quinta-feira, 31 de outubro de 2013

212. O meu halloween



Ela detestava quando ele lhe chamava bruxa. Não é que ele fosse uma pessoa que irasse facilmente, mas por vezes a paciência tinha limites. E de impropério a impropério era um crescendo de agressividade verbal que custa a transcrever. Muito o desgraçado suportava e o mês de outubro era o culminar do santo ano, naquilo que ele chamava o caldeirão das imbecilidades. Começava no primeiro dia do mês. Ela ia à garagem, a qual apenas servia de arrecadação e, em local que ela conhecia como ninguém, numa bagunça de pó e teias de aranha lá estava o livro de S. Cipriano, embrulhado num trapo de pano que já fora o lenço de cabeça de sua avó. Desembrulhava-o cuidadosamente pois as folhas já soltas de uma tosca encadernação, ameaçavam cair e se não fora serem papel e não se partirem em mil pedaços, o risco de se desfazerem era real. Depois soprava-o cuidadosamente e era sua companhia nas noites frescas de inicio de outono, quando à lareira, numa panela de ferro, cozinhava ervas que só ela conhecia, em infusões cujos odores quase sempre arrepiariam até seres menos sensíveis. Nunca bebia aqueles preparados, a que incorretamente chamava de chás, sem primeiro lhe oferecer a ele para que provasse. Das poucas vezes que aceitou, por cortesia e para evitar mais chatices do que as que ele previa em cada mês de outubro, ao primeiro gole, já estava a vomitar as tripas, que é como quem diz, a ter ataques sucessivos de vómito. Ela ria-se, com aquele riso estridente de, efetivamente, bruxa e dizia-lhe como que por consolação que até era bom, que o limpava por dentro. Depois, quando a noite se cerrava e o frio apertava, embrulhada em mantas, levava o seu S. Cipriano para a cama, arreava-o em cima da mesa-de-cabeceira, soprava a vela e adormecia. E a história repetia-se. Dos sonhos dela à realidade ia menos que a pegada de um pardal. E naquela noite, naquela noite de trinta e um de outubro, saltou-lhe novamente a tampa da panela. Ele já pouco se importava com as rezas, com o queimar, a toda a hora, de alecrim pela casa, com as infusões malcheirosas, com as benzeduras invocativas de satanás, com os elixires para o mau olhado que ela trazia da festa do padre Fontes e se besuntava da cabeça aos pés, já nada do mais exotérico o impressionava. E ele, para evitar chatices, chamava-lhe tudo. Até de bode sem barba, a epitetou. Evitava era a todo o custo chamar-lhe bruxa. Mas quando ele viu em cima da cama os, outrora, seus cinco gatos transformados, numa abóbora, num jacaré, num pargo mulato, numa andorinha de cerâmica e numa chaleira, não resistiu e chamou-lhe bruxa. Ela amuou, pegou na sua vassoura, montou-a e saiu pela janela.

©Vítor Fernandes