quarta-feira, 25 de julho de 2018

231. O dono da bola - # 2 O número da bola




Vamos começar por fazer contas. Meio tostão é metade de um tostão e um tostão são dez centavos. Dez tostões são cem centavos e, portanto, dez tostões faz um escudo. Assim, cinquenta tostões são cinco escudos e duzentos tostões são vinte escudos. Se os rebuçados custarem meio tostão cada, ou seja, dois por um tostão, vinte escudos compram quatrocentos rebuçados. É só fazer as contas. E em cada rebuçado vinha um boneco da bola.

Hoje são cromos, requintados, retratos de frame cheio, encerados, brilhantes, autocolantes, vêm em saquetas, cada saqueta com quatro cromos custa 1,00€. Um euro são mais ou menos, arredondando para baixo, duzentos escudos dos antigos que se convertidos a tostões seriam dois mil tostões o que, revertido ao meu tempo de colecionador de bonecos da bola enrolados em rebocados, a dois cada tostão, daria para quatro mil bonecos da bola. Ah se eu tivesse 1,00€ para bonecos da bola! O meu pai ganhava isso, talvez pouco mais, numa semana de trabalho…

Entrei na Elisiária, a mercearia que vendia os bonecos da bola, com a caderneta cheia. Cheia, quero dizer, cheia não, faltava colar um porque os outros já iam todos coladinhos com cola de farinha, faltava o mais custoso, faltava o número da bola. Esse nunca saía, vinha carimbado com o mesmo número que estava na lata e na bola de catechu presa no cartaz dos prémios. Estava colado no fundo da lata para não poder ser vendido a ninguém. Imaginem que saía a meio da lata. Alguém teria logo direito à bola de catechu, bastava acabar de preencher a caderneta e isso era fácil. E o jogo perderia o fascínio e os restantes rebuçados ficariam por vender, a não ser que o ganhador e o merceeiro guardassem sigilo até ao fim da lata. Mas isso nunca acontecia, ou pelo menos, seria muito raro que acontecesse, pois tratava-se de batota. Era assim, devido a esta artimanha do boneco da bola estar agarrado no fundo da lata que a bola de catechu, bem como os restantes prémios do cartaz (alguns bonecos traziam também enrolados uma “senha” com a designação de um prémio) só saiam mesmo no fim ou a quem rebatesse a lata. Os primeiros prémios a sair eram as cadernetas o que incentivava os putos – e os crescidos, diga-se de passagem – a fazer a coleção. Já nessa altura o marketing tinha espertezas destas. Pois entrei com a caderneta e com o meu pai a acompanhar-me. O meu pai ia rebater a lata pois os miúdos, os filhos, claro está, não se calavam com a bola de catechu.

Num cálculo assim por alto, a Elisiária, tendo em conta os prémios saídos e altura de rebuçados na caixa calculava que estariam para lá uns quatrocentos. Eu olhava para o cartaz e nem ligava aos chocolates, pentes, carteiras, canivetes, cadernetas… nada! A única coisa que me fazia brilhar as duas luzinhas era a bola de catechu. E aquela ia ser minha. Até me arrepiei todinho.

Começou a contagem. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze… dezanove, vinte, vinte e um… trinta e nove… quarenta e sete, setenta e oito – Ó Sr. Augusto eu disse setenta e oito ou sessenta e oito? e se não se tinha a certeza começava-se de novo, cento e vinte e três, cento e vinte e quatro, … trezentos e oitenta e um e eu não tirava os olhos da lata a não ser para ir olhando para os olhos do meu pai, Ainda faltam muitos D. Elisiária? perguntava ansioso, quatrocentos, quatrocentos e um e dois e três… e eu tremia, devia estar quase, e quarenta e quatro, ai ai, ai ai, que as coisas não estão a correr bem, quatrocentos e noventa e nove e Pare aí D. Elisiária! ordenou o meu pai. Parava a contagem e terminava a esperança. Era demais e o orçamento familiar não dava para gastar vinte e cinco escudos em bonecos da bola ou mais ou talvez muito mais, pois ficamos sem saber quantos rebuçados ficaram ainda por tirar da lata.

E enquanto uma lágrima me escorria cara a baixo, a Elisiária voltou a espetar o cartaz no prego lá de cima. Olhei de novo e pareceu-me ver a bola de catechu deitar-me a língua de fora.

quarta-feira, 18 de julho de 2018

230 . O dono da bola - #1 Muda aos seis, acaba aos doze



Passeio-me de braço dado com a minha mãe pela rua onde antes fora uma azinhaga. A nossa azinhaga. Dos valados, onde em garoto íamos às pichas de gato, raízes doces das azedas e do muro da quinta do Plantier, só recordações. Impossível era, mais de cinquenta anos depois, ainda haver vestígios. Depois vieram os prédios, primeiro do lado direito para quem caminha na direção oeste-leste e depois do lado esquerdo, um dos quais acabou por ser erigido sobre o pátio onde cresci, sobre o pátio da minha infância. Nos primeiros prédios ainda moraram, a saber, um colega da escola primária e mais tarde filho de vereador, um primo meu também e onde se estabeleceu uma mercearia / lugar de frutas cuja primeira caixeira-dona encontrei por acaso numa excursão, em Trás-os-Montes. Em Almada é que eu não a via, exatamente há cinquenta e dois anos. Coincidências do caroço, como dizia uma tia minha, já falecida. Não me lembro do teu colega, comentava a minha querida e octogenária mãe e acrescentava, Como é que este rapaz se lembra disto tudo? quando lhe disse o nome do dono da mercearia e a relembrei que no prédio onde morou a prima Helena tinha também uma barbearia. Dos donos da mercearia lembrava-se ela muito bem e até sabia o nome das filhas e dos filhos que eram muitos. E quando falámos do muro da quinta e de uma abertura que dava da azinhaga para a mesma, relembramos que as pessoas faziam daquele local uma montureira onde se despejava toda a espécie de dejetos domésticos a céu aberto, pois, segundo alguns, no tempo do Salazar é que era bom! Falamos do pátio onde moramos, das condições difíceis, dos anos sem eletricidade, nem água, nas casas de banho construídas por nós próprios, da oliveira de esquina que marcava a zona de casas da zona de barracas, da rua que subia da oliveira, cujo tronco saía da terra como se forre uma raiz e voltava a entrar em outro pedaço de terra rompendo o valado, ou melhor dizendo o valado é que lhe caiu em cima, a rua que subia para Almada e onde hoje há o Teatro Municipal e que passava no pátio de cima e na casa da madrinha e lembrei o nome dos vizinhos todos, os nossos, porta a porta, os de fora do pátio, os do pátio de cima e os vizinhos da minha madrinha. E aqui mãe, lembras-te o que era? perguntei fazendo-lhe um novo teste à memória. Se me lembro filho, aí não havia nada. Tinha razão. Era um descampado, um terreiro que já fora da quinta onde hoje está um jardim e onde os miúdos do meu tempo lançavam os papagaios ou talvez, com mais frequência, as estrelas, uma estrutura com três meias-canas laçadas no centro em forma de estrela, de maneira que os extremos ligados com fio uns aos outros, formando um hexágono regular que depois seria coberto a papel de seda e que eram mais fáceis de estabilizar e que subiam bem mais alto. A estrela vai alta como o… e lá saía o palavrão de um ou outro mais simplório, menos educado ou mais menino de rua, que esta boca, que uma vez se lembrou de dizer um impropério, foi ameaçada de levar com pimenta na língua e, por isso, nunca mais se atreveu, praticamente até ser adulto, a utilizar vernáculo nas suas alocuções. E era também o nosso campo de futebol, onde as balizas eram feitas com duas pedras em cada um dos topos, onde não havia linhas laterais nem linhas de fundo, o centro e as marcas de penalti não se marcavam ou não se viam e que, para chutar um castigo  máximo, como hoje se diz em futebolês, ou pénalte como se dizia na gíria da miudagem, contavam-se onze passos a partir do meio da baliza e nem era preciso haver árbitros. Mudava aos seis, acabava aos doze desde que o último golo entrasse bem rasteiro e no centro da baliza.

Foi neste terreiro que iniciei a minha arte de pontapear a bola para a frente, mas o futuro foi aquilo que se viu. É como se tivesse sido substituído antes do jogo começar.



Nota: Este é o primeiro texto de uma série 21 pequenos contos sobre um jogador de futebol que nunca o chegou verdadeiramente a ser. Ou então não.