«Ó
Espinheira, você quer ajudar-me na minha exposição?» perguntou o inspetor
Ismael Sacadura Flores ao jovem avençado que desde quase o início desta trama
nos acompanha. «Você quer ajudar-me nesta fase em que a Isaurinha Bate-Sola
está em maus lençóis, Espinheira?», repetiu a pergunta, agora acrescentando
algum detalhe. O jovem Espinheira que já estava a sentir-se cansado de tanta
interrupção à preleção perpetrada pelo inspetor, ora para comer sem nexo quando
desconfiava estar a ser ultrapassado, ora para beber mais um copo daquele tinto
que só na tasca de Ismael Gusmán era servido, ora para ir à casa de banho,
sendo até, que já havia consultado o relógio de pulso pelo menos umas boas três
vezes, nem hesitou em aceitar o pedido de Sacadura. É assim que iremos ouvir
durante mais de dezoito minutos, mais precisamente dezoito minutos e vinte e
quatro segundos, o jovem Espinheira, com o manuscrito de Francisca em riste,
debitar a cronologia daquele dia fatídico que retirou do mundo dos vivos tão
promissora bailarina de teatro e italiana, o que dá sempre jeito para
apresentar em cartaz. O narrador, porque é um homem de consciência e não gosta
de maçar os seus leitores com detalhes, preferindo ser pragmático e contar logo
as coisas como elas foram, sem se perder em floreados gramaticais nem em
retórica de romanos tribunos, ao contrário do escritor que é um verdadeiro
empata, que já poderia ter dito de uma vez por todas quem foi que matou a
desgraçada da bailarina e anda aqui de episódio em episódio, armado em Agatha Christie
de calças e a transformar Ismael Flores num Poirot, sendo que aquele, o
inspetor, não usa suspensórios e este, o Poirot usa fatos de tweed a cujo preço o pobre policia
português não pode sequer se aproximar. Portanto, vamos já ao fim desta coisa,
a que o escritor gosta de chamar episódio e pronto, eu também não me importo,
há que ser organizado. Assim, segundo o manuscrito de Francisca, os apuramentos
da investigação, o resumo feito para exposição pública e a preciosa ajuda de
Espinheira, paleólogo e futuro licenciado em filologia românica pela Faculdade
de Letras de Lisboa, temos:
a) Isaurinha entrou num autocarro às
7h05 da manhã, na paragem da Nacional 10, junto à Quinta do Conde.
b) Esta informação é confirmada por
Ismael Trava-fundo, o motorista dos Belos, que conhecia muito bem Isaurinha,
pois todos os dias, esta passageira apanhava, sempre à mesma hora, o autocarro
na Quinta do Conde.
c) Esta informação é também confirmada
pela D. Eugénia Bacalhoa, na verdade Eugénia Bacalhau, apelido de seu pai, mas
que na terra, devido ao sexo, sempre foi conhecida por Bacalhoa, aliás como a
sua mãe também o era como consequência do casamento com Bernardo Bacalhau, um
abastado agricultor. D. Eugénia Bacalhoa, apesar de já contar com sessenta e
cinco anos de idade era tratada por Géninha, pela sua amiga e companheira de
banco de autocarro, fazia mais de 10 anos, desde que Isaurinha arranjara
emprego na fábrica de camisas.
d) O Mário dos jornais confirmou que já
passava das sete e meia da manhã quando lhe vendeu a Crónica Feminina. Ele tem
a certeza porque naquele dia, ao vender a Crónica a Isaurinha, lhe disse «aqui
está a sua Crónica, menina Isaura». Depois olhou para o relógio e, com a vossa
licença, disse «foda-se, pouco passa das sete e meia e já não tenho mais
Crónicas».
e) Segundo o médico legista, Isabella
foi morta entre as sete e as sete e meia.
f) Mas, começando a alínea com mas o
escritor arrisca-se, não deixando de ser ossos do ofício, Isaurinha só chegou à
fábrica de camisas do Sr. Barrocas na Rua de S. Lázaro, já passava das oito e meia
da manhã, portanto, meia hora atrasada em relação à hora da entrada.
g) Ismaelix que nessa noite tinha estado
com Ekatrina a consolá-la do súbito pedido do KGB para que regressasse à
Rússia, mas não no apartamento desta, nem na casa daquele, que como sabemos se
situa na nossa conhecida Quinta do Conde, mas que não interessa para nada aqui
saber onde, já que Ekatrina não poderia ter melhor alibi do que um próprio
chefe de brigada da Judiciária, embora de aspeto estranho, uma vez que além de
uma comprida trança tem também um bigode à Chalana, porém branco, viu Isaurinha
Bate-Sola entrar no número 43 da Rua dos Correeiros, sem ter de tocar à
campainha. Seria quase oito da manhã desse fatídico dia.
«Quer
ajudar-me na minha preleção, menina Isaurinha Peres?», perguntou o inspetor
Ismael Sacadura Flores, dirigindo-se à nossa conhecida filha do sapateiro.
«Quer ajudar-me a esclarecer o que fazia naquele prédio que nem tão pouco fica
em linha reta, entre o Cais das Colunas e a Rua de S. Lázaro, sendo que para
isso teria sido melhor a menina ter subido pela Rua da Prata?», voltou a
perguntar o inspetor, desta vez, de novo mais pormenorizado, coisa que ele
fazia questão sempre que repetia uma pergunta. Por vezes, quando tinha de
repetir ainda somaria algum detalhe, como foi o caso desta vez. «Quer
ajudar-me, menina Isaura, a explicar o que foi fazer àquele prédio da Rua dos
Correeiros, mais precisamente o número 43, por coincidência ou não, a morada da
famigerada e triste dançarina de teatro de revista?». Ato contínuo, Isaurinha
Bate-Sola entra num pranto e, entre lágrimas e soluços, mal se percebendo as
primeira palavras por terem sido balbuciadas e porque para assoar o ranho que
já ameaçava sair-lhe pela narina esquerda, Sebastião lhe estendeu um lenço de
mão, por acaso de bom pano, com duas letrinhas gravadas pela sua tia Francisca,
um S e um R de Sebastião Ribeiro, tão lindo, tão romântico isto que o narrador
agora vos conta, dando conta, passe a repetição de que Castro Ribeiro, algures
entre o nascimento do garoto e o dia em que Francisca bordou aquele lenço, o
terá perfilhado e dado o seu apelido ao menino, hoje um jovem e promissor
marinheiro, quiçá um futuro lobo-do-mar, capaz de dar novos mundos ao mundo se
mais mundo houvera para se descobrir e, romântico também, embora pouco
higiénico a oferenda de Sebastião a Isaurinha, logo o seu lenço bordado, para
que esta o conspurcasse com as suas excrescências nasais, sabe-se lá em que
quantidade. Então, Isaurinha falou em ciúmes, olhou para Sebastião, fingiu um
desmaio, entrou em histerismo, levou duas chapadas da enfermeira feia, «ela
tinha de mas pagar», quase não se percebendo pois era baba que agora lhe
escorria do canto da boca, que até o agente da PIDE que lá no canto bebia uma
Sagres, e que costumava arrotar malcriadamente a cada gole, já estava a ficar
com nojo, imaginem as voltas ao estômago que estava a dar àqueles que, ainda
alguns minutos atrás, se deliciavam com os belos petiscos de Ismael Gusmán,
onde os carapaus de escabeche estavam de comer e de chorar por mais, o nojo
dizia que a baba e o ranho do choro de Isaurinha provocava. Mais calma
continuou. «Vinha, no vapor de Cacilhas para o Terreiro do Paço a ler
distraidamente a Crónica Feminina, quando um senhor, por acaso muito bem-apessoado,
me dá um encontrão, pois, com o balanço do Sul-expresso não se equilibrou.
Levantei os olhos e reparei que lia o Século. Na primeira página uma notícia,
“Ciúmes em Portugal acabam muitas vezes em crime passional”. Não era tarde, nem
era cedo. Eu seria a próxima notícia do Século. Ou do Diário de Notícias, ou do
Popular. Tinha de ser naquele dia. A italiana iria pagá-las. Se não a matasse
dar-lhe-ia uma tareia que ela não iria esquecer tão cedo. Quem sabe se lhe
partia as pernas. Vinha a sair no cais das colunas e já imaginava as
parangonas: “Filha de sapateiro deixa bailarina em estado de coma” ou então “A
pobre corista não voltará a dançar”. Até os olhos se me riam. Subi as escadas
do número quarenta e três. Quando cheguei ao sexto andar, a porta estava
aberta. Não me lembro em que pensei. Só sei que lhe iria puxar aqueles longos
cabelos, pois nem uma lima das unhas tinha para usar como arma. À minha frente,
deitada no chão, uma pobre rapariga esvaía-se em sangue. Era ela. Que raiva!
Que ódio! Morta! Que grande deceção! Morta! Que ódio! Que raiva! Peguei na faca
que tinha espetada no peito. Retirei-a e, com força, espetei-lha de novo, dizem
os senhores inspetores que foi a 5ª facada. Que raiva! Que ódio! No Rossio
lavei as mãos. Na rua da Palma bebi um copo de água com açúcar. Quando entrei
na fábrica de camisas, sentei-me na máquina e não abri a boca toda a manhã. Eu
ardia de raiva. De ódio»
Excelente como sempre
ResponderEliminarAbraço amigo
Ahh, Isaurinha Bate-Sola, desta vez vais bater com os quatro costados na cadeia de Alcatraz, ou noutra qualquer. Isso é lá ódio que se sinta por uma bailarina tão prendada e talentosa?
ResponderEliminarCá para mim tu deste-lhe a sexta e a sétima, foi o que foi!
Já acabou, Constantino?? :)))
Beijinhos!
ai esta trama tá mesmo àmaneira portuguesa. mete facadas, armas brancas, mortes, e vingança. coitada da isaurinha bate-sola!
ResponderEliminarUma lima? nao seria melhor um limão?
kis :=)
Que confusão, Vítor Constantino, que confusão, quando e como isso vai se organizar?! Quem "mata o que já está morto" é assassino também? O que conta o gesto ou a intenção?????
ResponderEliminar;)))
A aguardar o livro :)
ResponderEliminarbeijos
cvb