quinta-feira, 30 de abril de 2015

217. Frágil mocidade



Frágil mocidade

Outros tempos, outros usos. No entanto, pouco deverá ter mudado na mentalidade do ser humano. Nada, diria mesmo, no que respeita a sentimentos, a paixões, a inocências perdidas. A avó, crítica feroz de toda a modernidade, casara grávida sem ninguém saber, a não ser os seus próprios pais. Mais tarde ameaçava esbofetear o primeiro ou a primeira que lhe jogasse isso em cara. Severa no porte, era a última a sentar-se na cabeceira da mesa, desde que enviuvara e, mal chegava, logo a família se punha em pé para a receber. Depois sentava-se, sentavam-se os outros e agradeciam a Deus mais uma refeição. Não se comia antes de se rezar, nem ninguém se levantava da mesa sem, divinamente, agradecer a refeição.

Dona Maria Amélia, Melita na intimidade, nasceu numa família remediada da serra algarvia. Os pais eram rendeiros abastados, em abono da verdade, o pai. A mãe, senhora de muitos dotes, era mulher de casa, tocava piano, instruía a criadagem,  fazia as contas da casa, coisa rara naquele tempo e bordava, dedicando a maior parte do seu tempo ao enxoval das filhas. Os lençóis de linho, bordados por ela, brilhavam no meio do mais fino bragal. Todo o dia metida em casa mas, mesmo assim, não menos atenta,  as ausências de Melita nunca lhe passaram despercebidas. Ir ao poço ao cair do dia, não ficaria bem, se não fosse acompanhada de Genoveva a fidelíssima criada e na carroça do Manuel Penteado, o cocheiro que já fora dos seus pais.  Nada poderia acontecer à sua filha.

Dona Maria Amélia, tinha os olhos rasos de lágrimas. Uma mulher de sessenta anos chorava com o daguerreótipo de sua mãe encostada ao peito. Lembrava-se dos seus vinte anos, da sua mais pura ingenuidade, da fragilidade da mocidade de então. Tinha ido na conversa bonita, quase poética, do seu amor de uma vida. Ildefonso tudo lhe prometera, mas a promessa de que ela seria a mãe dos seus filhos caiu-lhe no mais fundo do seu íntimo. E nem Genoveva, nem o cocheiro, que se entretinham um com o outro, evitaram o inevitável. Depois, Ildefonso partiria, emigrando sem dar água vai, nem água vem. Apenas um telegrama quando já se albergara por terras de França. Os pais de Maria Amélia, socorreram-se de um primo afastado, um tipo que embora fosse um pouco "poucochinho" e fraco de tino, tinha algo de seu por generosa herança,  que garantiria qualquer coisa que se visse a Maria Amélia. Ninguém saberia, nem soube, que o pequeno Afonso não era filho do primo Manuel do Ó. Dona Maria Amélia chorava agora agarrada à imagem emoldurada da senhora sua mãe. Não. Sandra não sofreria a mesma humilhação que ela. Se a sua neta quisesse ter o bebé que o tivesse. Afinal as fragilidades da mocidade eram iguais às do seu tempo, mas ela, apesar de toda a sua austeridade, não tinha já nada a ver com aquela bonita bordadora que um dia, para salvar a honra do se sua casa e a reputação do seu remediado e prestigiado marido, que cofiava o bigode em salões dançantes e em bordeis de espanholas a fizera casar com o já falecido Manuel do Ó, seu primo e pai de seis dos seus sete filhos. Que Deus lhe tenha  alma em descanso.

©Vítor Fernandes

30/4/2015

terça-feira, 28 de abril de 2015

216. Teoria musical




Teoria Musical

Ele bem se esforçava. Primeiro comprou uma pandeireta, depois duas maracas e mais tarde um berimbau. Havia de aprender música nem que para isso, toda a biblioteca da FNAC, da Bertrand ou da Leya ficassem esgotadas dos manuais do mestre Eurico Cebolo. Ao reparar que tinha alguma queda para os ritmos não hesitou, depois de soprar no saxofone, tocar acordeão e xilofone com bastante esmero, comprou uma viola e uma guitarra portuguesa.

Naquela manhã o meu colega Inácio Pedro estava lívido. O ar alegre que punha quando entrava no escritório a assobiar uma polka num dia, uma tarantela ou um tango no outro, uma zarzuela ou um samba ou bater com o lápis no computador para acompanhar uma imaginária bossa nova, um irreconhecível bolero ou a cantarolar uma ópera heroica, tinha desaparecido. Pensávamos todos que horas e horas a dar folga ao sono, estudando colcheias e semicolcheias,  acordes maiores e menores, tónicas e dominantes, escala uniformes e biformes, compassos de espera ou de silêncio e até enarmonia nos acordes de sétima diminuta, lhe tinham dado a volta à cabeça e o rapaz se tivesse passado. O Inácio Pedro não só estava lívido mas também nervoso, apático e ausente.

Vim a saber, mais tarde, que o Inácio Pedro nunca se entendeu com a guitarra portuguesa. De um conhecimento circunstancial com um rufia que se dizia, e até parecia, exímio tocador de tão nobre instrumento até metê-lo em casa para lições particulares não demorou um fósforo a arder. Quando naquele dia, por força da paixão e amor à causa, se demorou um pouco mais para trazer umas partituras que um tocador da velha guarda lhe haveria de arranjar, apanhou em sua própria casa o vadio a tocar guitarra no corpo de Rosita, a sua tão bela e dedicada esposa. Nunca mais para ele, um mulher seria como uma guitarra.

©Vítor Fernandes

28/04/2014