sexta-feira, 21 de setembro de 2018

238. O dono da bola - #9. O meu irmão guarda-redes


Na praceta das traseiras não havia carros. Aliás quase não havia carros em nenhuma das pracetas. Estávamos nos finais dos anos 60, início dos 70 e pouca gente tinha dinheiro para comprar carros. Um bairro onde a maioria eram operários, empregados de comércio, embarcadiços, estivadores e outros portuários, motoristas de autocarro, funcionários públicos, que na época ganhavam bastante pouco, magarefes, pescadores e um ou outro estabelecido. Assim, como hei de dizer, classe operária e baixa classe média. No bairro não havia ricos embora também não se possa dizer que fosse um bairro pobre. Mas carros havia poucos, havia muito espaço para jogar à bola, era na minha praceta, era num baldio que ligava o Bairro ao Valdeão, hoje integrando o HGO, era na própria estrada onde, amiúde, aparecia a GNR a perseguir os putos que jogavam à bola, bastas vezes a guarda a cavalo pois aquela urbanização estava implantada numa zona rural, cercada pela Quinta do Olho de Vidro, a Quinta do Cesteiro, o Valdeão, a Quinta do Malquefarte, a Quinta do Pinheiro e por aí fora que a minha memória não consegue lembrar-se de todos os nomes, eu não sou nenhum Saramago, era na praceta das traseiras e a minha mãe,

- Joga-lhes um balde água

cheia de cardos e de outras ervas que a malta pisava com os sapatos, para a transformar em campo relvado, no meu Bairro não se andava descalço e que no final até parecia mesmo um campo relvado, até aonde vai a imaginação das crianças. E lá se montava o estádio, onde hoje é um rinque cimentado, com balizas de futebol a sério e a minha mãe,

- Estou a falar a sério, manda-lhes um balde água

e redes de proteção para que as bolas não acabem nos vidros de alguma janela, e eram duas pedras a servir de baliza, quatro se contarmos que havia duas balizas e numa delas, o meu irmão do meio, o mais novo ainda era praticamente bebé, guarda-redes como se falará mais tarde, mas ali, a voar para a bola e a cair nos cardos batidos e os joelhos a baterem no chão a chegarem a casa sangrando, no entanto ele voava, parecia o Capitão América ou o SuperMan, ou para mim o melhor, o major Jaime Eduardo de Cook e Alvega, o major Alvega da revista Falcão, que saudades que tenho daqueles livros aos quadradinhos e a minha mãe,

- Vem para mesa

e eu a pedir para atrasar um  bocadinho o almoço, estava a acabar um capítulo de História ou de Geografia pois à tarde ia ter ponto, com o Falcão escondido no meio dos livros de estudo e, enquanto o major Alvega não arrasava a asa da tirania nazi dos céus de Inglaterra, eu não engolia o bife ou, mais certo, os carapaus fritos, mas não, não voava tão alto como o major Alvega porque o major Alvega voava de avião e o meu irmão Carlos voava sobre o relvado de cardos e eu frustrado porque mais uma vez, apesar da bomba, que não de um avião da RAF nem da Luftwaffe, era uma bomba saída dos pés de uma criança de catorze anos, não marcava golo, logo eu do Benfica e ele do Sporting, podia lá ser eu não marcar, quem me dera que fosse frangueiro e eu cada bola, cada golo, mas não, ele defendia mesmo bem, defendia quase tudo. Só que eu era avançado e também marcava bem mesmo ela entrava altas ou por cima da pedra que era  poste ou que fingia ser se entornava o caldo entre irmãos, rivais de clube e rivais na função, um avançado, outro guarda-redes, Foi golo, Não foi nada e eu Foi e ele Não foi e eu Batoteiro, Batoteiro és tu, Larga já a bola que a bola é minha, Querias, vem-ma cá tirar se a queres e eu ia e andava-mos à bulha e a minha mãe para aquela que via os nosso jogos pela janela da sala, tão garotos que nós éramos e acabámos por casar, já lá vão trinta e oito anos de enlace muitos de namoro, dois filhos e três netos eramos uns garotos e a minha mãe sem sonhar que alguma vez ia ser a sogra recomendava-lhe,

- Se eles discutirem, manda-lhes um balde água.

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