quarta-feira, 4 de novembro de 2015

221. A bruxa Josefa



A bruxa Josefa

Sorrateiramente, sem dar os bons dias a ninguém saía Josefa de casa todas as manhãs, bem cedinho. Sem dar os bons dias a ninguém era uma maneira de dizer porque ela, pela sua própria boca, eram as outras pessoas lá da aldeia que lhe viravam a cabeça e fingiam não a ver. Estava sempre preparada para uma boa intriga e então com a vizinhança nem se fala. Sabia-se que ela era invejosa, trapalhona, mau-caráter, ensarilhadora  de perfeição, e até se afirmava à boca pequena, não fosse o Diabo tecê-las, que aquela mulher, a Josefa da Arminda, que Deus lá tenha a alma em descanso pois era uma santa de uma mulher e logo houvera de ter tido uma filha assim, era uma bruxa. Na aldeia, onde outras pessoas gostam também de fazer meia e liga a par das conversas sobre a vida alheia não havia quem não falasse mal de Josefa, poucas lhe queriam bem, pois gente de Satanás, longe da porta, longe da porta. Houve um casamento que se desfez com o noivo já no altar da igreja, uma jovem que se afogou na ribeira, sem que se lhe conhecessem problemas de cabeça, dois pastores que dispararam um no outro por causa da morena Jacinta, ainda por cima desdentada, uma manada de vacas solta a meio da noite que invadiu as estradas e fez com que o jipe da GNR se tenha despistado e caído numa vereda, a mulher do Dr. Bernardes, vejam lá tão bom médico, coitado, que fugiu com um caixeiro viajante e tantos outros sarilhos à conta das intrigas que diziam serem obra da Josefa que se aqui se fossem a relatar todas, qualquer um de vós arrepiaria caminho antes de passar às portas daquela aldeia, que é como quem diz, passariam a léguas. Todos os dias Josefa saía manhã fora, direita aos campos, ninguém sabia de como se sustentava ou quem a sustentaria, pois homem nunca fora visto a galgar-lhe a cancela e só voltava quando a  alcofa de vime abarrotava de ervas e ervinhas, arbustos e bagas, algas da ribeira e até de fungos que se diriam incomestíveis. Houve quem jurasse tê-la visto chegar, um dia, com uma cabeça de porco sangrante, ela que não criava bichos e ninguém nas redondezas se queixara de roubo, dentro da alcofa e outros que não, que não seria porco, mas também que sim que poderia ser e então galinhas nem se fala pois que raro não era que apareciam nos galinheiros com as cabeças cortadas, principalmente as pretas e pedreses, coisas do escuro da noite e aquilo, jurava-se, não era coisa da zorra, antes obra do demónio.

A verdade, verdadinha , é que o cheiro das sopas e dos caldos que provinha da casa da Josefa, daquele caldeirão fumegante, supostamente negro como seriam negras as rezas da misteriosa mulher, perfumes silvestres à mistura com cheiros de enchidos de carne cozida, deixava todos os fins de tarde a aldeia hipnotizada. E no meio de cada casa, nos quintais ou azinhagas, parados e petrificados como que por encanto, porque se sabe já que Josefa é uma mulher especial que além de intriguista é uma verdadeira bruxa, pareciam mais mortificados do que os mortos, casais e filhos de casais, casais sem filhos, homens e mulheres solteiros e solteiras, novos e velhos e outros muito velhos, com as cartas da bisca na mão sem a poderem jogar nas mesas de granito da taberna, crianças em frente a uma bola ou um arco ou um pião sem se mexerem, os músicos num mudo e triste silêncio numa estranha estatuária em cima do coreto, cães que não ladravam, gatos que não miavam, galinhas que não cacarejavam, alimárias que não zurravam. Na aldeia só se ouvia a voz monocórdica e zumbida de Josefa a cantar e as sombras de uma dança à volta do caldeiro e ao longe, lá muito longe nos confins da serra, quando o vento era de feição o som dos lobos a uivarem.

© Vítor Fernandes