quarta-feira, 12 de setembro de 2018

237. O dono da bola - #8. Um-contra-um


No andar por cima do meu morava uma família incompleta. Um pai viúvo e dois filhos ou, mais propriamente, um filho e uma filha. O filho, o Zé Carlos, era o meu parceiro ou, mais precisamente, o meu adversário no um para um.
O pai, figura austera e de poucas falas, subia as escadas de cabeça baixa. Bom dia, boa tarde era o mais que se retirava daquela boca e não era todos os dias. Nas mais das vezes, saía mudo e entrava calado. Não sei se o poderíamos apelidar de trombudo, de antissocial ou simplesmente de tímido. Mas para a minha pessoa, para ser verdadeiro, ou mais condicente com a realidade, tenho de o dizer que nunca foi tão macambúzio assim. À tal saudação de bom dia ou de boa tarde acrescentava quase sempre um olá e, talvez por mor do filho, sabia até o meu nome. Boa tarde vizinho dizia eu, Olá Vítor, respondia ele, e até chegava a perguntar, verdade que raramente,  Estás bom? Não tenho a certeza, apenas porque não me lembro de ver lá mais ninguém, penso que era o único que ele autorizava a entrar lá em casa para brincar com o Zé Carlos e bonomia das bonomias, autorizava a filha a ir ver televisão à nossa casa. Mas os filhos não punham, com ele, o pé em ramo verde. Se algum fazia alguma patifaria, haveria castigo pela certa o que a mim me doía por consequência. Era quando ele não deixava o Zé Carlos sair para jogarmos à bola.

O Zé Carlos era o meu companheiro no um para um. Quando fomos morar para o Bairro as pracetas não estavam arranjadas. Eram em terra batida e nem mesmo os passeios dos prédios estavam acabados. Havia calçada alternando com buracos e pedras de calçada soltas. Havia também alguns prédios inacabados embora naquela época não fosse moda os “ocupas” e, como tal, assim se mantinham até que a A Confidente pegasse neles. Dizia-se na época que os construtores, afogados em dívidas, alguns até com andares vendidos, mas sem papeis passados, o que fez com que algumas pessoas tivessem perdido o dinheiro da entrada, poupanças de uma vida, tinham fugido a salto para França para não serem presos. Outros diziam também que tinha havido negligência ou até corrupção, na altura usava-se dizer que “estavam feitos” com a Câmara Municipal, sendo que alguém se abarbataria com o dinheiro das calçadas que nunca foram feitas, a troco de fechar os olhos nas inspeções. Venha agora a saber-se porquê, tantos anos passados, isso agora não interessa para nada, siga a Marinha como se costuma dizer. A verdade é que chegamos ao 25 de Abril com as pracetas e arruamentos num estado tão deplorável que antes mesmo de se falarem por todo os país em comissões de moradores, já no meu Bairro se tinha constituído a Comissão para o Melhoramento da Pracetas, liderada pelo Jaques e de que faziam parte o Sr. Agostinho, o Ti Abreu, entre outros que já me não ocorrem à memória. Para muitos isso seria muito bom, pois nos finais dos anos sessenta, principio dos setenta já existiam alguns carros lá no Bairro, fruto de uma evolução positiva de emprego na margem sul do Tejo, com a abertura da Lisnave na Margueira em Almada e, assim, as suas viaturas escusavam de ficar atoladas, para outros seria muito melhor porque viria mesmo a ser construído, numa das pracetas, um rinque onde ainda hoje se podem fazer os jogos de futebol, no local onde no meu tempo era necessário cortar cardos e amassar ervas para jogar à bola. Além disso, o 25 de Abril já me veio apanhar com quase dezanove anos, numa altura em que nem eu, nem o Zé Carlos jogávamos à bola na nossa praceta pelo que não nos faria diferença nenhuma. Aliás, no 25 de Abril o Zé Carlos já nem morava no andar de cima. Tinha-se mudado não sei para onde.

Quando o Zé Carlos e eu descíamos, pouco antes da hora do jantar, em tempo de verão, pois está visto, que não só ainda era dia às oito da noite, como no inverno a praceta era um lamaçal, contávamos dez pés em cada ponta da praceta entre duas pedras que iriam servir de baliza. E só nós dois, de um lado para o outro, num mano a mano, onde ninguém ganhava nem perdia. Quando o pai do Zé Carlos dava um assobio ou a minha mãe se assomava à janela para avisarem que o jantar estava pronto era como se o árbitro desse por terminado o encontro. Só que o resultado passava para o dia seguinte e assim sucessivamente. Penso que o placard está em duzentos e quarenta e seis a duzentos e quarenta e cinco mas já não me lembro quem está a ganhar. A última partida foi há quase cinquenta anos.

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