quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

248. O dono da bola - #17. O interturmas na Universidade



Foi um jogo histórico. Era o último jogo da fase de grupos e bastava-nos uma vitória. Qualquer que fosse o resultado pois 1 a 0 já era o suficiente e seguiríamos em frente. Era o nosso último ano no Técnico e nunca a nossa equipa tinha passado em primeiro lugar a fase de grupos. Era aquela a nossa grande chance e logo contra, se não a mais fraca, uma das mais fracas equipas do torneio. Tínhamos ganho, até com surpresa,

a Providência Divina, nunca ouviste falar? Parece que não…

a outras que não esperávamos, mas naquela altura até jogávamos bem, tínhamos uma boa linha. Começamos logo a carregar. Alugávamos o nosso meio campo nem que fosse para fazer uma feira.

nunca se saíram bem os vendilhões do Templo…

Os tipos nem tocavam na redondinha. As oportunidades surgiam atrás de oportunidades e o golo estava eminente. A confiança era enorme. O nosso guarda-redes era um mero espectador.

!fia-te na Virgem, fia-te na Virgem e não corras e vais ver onde vais parar!

Fizemos deles gato-sapato até que, uma bola perdida, um pontapé para a frente apanhando-nos em contrapé e toma lá que é para aprenderes,

eu não digo, eu não digo?...

os gajos marcam um golo. Estávamos a perder por um a zero mas isso não nos afetou o ânimo.

isso dizes tu. Faço ideia a tremedeira que por lá ia…

Em cada bola que chutávamos parecíamos querer explodir num tremendo grito de golo. Mas a bola teimava em queimar os postes ou o guarda-redes deles defendia tudo e quando não era ele a defender as bolas bateriam num defesa.

- E agora já acreditas na Providência Divina?
- Eu nunca deixei de acreditar…
- Ah não?
- Não. Só não percebo ainda porque é que fomos desprotegidos!

Até que às tantas, penalti! Penalti a nosso favor, ainda havia tempo. A segunda-parte tinha começado agora mesmo. A recuperação era possível. O Jorge foi marcar e… falhou.

entraram em campo sobranceiros, só podia ser. Sabes o que é humildade?

Deceção total. Tinha sido naquele momento ou nunca. Qual nunca, qual quê!

- Neste aspeto tens razão. A esperança é sempre a última a morrer
-Deixas-me acabar a história, ou não?
- Acaba lá. Mas olha que estou com um mau pressentimento
- És um agoiro!

Vamos mas é ganhar isto! Vamos? E continuamos a mandar bolas aos postes, outras salvas in extremis, o tempo a passar e acabamos o jogo perdendo por um a zero. Caímos exaustos no chão. Foi ali o meu último jogo num torneio interno do Técnico. Era o meu 5º ano e algumas semanas mais tarde terminaria o curso.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

247. O dono da bola - #16. Um autocarro em frente da baliza


O título deste texto apresenta uma expressão que se tornou popular no mundo do futebol. O seu significado é o de que uma equipa se coloca numa atitude tão defensiva, que os seus elementos ocupam todos os caminhos de acesso à própria baliza. Isto nem seria assim tão errado, poderia mesmo querer dizer que a equipa defendia muito bem se, por acaso, isso não significasse também o abdicar quase por completo de efetuar jogadas ofensivas.

Ó Pá, não te vais agora aqui pôr a explicar táticas de futebol. Os teus leitores querem ler histórias e não tretas.

A nossa equipa no interturmas da Escola Náutica não defendia bem. Também não defendia mal. A nossa Quiaios Team não defendia nada! Ele era cada tareia que tirava a barriguinha de misérias a cada equipa que nos defrontasse. Mas naquele dia, não! Naquele dia, tudo iria ser diferente.

Então vá lá, qual foi a tática?

Durante toda a semana se ouvia falar que era desta vez que íamos levar trinta. Como se fosse um jogo de andebol. Íamos jogar contra a melhor equipa do torneio. Já a nossa equipa de craques, a primeira equipa da turma, aquela de que vos falei no episódio anterior, já essa tinha sido esmagada. Agora iria ser a degola dos inocentes. Nem íamos sair do meio-campo. E pronto, é verdade, praticamente não saímos.

Ah não? Isso é que é tática? Agora sou mesmo todo ouvidos. Mas despacha-te que não tenho o dia todo…

O Rui falou com a malta. Não se usava ainda a expressão “meter um autocarro em frente da baliza”. Nem nós eramos camioneta para tanta areia. Então o melhor era esperar, mas não tão perto assim da área, obrigando-os, se quisessem, a rematar de longe e nós nunca descompensarmos. Bola cortada, era pontapé para a frente. Eles que corressem, haveriam de estoirar de cansaço. E o pessoal se perdesse por um ou dois já era como se fosse derrota para eles. Eu ouvi, mas não calei. Logo eu que só gosto de marcar golos. Defender para mim tem de ser de circunstância. O meu lugar é na frente a marcar golos. Se eu levasse uma bolada de um daqueles, levezinho como era, até dava meia volta no ar… Mas tem de ser, dizia o Rui. Se não tínhamos nenhuma chance de lhes ganhar, então também não serviríamos de chacota.

Resultou?

Por duas vezes que não recuperei. Ou porque me esquecia de ir mais atrás, ou porque a minha rotina não era aquela, ou porque a minha maneira de ser era outra, que se lixasse se levássemos dez ou trinta, era perder na mesma. E tal como os pensamentos voam também as bolas e, por duas vezes, ela me saltou na frente, eu sozinho no meio campo adversário apesar do mau estar e, reconheço, falta de solidariedade para com os meus colegas lá atrás, a levarem com a artilharia “inimiga” toda em cima. E ah! Pernas para que vos quero, bola tentadora e enquanto o “treinador” gritava, Chuta pra fora e recua!,  lá fui eu a correr direito à baliza adversária, uma das vezes desarmado in extremis e outra vez com um pontapé disparatado para as nuvens.

Ena, o que vai para aí de sofrimento e frustração…

Ele há pensamentos que ultrapassam os timings da narração. Mas a verdade é que esse foi um dos jogos mais frustrantes da minha “carreira”.  Perdemos por poucos, eu só joguei meia parte, desisti ao intervalo, não tive estofo para aquilo, o meu estômago não me deixava, era a revolta dentro de mim. Eu já não seria útil no segundo tempo. E foi verdade, não fui preciso para nada. Perdemos por poucos.

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

246. O dono da bola. #15 - Quiaios team e a origem do nome de Lisboa


Foi por causa do Maia Brás que a nossa equipa de futebol, no interturmas da Náutica, se chamou Quiaios Team. O Maia Brás, apelido deste nosso amigo, e tal como era conhecido na Escola Náutica Infante D. Henrique, era natural de Quiaios.

Contou-me um dia, que o nome da sua terra provinha de uma evolução fonética utilizada, durante a chamada reconquista cristã, por um soldado de Afonso Henriques, o nosso D. Afonso I, que ao descortinar escondidos nos ramos de uma oliveira, a celebríssima oliveira de Quiaios, uns quantos guerreiros mouros, terá gritado – Aqui há-os! Aqui há-os! E daí Quiaios.

Quiaios Team, quiçá a pior equipa que alguma vez tenha participado num interturmas da Escola Náutica. É verdade!  A nossa turma de Máquinas estava recheada de craques, mas era uma cagona. Sim uma cagona, porque tinha a mania. Eram só futebolistas de eleição, alguns altos e outros altos e loiros, alguns que sabiam fazer muitas fintas, um outro que jogava no Oeiras! Tudo muito bom, tudo escolhido a dedo, tudo muito habilidosos… infelizmente, digo infelizmente porque eu também pertencia à turma, mas não à equipa e tive pena, eles não passaram da cepa torta. Quanto a nós, o Quiaios Team, ficamos em último, contudo com muita honra.

Conta lá isso bem de ficarmos em últimos e com muita honra…
Dois de nós não podíamos fazer parte da “equipa da turma”, a dos craques pois, como andávamos no Técnico ao mesmo tempo, não estávamos lá quando se formou a linha, disse um, o dono da equipa, mas que por pudor não digo aqui o nome. Tretas! Bullshit! Mas não, não nos ficámos. Ah, isso não. Fomos à procura de malta.

O Barreto que era muito alto

- Futebol, o que é isso?

só sabia jogar basquete. Pegava numa bola de futebol e lançava-a ao cesto. E depois ria-se.
O Nuno não era muito alto, mas era o companheiro do Barreto a jogar basquete e amigo de família, ambos retornados de Moçambique, já se conheciam de Lourenço Marques, sabia o que era uma bola de futebol, mas não sabia como chutá-la.
O Acácio que também sobrou de outra turma, que embora gostasse de jogar futebol também era mais basquete. Acho que chegou ainda a jogar oficialmente.
O Rui e eu também alinhamos, nos dias que não tínhamos obrigações no Técnico e, finalmente,
o Maia Brás que era o guarda-redes, sem técnica, sem saber quando ir à bola, mas corajoso, ficando muitas vezes com as mãos a escaldar quando a bola aparecia com mais força. E foi assim que levamos cabazadas atrás de cabazadas até que um dia decidimos colocar o autocarro à frente da baliza. Mas isso ficará para outro dia.

É pá hoje foi pequenino!

E foi.


No dia que o meu amigo e colega de quarto na residência da Escola Náutica me contou como surgiu o nome de Quiaios, inventei, por analogia, a origem do nome de Lisboa. Embora sem a ficção que coloquei no texto seguinte, foi assim que acabamos a conversa do dia e apagamos a luz, porque às oito da manhã iriamos ter um teste de motores. Aqui partilho então a explicação que lhe dei da origem do nome da nossa Capital.

Agora que já sabem como surgiu o nome de Quiaios, fiquem a saber como nasceu o nome da nossa Lisboa. Também durante a reconquista cristã, uns diazitos após “aqui há-os” lá para as bandas da Figueira da Foz o que viria a ser Quiaios, os soldados portugueses, em consequência do entalanço do nobre Martim Moniz nas portas do Castelo e como prémio de jogo, já que nesse tempo só se pagavam como Ronaldos, os padres, os nobres, os fidalgos e os cavaleiros, com conventos, terrenos e até povoações inteiras, tiveram direito a folga. Desceram a costa do Castelo, embrenharam-se na Mouraria, ouviram ou então pensaram ter ouvido um fadista louco, beberam na tasca do Gingão, compraram pentes para os longos cabelos e pensos rápidos para cobrir uns arranhões que um ou outro mouro mais atrevido lhes tinham feito e que à conta disso acabaram por perder as cabeças, no largo que mais tarde haveria de ter o nome do nobre mártir, a uns indianos que iam a passar (houve um que comprou flores), jogaram moeda ao ar, creio que um cruzado novinho em folha, quer-se dizer novinho em cobre e prata, e saiu-lhes subir a Almirante Reis, muitos anos, mas mesmo muitos, antes do tal Almirante ter nascido. E se o carbonário ainda não tinha nascido, também o não tinha Diogo Inácio de Pina Manique o que haveria de ser Intendente do Reino e a quem lhe foi atribuído nome de Largo, por acaso durante muito tempo de má fama pela sua frequência. E é aqui que retomamos a toponímia, ou melhor dizendo de toponímia temos nós estado a falar, retomamos o tema que foi o da origem etimológica desta nossa linda capital: Lisboa. Um dos guerreiros, já com um grão na asa, pois não lhe tendo bastado o canjirão de tintol que havia virado na tasca da Rua do Capelão, ainda desrespeitou o sorteio de cruzado ao ar que os mandava para a direita e sem ninguém ver, virou-se para a esquerda, não por qualquer convicção política, mas porque alguém já lho tinha recomendado e deu um salto ao Rossio, onde entornou de seguida duas ginjinhas com elas, entornou é como quem diz, ah não que ele não sabia o que era bom, não tivesse ele passado por Óbidos quando marchou de Quiaios por aí abaixo para tomar o castelo de uma das mais belas colinas da nossa cidade. E para que não nos percamos neste relato, o dito soldado que mesmo correndo aos zigues-zagues ainda teve tempo de apanhar os seus camaradas, que se haviam distraído a olhar para umas lojas de chineses, embevecidos com os rádios transístores e uns vestidos em algodão e poliéster que estavam nas montras e por um tipo de tez morena e cabelo com brilhantina que lhes tentava vender relógios, em pleno largo do Intendente, olhando um grupo de moças, a que alguém teima em dizer que eram meretrizes, mas que se limitavam a rodar a bolsinha por um cordão enfiado no dedo indicador, gritou a plenos pulmões, embora a voz lhe tenha saído um  pouco arrastada e, diz quem assistiu, um bocado aos soluços: - Ali as boas! E pronto a evolução fonética encarregou-se do resto, os acordos ortográficos, mormente a Reforma de 1911 que acabou praticamente com o grego da nossa escrita, deu-lhe o formato final. Talvez por isso eu me tenha visto grego para vos relatar facto histórico tão relevante para a nossa portugalidade, como seja o nascimento desta Lisboa que eu amo. E se o Rei morreu, alguns anos depois e o último se finaria de morte matada em pleno Terreiro do Paço, por aqui me fico porque eu gosto mesmo é de jogar à bola.

Algumas notas finais, de frases e diálogos não introduzidos no texto para que não se perdesse o fio à meada:

- Quer frô? (pergunta feita no largo Martim Moniz por um vendedor que se julga, só alguns anos depois poder ter vindo da Índia ou do Paquistão).

- Este gajo não canta nada (frase ouvida sair de uma tasca na Rua da Amendoeira, em plena Mouraria, que levaria a uma altercação da ordem pública, mas onde os guerreiros não intervieram, não só porque estavam de folga, mas também porque de fado não percebiam nada, o que não lhes permitia tomar partido).

- Aiiii, este relógio é baratoooooo, é um rolecsiiii…
- Mas que merda é essa de rolecse?
- Não ligues pá, isso deve ser fake
- Mas eu nem sequer sei o que é um rolecse…
- Ó mano, não vês que é assim uma espécie de ampulheta, mas para trazer no pulso.
- Esquece meu, vamos mas é às putas!
Depois destas brejeirices, muito comuns entre soldados, ficou o tipo do cabelo com brilhantina e fato de fino corte a coçar a cabeça e a pensar que raio seria isso de ampulheta…

- Não achas que aquele vestidinho vermelho ficava mesmo a matar à minha Genevève?
- Olha lá, ó cruzado, lá na tua Gália não há melhor coisa que estes vestidos chineses, assim tipo um Rabanne ou um Dior?
- Se calhar, mas não tenho tido tempo de ir às compras com ela e a minha Genevève não se despe nem se veste à frente de mais ninguém que não seja cá o je.

E por fim:

- Donde é que vens com essa tosga na carola, óh guerreiro Rodrigo do Alto Minho?
- Vai chamar bêbado ao teu pai. Vê lá se queres que eu mande aqui um palavrão à moda de Barcelos.
- É pá isso não, que isso dá galo e ainda temos o resto do país para conquistar.

E assim se foram eles, direitos ao Intendente, criar o nome da cidade.

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

245. Pero que las hay, las hay e outros sabores - Apresentação e agradecimentos






Apresentação do livro “Pero que las hay, las hay e outros sabores” pela Dra.  Ângela Mota (*), no CSPPRG em 15-11-2018

Há dias fui ao lançamento de um livro em que um dos elementos que apresentava a obra do autor, cujo nome é Diana, começou por dizer: “Conheço a Diana desde o tempo em que todos a tratavam por Dianinha…”.

Eu não conheço o Vítor desde o tempo em que todos lhe chamavam Vitinha, mas isso não retira nem um ponto sequer do apreço e da  ternura que nutro por este homem bom, sempre pronto a contagiar-nos com o seu bom humor e a sua humanidade.

Da leitura que fiz da sua biografia posso dizer que nada acrescentou que eu já não soubesse – a sua formação em engenharia, o seu trabalho como voluntário em universidades seniores ou em instituições do género, como é o caso da Cultura Aberta, a sua ligação às redes sociais e o seu amor à fotografia, à leitura e à escrita.

A razão peça qual estamos aqui hoje prende-se com esse último amor – a escrita: O Vítor é autor de uma série de livros no âmbito do romance, da poesia e … agora contos.

O livro que hoje apresentamos chama-se “Pero que las hay, las hay e outros sabores” – um livro de contos em que Vítor Fernandes nos seduz com a sua escrita, envolvendo-nos e conduzindo-nos a um verdadeiro jardim antropológico, povoado de uma multiplicidade de personagens, tocadas pela magia da sua ficção. Magia essa que cria realidades alternativas, mas nem por isso menos reais, e que dada a sua vivacidade e humanidade se revelam capazes de nos desfiarem a revermo-nos nelas, levando-nos até a descobrir coisas sobre nós e os outros que até então desconhecíamos.

O que vem referido numa das badanas do livro dá-nos uma breve ideia da riqueza de personagens e contextos. Dentistas, fotógrafos, professores, empregados de seguros, gente rural, bruxas, poetas, endireitas, doentes… são-nos apresentados em situações tão diversas como ressuscitamentos, mortes naturais, lembranças, sonhos, esquecimentos, declarações de amor, suicídios, nostalgias e muitas muitas tentações provocadas pelo prazer da gula. Convém dizer que a escrita de Vítor Fernandes convive com muita informação gastronómica, de par com muitas referências culturais como modo de caracterizar personagens e situações.

Porém a diversidade deste livro de contos não se limita às personagens, aos contextos, aos temas. Também a estrutura dos contos é variada. Há-os curtos, muito curtos, que parecem só um “respirar” narrativo, isto é, o tempo da sua leitura não demora mais do que uma inspiração e uma expiração, e são como uma interpelação ao leitor, uma partilha, por parte do narrador, de um sentir, de uma reflexão, de uma experiência… outros há que se explanam e nos deliciam com uma prosa eivada de poesia ou humor, mas com a economia própria do conto, centrando-se num conflito que se desenrola de modo contido e onde nos deparamos, de conto para conto, com uma polifonia de narradores.

O modo directo como esses narradores iniciam os contos cativam o leitor, estimulam-no. As primeiras frases suscitam logo o seu interesse e por outro lado o modo como depois os terminam, muitas vezes com o seu quê de inesperado, abrupto, misterioso até, deixando frequentemente ao leitor várias interpretações, é motivo para que a leitura deste livro faça voar folha atrás de folha.

Porém este livro não é só um livro que se lê bem, que cativa e diverte… Num tempo em que se insinua um certo desencanto em relação à condição humana é reconfortante, direi mesmo inspirador, encontrar “olhares” como os dos narradores de Vítor Fernandes, “olhares” e “sentires”, simultaneamente ternos e irónicos, que nos fazem reflectir  e conviver com a diferença, a poesia, o humor, a inocência, o caricato, o bizarro, a bondade, dando-nos uma perspectiva plena de riqueza e optimismo sobre o ser humano.


(*) Ângela Mota é licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e antiga professora do Ensino Secundário.

Nota: A autora do texto opta pela grafia anterior ao AO de 1990.

Agradecimentos:
Ao Centro Social Paroquial Padre Ricardo Gameiro – CSPPRG - pela cedência das instalações.
À Vice-presidente do CSPPRG, D. Ana Luísa Caixa, pela abertura da sessão e pelas palavras simpáticas que dirigiu ao autor.
Ao projeto Cultura Aberta, na pessoa da sua Diretora, Dra. Ana Teresa, à Alzira Gorgulho pela preparação da sala e à Profª Cecília Correia, maestrina da Tuna Sol e Dó que abrilhantou a sessão.
À Editora Emporium, em particular à Dra. Clara Simões, que comigo colaborou na elaboração física do livro numa constante presença e troca de informação.
À Dra. Ângela Mota pela apresentação da obra e do autor.
A todas e todos os meus amigos que encheram a sala na apresentação.
À minha mulher, Maria José Capote, que fez o lanche que acompanhou o Moscatel de Honra do final da sessão.
Ao meu amigo Paulo Trilho que fotografou a sessão e me ofereceu as fotos.
E por fim, mas não menos importante, aos meus estimadíssimos leitores.

domingo, 11 de novembro de 2018

244. Pausa na bola

É só para informar as minhas amigas e os meus amigos de que na próxima 5ª feira, dia 15 de Novembro às 17h30, será apresentado, na Rua Ramiro Ferrão, nº 38 - Residência Nossa Senhora da Esperança do CSP Padre Ricardo Gameiro, o meu novo livro, desta vez um livro de contos, intitulado "Pero que las hay, las hay e outros sabores".




Estão todos convidados!

domingo, 4 de novembro de 2018

243. O dono da bola - #14 Matadourense


1

Decorria o ano de 1973 e a Câmara Municipal de Almada organizava os 1ºs Jogos Juvenis de Almada, os primeiros e os últimos, cuja direção fora dada, por convite da CMA ao estimado e, infelizmente já falecido, Adelino Paiva de Moura, conhecido normalmente por Adelino Moura, uma das grandes figuras do desporto do Concelho e, porque não, do País. Com a revolução do 25 de abril de 1974, provavelmente pela conotação desta iniciativa com uma CM do antigo regime ou, talvez, porque depois do 25 de abril também se massificou o desporto escolar e popular e se criaram eventos desportivos nas mais diversas áreas, não voltou a realizar-se a que foi, até essa data, a maior manifestação desportiva para jovens no Concelho de Almada e uma das maiores de Portugal.

No entanto, cada bela tem o seu senão ou não, e para se participar nos jogos era necessário fazê-lo sob a égide de uma organização, fosse coletividade de cultura e recreio, fosse clube desportivo, ainda que, de caráter popular. E isso poderia de uma forma radical desaproveitar os “talentos” que tínhamos lá no Bairro pois, ali, os únicos clubes que existiam, ou tinham existido, eram os Unidos do Bairro e a Juventus do Valdeão que tinham equipas só para adultos e que apenas jogavam futebol nos torneios populares, aos fins de semana, fosse no campo do Ginásio, hoje campo do Beira-Mar, fosse no campo do Monte ou do Costa. Mas no Bairro havia outros talentos, havia futebol, mas também andebol, atletismo e, acreditem, até badminton.

Seguindo o velho ditado que diz que para grandes males, grandes remédios, não foi cedo, nem foi tarde para que no nosso Bairro se criasse um clube. Elaboraram-se uns estatutos, fez-se uma pequena reunião que hoje, e se calhar naquele tempo também, se chamaria Assembleia Geral de Constituição, nomeou-se um presidente que seria eu, um tesoureiro que teria de ser uma pessoa adulta e acima de qualquer suspeita e foi escolhido o Senhor Duarte da drogaria, um secretário, que salvo erro foi o Carapinha, escolheu-se a cor dos equipamentos, azul a camisola e a meia que se foi comprar a Lisboa, à Rua do Benformoso, sem números porque não havia dinheiro para esse luxo, as camisolas eram na realidade t-shirts

- Não são giras, malta?

mas que nesse tempo não se designavam assim, eram camisolas e pronto, e os calções seriam brancos, mas cada um teria de levar os que tivessem em casa porque não havia dinheiro da quotização para tanto.

-Qual é? São vinte e cinco tostões, pá. Não me digas que não podes pagar a quota…

Quanto às chuteiras para o futebol alguém se encarregou de ir pedir ao Almada e ao Piedade umas sobras e lá apareceram umas quantas, não deu para todos, já bastante velhotas, com traves porque pitons seria um luxo maior do que ter números na camisola. Os que não tiveram a sorte de que algumas das chuteiras lhes servissem jogavam de ténis, quer dizer, de sapatilhas

- “As minhas são umas Sanjo já ranhosas. Quando se romperem jogo descalço”. Já não me lembro quem disse a frase mas ficou-me no ouvido
porque a malta não chamava ténis. Parece que o nome não era muito conhecido. E de ténis ou sapatilhas para os desportos de pavilhão ou corridas equipariam os atletas dessas modalidades a expensas próprias. A criação do clube carecia de alguma burocracia, mas isso, que não era impeditivo para que inscrevêssemos as nossas equipas e os nossos atletas nos Jogos Juvenis, que seria tratada mais tarde ou durante os Jogos. Acho que isso nunca foi feito, mas o clube acabou por durar ainda uns anos, na modalidade de futebol e jogando em torneios populares.

Com grande pena minha eu não pude participar nos Jogos. A idade limite era de 16 anos e eu já iria completar 18 nessa altura.

- Qual batota, qual caraças, não faço batota nenhuma. Não sou nenhum galdério. Na minha cédula ninguém mexe. Prefiro não participar. E não participei.

No entanto, como presidente, representei sempre o clube, participamos em atletismo com a Isabel Brito e com o Carapinha, a um nível elevado, com boas classificações, mas sem medalhas, no andebol onde sofremos grandes derrotas e no badminton onde um atleta nosso ganhou uma medalha de “prata”, mas cujo nome, a esta distância temporal, já não me consigo lembrar. Só sei que morava no Monte de Caparica e na nossa equipa de futebol jogava a central. Mas no badminton é que ele era craque.

E eu todo vaidoso, como presidente do clube, a acompanhar o nosso atleta, no pavilhão da D. António da Costa a recebermos – ele a receber -  a medalha de prata
E no futebol, onde passamos a primeira fase, mas no jogo a eliminar, enfrentamos, no campo de jogos do Costa da Caparica, a fortíssima equipa do Estrelas do Feijó, perdemos 4 a 3 e, claro, sentimos que fomos escandalosamente roubados. O nosso treinador era o Senhor Duarte, o da drogaria, que além de treinador e tesoureiro, era também o massagista e que sempre que um jogador caía, corria do banco com a garrafa de embrocação na mão, para o que desse e viesse.

Mais tarde, como disse, a equipa de futebol do Matadourense começou a integrar malta mais velha, os mais novos também foram crescendo, começamos a entrar nos torneios populares como antes faziam os Unidos e a Juventus, entretanto já extintos nessa altura, e as taças ganhas começavam a enfeitar uma prateleira da drogaria do Senhor Duarte.

E assim se fez o Matadourense, que foi morrendo de morte natural à medida que a malta foi crescendo, casando e saindo do Bairro para outros destinos. Acho que nunca acabamos o processo burocrático, mas o que é que isso interessava? O importante era o convívio e a prática salutar do desporto.

PS. Alguns Gloriosos rapazes que jogaram pelo Matadourense: Carlos Jorge, Américo (posteriormente grande guarda-redes de Andebol), Barbosa (chegou a ser guarda-redes do Almada) e o Carlos (que treinava no Sporting e se não fosse a Lisnave poderia ter sido uma estrela)  - todos guarda-redes, mas o Carlos Jorge, já falecido, também jogava a ponta esquerda - o Augusto que era o defesa direito e dava porrada como o caraças, o Duarte Madeirense que tinha força por dois, o Terrível que era o mais magrinho de todos, o Mesquita que tinha uma grande habilidade para a finta, o Carapinha que era o mais veloz e jogava a ponta direita, o Pintaroxo, que é pintor mas cuja alcunha já vem de geração e que tem a ver com a passarada e jogou nos juniores do Piedade, o malogrado Zé Manuel Capote, que viria a ser meu cunhado, o Jorge e o Felipe Viana que são irmãos e além de eu próprio que jogava à frente e marcava muitos golos, outros de que já me não lembra os nomes.

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

242. O dono da bola - #13. Golo!


Desde sempre que o golo foi o objetivo, o sumo, o êxtase, o orgasmo de um jogo de futebol. Desde sempre o grito de gooooolllllloooo foi a sua expressão mais almejada, o seu lancinante grito de guerra, o desiderato mais querido do avançado.

A minha mãe dizia-me muitas vezes que eu gostava de empregar palavras de sete e quinhentos que era uma expressão popular para palavras de uso menos comum. No entanto só as comecei mesmo a usar quando aprendi futebolês, uma língua própria que é, muitas vezes absolutamente errada na formulação, mas conceptualmente aceite no meio.

Dentro do campo pelo autor do último chuto, nas bancadas pelo espectador, bastas vezes em incontrolados pulos que o podem fazer rolar nos degraus, abraçado ao vizinho do lado que não conhece e com o qual segundos antes tinha trocada piropos discordando do fora de jogo que foi mas não era, ou que não foi mas deveria ter sido,

 - Foi fora de jogo!
- Lá está este a pensar que sabe mais que os outros…
- Isso é comigo?
- Não é com o outro

abafado num beijo na companheira ou companheiro, que nem torce pelo mesmo clube, mas que vai à bola com ele ou com ela para fazer jeito, ou sozinho em casa saltando do sofá como uma mola, esbracejando e pulando que nem um maluquinho, fazendo a voz ecoar sozinho entre quatro paredes também elas sós, a mulher deixara-o há meses, e uma garrafa de vinho tinto meio cheia,

“ela agora, desde que se pirou com o senhor engenheiro, é mais ténis, a pirosa”

no restaurante entornado a cerveja nas calças do tipo da mesa ao lado, com os amigos em frente ao écran gigante estrategicamente colocado na principal praça da cidade, no carro, preso no trânsito da 2ª circular ou em plena autoestrada para o Algarve gritando junto  com o empolgante e saudavelmente louco relator da rádio, ou até no sossego intimista da casa de banho, quando, durante um ataque da sua equipa sofre ele também um ataque de diarreia e quase sem tempo de baixar as calças, grita golo porque ouviu os outros gritarem lá dentro, na sala, enquanto os amigos saboreiam aqueles pastelinhos de bacalhau feitos pela tia Arminda, que lá nisso não há pasteis de bacalhau iguais aos da tia Arminda em lado nenhum do mundo.

Corre-lhe uma lágrima no rosto. Corre o marcador de um lado para o outro no campo ou então apenas para um lado, gritando ele mesmo golo e ensaiando uma coreografia, pontapeando a bandeirola de canto ou içando-a em troféu, dançando um samba com os outros companheiros ou ajoelhando-se virado para Meca com a cabeça no relvado, passando a mão na relva e benzendo-se, abraçando-se em círculo ou em pirâmide, fazendo um moche de onde sai a apalpar as costelas para saber se ainda resta alguma inteira, beija a câmara do operador de TV enquanto lança o seu gutural golo para a lente, coloca a bola por debaixo da camisola junto à barriga e chuchando no polegar de uma das mãos dedica o golo acabado de marcar, acabado de gritar, com a mulher e o filho que esta traz nas entranhas, quem sabe um potencial marcador de golos no futuro, despe a camisola e roda-la no ar enquanto grita e festeja, mostrando músculos de fazer inveja a qualquer escritor de histórias, barrigudo e cheio de tendinites. E há mesmo quem grite o golo a chorar de emoção e alegria.

- E aquela merda do árbitro a estragar tudo, nem vê que o homem tirou a camisola só para festejar…
- Lá está outra vez você, Não vê que dar cartão amarelo é da lei?
- É da lei, é da lei, o gajo é que precisa com a lei na cabeça!
- Quem eu?
- Não, caralho, o gajo, o árbitro, não seja parvo você…
- Veja lá como é que fala…

E o jogo continua, golo é golo, seja no estádio, seja na PlayStation, seja no rinque de futsal lá do meu bairro, seja na praceta onde eu jogava à bola num mano-a-mano com o Zé Carlos, seja no corredor lá de casa onde eu jogava com os meus irmãos. Golo é golo, é para festejar. O candeeiro não teve culpa de a bola ter entrado na porta da casa de banho que fazia de baliza, ter sido golo limpinho, limpinho, mas, quando saltei para o festejar e dei um valente murro na lanterna que se partiu de imediato, por vingança, deixou-me um golpe na mão que demorou semanas a curar.

Quando a minha mãe entrou em casa, ela que é católica, benzeu-se e fez o sinal da cruz, sem ter tocado com a mão no relvado. Não consta que fosse também a festejar o nosso golo. Mas lá que nos mostrou três valentes cartões amarelos, mostrou. E nem tempo tivemos para despir as camisolas.

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

241 - O dono da bola - #12 Ó vizinho deixe-me entrar consigo.


Era uma romaria aos domingos e eu ainda sou do tempo em que o futebol se jogava aos domingos, às quatro da tarde ou às três quando o inverno chegava e os dias eram pequenos. Nesse meu tempo de criança havia poucos automóveis e as carreiras ao domingo, exceto no tempo de praia e exatamente para as praias, os transportes, tal como hoje, eram mais raros e espaçados. Por isso, para ir à bola, ia-se a pé.

(parecia uma romaria)

O Campo de Jogos do Pragal, que era assim que se chamava ao campo de futebol do Almada Atlético Clube ou simplesmente do Almada, ficava onde ainda hoje se situa: lá no cimo, paredes meias com o monumento a Cristo-Rei.

- Vá lá, senhor, uma imagem do santo. São só vinte escudos, - apregoavam as vendedeiras que vendiam cristo-reis fosforescentes e colavam autocolantes nas bandas dos casacos e nas golas das camisas a dez tostões e vendiam também a Nossa Senhora de Fátima fosforescente que era para se ver à noite em cima da cómoda ou da mesinha de cabeceira, com as luzes apagadas. Quer aos que iam à visita ao Cristo, quer os que iam ver a bola ao Almada.

Por isso era ver aquele povo todo a subir a pé a Avenida Cristo-Rei ou a rampa do Pragal que vinha lá de baixo desde a estrada nacional, passava pelo quartel e desembocava no largo do Cristo-Rei, mesmo junto ao campo do Almada. Aliás, como hoje.

Fui, enquanto criança, sempre com o meu pai. O meu pai foi, se não nascido, pelo menos criado em pleno Pragal e não poderia ser de outro clube senão do Almada.

- Viva o Almada!

Poder podia. Naquele tempo quase toda a gente era do Benfica, do Sporting ou do Belenenses, coisa que já não é igual hoje em dia, pois que, à força das vitórias que conseguiu nos anos 80 e 90 do século passado, fez-se transferir a paixão dos miúdos também para o Porto.

- Almada! Almada! Almada!

Mas se torcíamos por um grande a verdade é que o Almada e o Piedade eram os clubes de todos nós, os daquela zona de Almada. E eu, porque cresci no Pombal, exatamente a meio caminho entre o campo do Almada e o campo do Piedade, escolhi o Almada como clube de coração. Era a malta dali metade / metade, de forma que, até quando em miúdos escolhíamos a linha para os nossos desafios, o fazíamos em função disso, imitando no terreiro frente ao pátio um derby Almada-Piedade. Já no início da adolescência, porque me mudei para um Bairro próximo do Pragal, aí já ia sozinho, a pé, com os outros putos

(parecia uma romaria)

vermos o Almada. Atalhávamos caminho numa azinhaga que ia dar à Ermida e dali era um pulinho até ao campo da bola.

O pior era para entrar. Os porteiros não deixavam os putos entrar sozinhos, já que os miúdos teriam que ter quem se responsabilizasse por eles. E quando não estava lá, aquele porteiro amigo do meu pai, que apanhando o fiscal da Associação distraído me fazia passar entre ele e o portão sem que ninguém desse por isso, só entrávamos acompanhados por um adulto. E aí começava a pedincha,

- Ó vizinho, deixe-me entrar consigo

e logo um adulto nos dava a mão, e na porta, em perfeita cumplicidade com o porteiro,

- É meu filho,

 franqueava-nos a passagem. E lá entrávamos e nos juntávamos à outra malta que, com o mesmo estratagema, entravam com os “pais” deles. Muitas das vezes, com dez ou onze anos de idade, não ligávamos patavina ao jogo. Queríamos era andar para ali a brincar no peão por trás da baliza, onde a GNR nos repreendia e ameaçava levar-nos presos. Naturalmente isso nunca aconteceu.

Algumas considerações finais:

1 – O meu Almada sofre das amarguras que sofrem os que outrora foram grandes clubes. Vi lá grandes jogos contra o Estoril, o Lusitano e o Juventude de Évora, contra o Amora, contra o Lusitano de VRSA, contra o Vasco da Gama de Sines, contra o Esperança de Lagos, o Montijo, o Barreirense e obviamente, contra o grande rival de sempre o Desportivo da Cova da Piedade,

- Almada! Almada! Almada!

quando até o varandim do monumento a Cristo-Rei servia de bancada a 100 metros de altura. Hoje, com a transformação de um desporto em negócio, a criação de SADs para acionistas, o futebol de cariz mais popular anda a fazer uma travessia no deserto que parece nunca mais ter fim. O meu Almada arrasta-se entre a primeira e a segunda regional e nunca mais se sentiu a emoção do velho derby.

2 - O Grupo Desportivo da Cova da Piedade conseguiu, via patrocinadores e acionistas chineses criar algumas estruturas para poder competir em divisões superiores nomeadamente a profissional 2ª Liga do nosso futebol. Tem até, por isso, direito a algumas transmissões televisivas onde já ouvi alguns comentadores e relatores designarem-no por Cova. O Cova isto, o Cova aquilo. Pois, meus senhores, essa não é nem a designação do Clube nem sequer da localidade que lhe dá o nome. A localidade é Cova da Piedade e o clube, se falarem com os mais velhos, é para eles o Desportivo e se falarem para os mais novos, incluindo os da minha geração, é o Piedade. Cultura desportiva não devia ser coisa que faltasse a esses arautos. Mas parece que sim.

3 - Um dos porteiros nosso amigo era o sr. Delfim. Conheci-o quando era miúdo e nunca me deixou ficar à porta. Com ele lá, entrava sempre sem ter que ter um pai emprestado. Soube que morreu há pouco, em Junho de 2018. E como o mundo é pequeno soube agora que era o padrasto de um amigo meu de infância. Nunca tinha relacionado o facto até ter visto a fotografia do sr. Delfim no cartão da funerária. Que o São Pedro lhe tenha franqueado as portas do Céu e que descanse em paz.

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

240. O dono da bola - #11. Um pontapé de bicicleta


A praia era, naquele tempo, para mim, o areal e uma bola. O mar era para o banho no fim do jogo. Logo pela manhã, aos sábados ou aos domingos de verão, se juntava a rapaziada lá do bairro, cada um com a sua toalha debaixo do braço e uma ou duas bolas, não fosse alguma rebentar e lá íamos nós. Alguns, os mais afoitos, iam à boleia.  Ficávamos no troço da autoestrada à saída da ponte 25 de abril de dedo esticado ou com uma cartolina a dizer C. CAPARICA e não me lembro de algum dia em que em pouco mais de meia-hora não estivéssemos já todos no Paraíso ou no Dragão a escolher as linhas.  Claro está que ir à boleia era um risco, pois apesar de serem tempos mais remotos, predadores sempre os houve, mas nós lá íamos cumprindo algumas regras de que nunca ia um sozinho e a minha mãe a dizer

- Se sei que vocês vão à boleia nunca mais vos deixo ir à praia sozinhos

nem nunca ficava para trás nenhum sozinho. E quase sempre apanhávamos boleia de casais. É verdade que sendo regra nem sempre se cumpria, pois quando a pessoa que nos oferecia boleia tinha “cara de boa pessoa” também aceitávamos. Há quase 50 anos havia muito menos carros a circular mas, em relação aos tempos de hoje, creio que muito maior oferta de boleia. Era frequente, nesse mesmo local verem-se pessoas de mochilas às costas, casais com frequência, jovens na generalidade, estrangeiros muitos e também alguns militares cada um com os seus destinos marcados em maiúscula, por vezes com erros nas placas de cartão que clamavam por VRSA, BEJA, SINES, LAGOS, VENDAS NOVAS,

(um amigo meu fez a tropa em Vendas Novas e saiu com a coluna militar que “fez o 25 de Abril, acho que a partir do Cristo-Rei)

andar à boleia era não só uma aventura, uma forma de poupar umas coroas, mas também uma moda que vinha dos anos 60 do século passado a década do Woodstock, do inicio da guerra nas nossas províncias de África – o Vasco morreu em Moçambique poucos dias depois do 25 de Abril -  do Maio de 68, dos hippies, das manifestações dos estudantes de Coimbra, da greve na Lisnave.

(chorei quando me lembrei do Vasco)

E havia ainda outra regra entre nós, uma terceira regra que era sagrada e a voz da minha mãe ainda a soar-me nos ouvidos

- Se sei que vocês vão à boleia nunca mais vos deixo ir à praia sozinhos

E a regra era, não havia chibos. Ai daquele que tivesse o descaramento ou a imprecaução de, à frente dos pais ou de outros putos que não pertencessem ao grupo da malta da boleia, bufar que fulano ou sicrano tinha ido à boleia. A primeira é que era naturalmente excluído das nossa equipas ficando a jogar ao pau com os ursos como se dizia na altura e que creio ser expressão que ainda hoje se utiliza. A segunda eram as consequências para nós próprios. Se os meus pais sonhassem (sonhar, sonhavam, as recomendações da minha mãe não me deixam mentir), que nos davam o dinheiro para as passagens e até para um gelado da Olá e que andávamos à boleia, era certo e sabido que a ficaríamos esse verão sujeitos a que só fossemos à praia com eles ou, na melhor das hipóteses, termos de apanhar a camioneta da carreira sob a sua vigilância. E isso era terrível pois não era raro passarmos horas na paragem porque as camionetas já vinham cheias desde Cacilhas e muitas não traziam desdobramento, ou traziam-no cheio.

(Era o Machado o expedidor, um tipo magro, austero, de bigode para meter respeito, quem todos os choferes temia, porque quem mandava era o Machado, que mandava parar um autocarro, por exemplo que fosse para outros destino, tipo o Pragal e ordenava que o chofer quando lá chegasse não voltaria a Cacilhas mas seguiria em desdobramento para a Costa).

A bola fora centrada do lado direito do ataque. Eu estava na área quando a vi chegar e vi que ela me passaria nas costas virei-me e num ápice, todo no ar, com as duas pernas como que pedalando numa bicicleta ao contrário, apliquei-lhe em cheio com o peito do pé direito. Não vi o final porque estava de costas e também porque não teve direito a repetição em câmara lenta como hoje em dia fazem as televisões. Mas diz a malta que passou mesmo entre os braços abertos do guarda-redes que não esperava por aquele golpe. A areia fofa da praia aparou-me a queda e foi como se nada se tivesse passado. O pior foi em casa, a explicar ao meu pai, tentando imitar todo o movimento. Sim, porque um golo daqueles não se marca todos os dias, eu não era nenhum Madjer ou Alan do futebol de praia, aliás essa modalidade ainda não existia e nem sei se o Madjer já era nascido e, portanto, o golo merecia ser relatado com todos os pormenores. O pior foi a queda no soalho do corredor. Aquilo não era a areia da praia e ainda hoje parece que me doem as costelas todas.