Eu dei a sexta. Já não aguento mais este despejar de
argumentos, preleção, como tem referido amiúde o escritor, que o inspetor
Ismael Sacadura Flores está a fazer em plena tasca, que não ata nem desata,
pois o homem passa a vida a interromper-se para comer e para beber. Ainda há
pouco, estava com um copo de vinho pelos queixos, não sei como é que não perde
o equilíbrio. Eu que sou enfermeira farto-me de dizer aos doentes que o vinho
faz mal à saúde, mas se é o próprio Senhor Doutor Oliveira Salazar, que Deus o
conserve por muitos anos, que diz que “beber vinho é dar de comer a um milhão de
portugueses”, quem sou eu, uma simples enfermeira, nada em S. Pedro do Sul,
criada a águas minerais e termais, que vai desmentir o nosso mais alto dignatário
o nosso querido e benfazejo Professor Doutor. E não digo isto por causa daquele
agente da PIDE que desde o princípio se sentou naquele canto da sala e ali
ficou sem tirar o chapéu preto, não, não é por causa dele. Até porque a mim é
difícil alguém me poder fazer mal. O meu falecido e bom pai era muito querido
na Legião e por isso, eu não tenho receio dele. Nem da comissária Xana, pois eu
não matei aquela vadia da bailarina, deixa-me cá benzer e bater na madeira três
vezes, mas lá na minha terra não há nada disto, destas mulheres que se põem com
as pernas ao léu e, depois, não querem que os homens se portem mal com elas.
Deus nos livre se algum dia isto vier chegar ao ponto de se verem mulheres a
mostrar os seios nas praias da Caparica ou de Algés, ou rapariguinhas, algumas
até bem jeitosas, a usarem calções tão curtinhos que se lhes veem as badanas do
rabo. Mas isto devo ser eu a delirar pois aqui as minhas saias e as das
mulheres decentes são bem abaixo do joelho e ninguém tem nada para me apontar.
Ah, vocês não querem saber nada disto, não é seus desavergonhados? Pois então
eu conto-vos o que vocês querem saber e que não se perca mais tempo! Eu nem
estava de serviço naquela manhã. Ou melhor, estava mas já quase que não estava.
Eu ia sair às oito. Tinha entrado no turno da meia-noite. O Dr. Ben, que é como
o judeu é aqui conhecido entre os colegas, resolveu deixar uma cirurgia a meio
e sair com a enfermeira Helena. Ainda por cima, com um desplante jamais visto
ou imaginado, provocou-me. Eu não sou bufa, só porque o meu pai era legionário,
Deus tenha a sua alma em descanso que não é para aqui chamado e o escritor já o
fez, propositadamente, mais de uma vez. Pois sabem como é que eu fiquei? Fiquei
em brasa. A sério! Onde é que aqueles dois iriam? Saíram do hospital, foram a pé
até ao Campo Santana e aí entraram num táxi. Saí atrás deles e tomei outro que,
por sua vez, os seguiu. Descemos a Rua de S. Lázaro onde uma senhora dos seus
pouco mais de vinte anos, entrava feliz na Magalhães Coutinho, com um saco de
enxoval numa mão, dando a outra ao marido e empinando uma barriga de nove meses
e dias, descemos ao Martim Moniz, passamos pela Rua da Palma, onde um dia não
deixei presa a minha alma porque por mim não passou nenhum fadista de cor
morena e boca pequena, entramos na Praça da Figueira, onde pescadores de pé
descalço, calça arregaçada e camisa aos quadrados acartavam cestas de peixe,
peixeiras já saiam de rodilha e canastra na cabeça ensaiando os primeiros
pregões matinais, carroças com burros amarrados em argolas, junto à fonte onde
as alimárias beberricavam e saloios despejavam couves, alfaces e nabiças em
molhos, e uma melancia se desfazia em mil pedaços, caída das mãos de um
transeunte, percorremos a Rua dos Fanqueiros a caminho do Tejo, cujos últimos néones
se apagavam com o nascer da manhã e as portas de alfaiates, costureiras e
vendedores de fancarias ainda não tinha aberto as portas e, antes de chegarmos
ao Tejo, cujo Terreiro do Paço lhe serve de varanda, cortamos a Rua da
Conceição, ainda sem aquele cheiro típico do molho de escabeche, dos tordos
fritos ou das tiras de toucinho passadas na chapa, até que, finalmente, embicámos
na Rua dos Correeiros. Pedi ao taxista que abrandasse, deixasse sair o casal
que seguia no táxi em frente e, quando eles entraram no número 43, pé ante pé
segui-os escadas acima, fazendo por me esconder em cada vão de porta em cada
patim da escadaria. A porta do sexto andar estava aberta. Seria então ali o
antro da perdição. Seria então ali que o Dr. Ben e a sua concubina se
enrolariam em porcarias inenarráveis. Seria ali que trocariam beijos sujos de
boca e línguas. Seria então ali que o médico judeu desapertaria a blusa branca
de Helena, a blusa plissada de enfermeira, quiçá ainda com o distintivo do
hospital e as letras HM representando o nome de Helena Meireles, bordadas junto
ao coração. Seria então ali que os seios da bela Helena se refletiriam, como
dois bolbos de candeeiro de rua, nos brilhantes olhos do jovem médico. Seria
então ali que, empurrada sobre a cama, o doutor raios-o-parta de depravado, iria
tirar as ligas à enfermeira Helena e baixar-lhe as meias brancas, deixando à
imaginação dos leitores deste pecaminoso prospeto, que o escritor teima em que
venha a ser livro, quantas das rendas das lindas cuequinhas de Helena
denunciariam o calor que por dentro se avolumava. Seria então ali que Helena desapertaria
os botões da camisa de cambraia daquele doidivanas sem classificação e lhe
desapertaria o cinto das calças, em couro genuíno. Seria então ali…
Morria eu de ciúmes e de ardor quando deparo com Helena e o
Dr. Ismael Ben-Avraham debruçados sim, mas não um sobre o outro, antes porém
sobre um corpo já cadáver caído no corredor, alguns palmos bem medidos entre a
porta de um quarto e a porta da rua. Ben-Avraham apenas balbuciou «está morta».
Helena respondeu «nada mais temos a fazer aqui». Só tive tempo de entrar no
quinto andar abandonado antes que o casal saísse. Subi depois. Quis ver o que
se passava. Uma mulher, jovem, mais jovem que a enfermeira Helena e bem mais
jovem do que eu e muito mais bonita que ambas, prostrava-se no chão com uma
faca espetada no peito. Que raiva, esta mulherzinha, provavelmente uma corista
de teatro, ruiu os meus planos de apanhar aqueles dois em flagrante. Peguei na
faca e espetei-a de novo no seu corpo já quase frio. Seria a sexta facada, não
as contei, mas na polícia disseram-me que sim. Só peço que não digam ao
inspetor que vos contei o que contei para que ele não se sinta ultrapassado. Ou
se quiserem contem. Ele soltará puns, mas isso não é coisa que vocês já não
estejam acostumados. Quanto a mim? Não se preocupem. Nada me acontecerá. Afinal
de contas, mesmo feia, não é impunemente que se nasce filha de um legionário.
Venho de novo meter aqui o bedelho, por duas razões.Sendo que a primeira é a conta das facadas estar de acordo com a minha contabilidade.
ResponderEliminarContabilista que se preze, não pode assistir, impávida e serena, a ver as suas contas vilipendiadas e distorcidas.
Desferiu então a enfermeira feia e ciumenta a sexta facada, verdade?
A segunda é que ao falar o escritor no fadista de cor morena, boca pequena e olhar trocista que passou por mim na Rua da Palma, me lembrei do meu primeiro, único e grande amor. Aí, bateu em mim uma saudade tão forte...
Ah, amor meu, por onde andarás...Zé Alberto?
Janita, neste momento ainda só sabemos quem deu a 4ª e a 6ª. :) :)
EliminarEu nunca tive um amor na Rua da Palma e até que nasci lá perto :)
Tenho-me perdido nas tuas histórias ismaelenses, mas desta vez já fiquei a saber quem deu a 6ª facada! Muito Agatha Christie, mas esta enfermeira feia e complexada nunca me enganou... :)))
ResponderEliminarBeijocas!
Mais facada... menos facada, a mulher já estava morta e mais que morta!
ResponderEliminarA enfermeira não foi a assassina!
deste a sexta...feira?
ResponderEliminarai constantino, perdi-me
kis :=)
Então, Constantino? Bola p´ra frente! Já muitos leitores foram de férias, mas quando regressarem logo colocam a leitura em dia.
ResponderEliminarNão deixes arrefecer a boa comidinha da tasca do Ismael Gúsman, que quentinha e que ela é boa!
Valha-te Deus, homem...anda lá que eu quero ver o final da história, antes que me dê outra pataleta!!
E siga a dança...:)
Beijinhos.
criar o ambiente, montar o cenário e preparar as babas...no fim, o desfecho... desde o princípio conjecturei que ela, a filha do legionário, iria fechar com uma sexta "trancada", mas saíu facada...é só sangue!
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