditam que seja fascinante. Foi tão exacerbado o discurso e tão belamente adjetivado, pela riqueza da língua portuguesa que nem sempre é valorizada, preferindo-se discutir se o novo Acordo Ortográfico deve ou não ser aplicado, tão eloquente a sua prosápia, tão empolgante a retórica, que se em alguns se viam testas suando a outros fez saltar uma ou outra furtiva lágrima, principalmente às senhoras que, como se sabe, são criaturas belas e sensíveis. A própria Geninha, já não sabia se havia primeiro de virar novo shot de vodka ou se deveria limpar com elegância a lágrima no canto do seu olho esquerdo, pois que já começava a mostrar sinais de vir a esborratar o rímel. E virando-se para Constantino disse-lhe sem papas na língua:
- E tu, Constantino, não te atrevas a deixar por acabar este delicioso e fantasmagórico conto. A Francisca já morreu e isto não são carapaus de escabeche.


14 comentários:

  1. Eu optaria por um shot de vodka....para afastar esses fantasmas. Pelos menos enquanto durasse o efeito.


    Abraço

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  2. Bem que marchavam agorinha mesmo uns carapaus de escabeche.:) Tu realmente tens uma imaginação genial.

    Gostei:)

    beijos

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  3. Vim conferir se o Vitor é o mesmo poeta do' A a Z'e claro que é rs,
    Parabéns Vitor escritor e poeta e dos melhores _ dei uma lidinha rápida no conto e vi que D.Micá e sua turma continua povoando seus sonhos ou serão pesadelos ? rs
    grande abraço Vitor
    desculpe estar sempre ausente _ é o tempo curto, porque gosto demais de te ler,
    Boa Páscoa e abraços

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  4. Que, na Páscoa, nossa fé seja revigorada pela
    certeza de que Cristo ressuscitou e está entre nós.
    O sentimento de Páscoa não termina,
    ele sinaliza um novo começo da primavera
    e a vida marca nossa amizade.
    Feliz Páscoa Deus abençoe
    tremendamente sua vida.
    Beijos na alma carinhos no coração.
    Tem mimo na postagem caso gostar fica
    a vontade para pegar..
    Evanir..

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  5. Agradeço a simpática visita e desejo uma boa Páscoa.

    Por aí ainda acontecem estes serões onde as histórias se recriavam entre o terror e o mundo encantado de levar a longos e profundos suspiros.

    Tenho andado ocupado na reconstrução de uma destas histórias que ainda guardo por ouvi-la contar ao tio Joaquim.

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    1. É ao serão, principalmente à roda de uma lareira, que se ouvem das melhores histórias. Infelizmente na casa de D. Micá a lareira é artificial.

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  6. “Como cativar uma plateia em cinco minutos ou desistir” - aqui está uma boa achega para o fantasma Relvas...

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  7. Olha Constantino, eu tenho andado a conter-me para não vir para aqui rodar a baiana e armar uma peixeirada, mas antes de me retirar e como não tarda nada lá vai recomeçar o meu fadário profissional, pensei: perdida por cem perdida por mil e, vai daí,resolvi perguntar a essa Geninha sensaborona a que propósito ela te exorta a acabar este fantasmagórico conto, desfazendo na Francisca que ela pensa ter morrido, mas que embarcou para outras paragens e qualquer dia reaparece com os seus belos "Contos da Ilha de Lá".

    Apre, isto já parece um daqueles parágrafos do tempo dos saudosos Ismaeis. Ufa!!

    Para agora, não quero mais conversa com ninguém desta gente.
    Só te digo que esse belo ramalhete de margaridas está lindo de morrer!
    Ah, e diz lá a essa Gena que isto não são carapaus de escabeche, não, mas são uma cambada de inuteis que passam a vida a ouvir as parvoíces da D. Micá...que um dia destes, vai morrer envenenada ao morder a própria língua.

    Beijocas e até um dia destes, Constantino.

    Nem quero acreditar que te tenhas misturado com gentinha tão fútil. Logo tu, um intelectual de renome internacional, cuja fama vai desde Xabregas até à Costa da Caparica!!

    :))

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    1. Tadinha da D. Micá. Ela merece consideração. É presidente de uma Fundação e sabe contar histórias cor-de-rosa.

      Quanto à fama de Constantino... vem de longe!

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