Não me lembro de ter tido um amigo tão pouco eclético. Aliás a palavra eclético fazia-o mesmo suar, de odiosa que era para ele. Por exemplo o Paiva. O Paiva não. O Paiva vai para o trabalho, impecável no seu BMW série 5 e vestido quase sempre por George Armani, mas quando chega a hora do almoço, corre em calções e t-shirt pela marginal ou, nos fins de semana, está nas escaladas e no rafting. Ou o Gonçalves, sim o Gonçalves, aquele meu amigo que tem imensas caraterísticas de intelectual anos sessenta, não é raro vê-lo percorrer dedo após dedo os vinis que cuida religiosamente para ouvir um trecho dos Procol Harum ou mesmo a passear Jean-Paul Sartre pelo Magestic e, no entanto, cede facilmente aos caprichos da Rita, com quem casou por amor, claro, e aguenta-se desde manhã cedinho na fila da FNAC para comprar, com três meses de antecedência, bilhetes para o concerto de Toni Carreira no pavilhão Atlântico.
Quando pediu ao Tomás que parasse o Mercedes na estação de serviço de Grândola, o motorista pensou que o Athaíde (a quem sempre chamei Pedrito) fosse fumar o seu Montecristo número 3, já que nunca o faz no carro, ou que fosse apenas sair com a senhora D. Helena (como o Tomás sempre se refere à patroa) que, desde nova, sofre de claustrofobia. Afinal foram à loja de conveniência comprar qualquer coisa que o Tomás não se apercebeu, mas que seria para fazer uma surpresa ao Constantino (ele sempre me chamou assim).
O Athaíde era o menos versátil de todos os meus amigos. Não emprego aqui de novo a palavra eclético para que ele, lá onde Deus o tem após o fulminante enfarte que o levou, o ano passado, da nossa companhia, dizia, para que ele se não arrepie. O senhor Pedro de Athaíde, sua excelência, só ouvia música clássica fosse no carro ou fosse em casa, ou então ópera da qual era um amante incondicional. A abertura das temporadas no S. Carlos ou na Gulbenkian, onde era mais conhecido do que Mahler ou Stravinsky, nunca foram perdidas nos últimos vinte anos antes de falecer. Porque controlava totalmente os seus horários, assistia à abertura da época no La Scalla em Milão, onde, não sei como nem por que por artes, tinha como que lugar cativo. Mas nem só de música se alimentava Pedrito. Aliás o Pedro de Athaíde foi o maior gourmet que alguma vez tive como amigo, comia nos melhores restaurantes de Portugal – ele dizia e do mundo – era amigo pessoal de Ferran Adriá e de René Redzepi, presença assídua no Valle Flores e no Tavares e quando lhe dava na real gana, pegava em Leninha e viajava propositadamente a Copenhaga só para jantar no Noma. Pedro nunca entrou numa tasca e até o cheiro das iscas com elas ele abominava.
Pedrito olhou para a mesa de plástico, posta no alpendre do quintal. No grelhador já se aloiravam sardinhas do Algarve e os canjerões de tinto brilhavam no seu barro vidrado. Os pratos que ornamentavam a mesa eram de barro pintado e decorado, tipicamente alentejanos, comprados em S. Pedro do Corval, e os copos eram pequenos e finos trazidos do Cartaxo. Apesar dos trinta e dois graus centígrados, o Athaíde não desapertou o nó da gravata. Perguntou onde é que nos sentamos e antes de tirar o casaco, piscou o olho a Leninha e pediu ao Tomás o envelope que lhe tinha dado a guardar na estação de serviço. Entregou-me um CD de Quim Barreiros e disse-me que nem admitia comer sardinha assada sem uma música de fundo.