Lembram-se
do meu amigo Ismael Gusmán? Dos belos petiscos que se serviam na sua tasca? Da
Francisca que escrevia histórias exóticas e eróticas? Do Inspetor Sacadura
atrás de quem matou a pobre Isabella com sete facadas? Lembram-se daquele
pessoal que morava na Quinta do Conde? E dos pastéis de bacalhau da Fernandinha? Pois o crime foi desvendado, o livro foi terminado e em breve será editado em
papel pela Pastelaria Studios com quem espero colaborar muitas mais vezes.
Quando o livro estiver disponível para comercialização eu avisarei as minhas e
os meus leitores. Entretanto, entretenham-se com os serões na casa da D. Micá.
Ela é uma contadora inata de contos cor-de-rosa. Acho que vão gostar.
domingo, 30 de setembro de 2012
quinta-feira, 27 de setembro de 2012
169. D. Micá conta contos cor-de-rosa
D. Micá
conta contos cor-de-rosa. Não é o que mais me atrai nos serões em sua casa.
Também não vou lá pelos seus decotes, nem pelos charutos cubanos, embora,
confesso, é muito agradável estar na chaise
longue, a saborear um Montecristo, enquanto o Bruninho Mendonça, com apenas
oito anos de idade já toca na guitarra portuguesa a “Valsa Chilena”, que o
Eduardo acompanha, zurzindo de forma exímia a sua guitarra clássica. Depois vou
até ao varandim respirar sobre a noite lisboeta o prazer do puro tabaco
caribenho. Infelizmente para a soiré, o Dr. Jorge Mendonça e a Clara saem sempre antes
das dez para irem deitar o Bruninho. No entanto, em contrapartida, as
liberdades crescem de tom. Há até quem conte anedotas brejeiras e picantes. Já
ouvimos Dona Micá dizer que se quiséssemos continuar naquele despropósito que
continuássemos, mas que os charutos seriam substituídos por rebuçados de mentol
e o whisky dos serões por leite com chocolate. Leite magro claro, pois Fundação
que é Fundação não deixa as suas gorduras por mãos alheias. Estas tiradas da D.
Micá são sempre motivo para fartas gargalhadas ou porque têm graça ou porque
ninguém quer deixar ficar mal a anfitriã, numa de simpáticos engraxadores. Mas
não é por nada do que vos falei anteriormente que frequento as soirées de D, Micá. Um dia dir-vos-ei
porquê, mas não me parece que seja agora a melhor altura para o fazer. De quem
ainda não vos falei, foi dos Mendonça. Vou aproveitar hoje para apresentá-los
por duas boas razões. A primeira é porque está um calor abrasador, não se pode
estar no salão e embora a D. Micá tenha aberto as largas vidraças das janelas
de para em par, o melhor é estar aqui no varandim, a fumar calmamente o meu
puro e a desenrolar histórias da vida dos outros. A segunda razão é porque os
Mendonça já saíram, foram deitar o Bruninho e se eu tiver de falar mal deles que
seja nas costas, não o haverão de saber. Quero ressalvar que, se alguma palavra
sobre o casal Mendonça não for de bem a responsabilidade é da D. Micá já que
foi ela quem tudo me contou, pois ela é que é uma verdadeira contadora de
histórias. O Dr. Jorge Mendonça que ainda não tem quarenta anos, é já, por nós,
uma pessoa muito estimada. Um veterano! Nasceu de uma família abastada de
lavradores alentejanos e os pais dele, o Sr. Semião Mendonça e D. Catarina
Fradinho sempre fizeram questão de ter um filho médico. Mandaram-no até,
estudar para Coimbra. O pai, além de herdades a perder de vista, criava gado o
que fez com que os seus conhecimentos com o Comendador não fossem fruto do
acaso. E por consequência os conhecimentos de Jorge com Micá. E não só. Dizem
que D. Ermelinda, nos seus hormónios dos quarenta, em tempos idos, terá tido um
fraquinho pelo jovem estudante, Jorge Mendonça, mas a verdade é que o Comendador,
homem acostumado a que lhe cobicem namoradas e esposa nunca dera fé disso ou
nunca ligara muito. No entanto, parece que D. Ermelinda ainda sente uns calores
quando o Dr. Jorge, sempre nas suas camisas de cambraia, muito bem cuidadas pela
Adriana, uma criada de quem um dia narrarei o que D. Micá me contou, e nos seus
fatos de muito alta qualidade e fashion
quanto baste, está presente nos serões. Hoje, quando ele saiu, fiquei a pensar
que aquilo não pode ser apenas do rendimento de médico do SNS. Ele trazia
vestido um misto de Rosa & Teixeira com Medina Carreira que até fazia doer
a vista de brilho, já para não falar na gravata C. Dior amarela. Parece que da
Clara Mendonça é que a D. Micá não gosta muito. Mas cá para mim devem ser
ciúmes pois consta que o Dr. Jorge, entre uns afagos na D. Ermelinda e um copo
de leite com chocolate bem fresquinho, lhe chegou a cheirar a renda do sutiã.
De muito perto. Muito perto mesmo. Ela nunca o disse, o que para uma contadora
de histórias, parece quase inacreditável. O que ela sempre refere é que a Clara
é uma pacóvia, veste mal, não combina duas peças, nem em cor nem em texturas, o
cabelo é apenas arranjado em casa, não frequenta salões de cabeleireiro, não
faz a manicura, chegou a dizer, numa confidência que a massagista Sissi da
clínica Peles e Óleos lhe fez, que a outra não depila as partes íntimas, se
isto é coisa que se diga, e que a menino Bruninho nunca vai chegar aos
calcanhares de um Chainho ou de um Paredes, vejam lá, um menino que com esta
idade já toca tão bem. Mas vamos ao que interessa. A D. Micá está sempre a cortar
na casaca da Clara Mendonça, ora porque não estudou, «aquilo é uma burra», ora
porque no outro dia lhe saltou um botão de uma camiseira simples, comprada «com
certeza na Zara», dizia com desdém, «uma desleixada é o que ela é». A verdade é
que Clara foi descoberta por Jorge nos seus tempos de estudante, numa daquelas
festas privadas que os alunos costumam fazer à revelia dos pais que, da província,
lhe vão pagando os cursos e a borga, mais conhecidas por bacanais, parece que a
moça não só não tem quaisquer estudos, mas também que não se lhe é de gabar o seu porte
em solteira. A própria D. Micá, diz que se não fosse por consideração ao Dr.
Jorge, que é médico da mãe desde que esta veio para Lisboa, pudera digo eu, o
Dr. Jorge não deve ser nenhum santo, digo eu também, e que é já, por inerência,
o médico da casa, só faltando dar consultas ao Pantufa, o gato persa e ao
Esticadinho, o galgo espanhol encontrado abandonado numa estrada perto de
Badajoz, a Clara Mendonça não teria cabidela nos seus serões. O que faz o
ciúme, digo eu mais uma vez. Quando estava a ouvir esta história, enquanto o
meu primo tomava um chá de camomila em companhia de D. Ermelinda a quem não
parava de gabar a filha, acho que já enfastiando a pobre, salvo seja, que de
pobre nada tem, viúva do Comendador, atrevi-me a dizer-lhe «D. Micá, olhe que
para a sua reputação de contadora de histórias cor-de-rosa, o quadro que pinta
da Clara Mendonça, é um bocado cinzento». Ao que ela me respondeu «Negro, meu
caro Constantino, negro, ainda você não sabe da missa a metade». Senti-me um pouco
acabrunhado, bebi um gole de whisky, passei ligeiramente a língua pelos lábios,
levantei o cálice em direção a D. Micá numa saudação complementar e fui falar
com o Eduardo Aragão, um velho amigo meu e que costuma tocar guitarra clássica
nos serões da filha do falecido Comendador Jovelino Azeredo. Mas dele contarei
eu a história pois conheço-a muito melhor do que D. Micá.
domingo, 23 de setembro de 2012
168. D. Micá, a contadora de histórias
A D. Micá é uma contadora de histórias. Micá de Azeredo,
filha do Comendador Jovelino Azeredo, um beirão a quem o cacau tentou em S.
Tomé, sem saber como nem porquê. Quando o jovem Jovelino saiu de Albergaria
para vir para Lisboa, esperava tudo menos embarcar para África. É através de um
primo, que tinha conhecimentos junto dos engajadores do Campo das Cebolas que,
no trabalho de estiva, vem a conhecer o imediato Elisiário Godofredo de
Almeida, homem de muitas mulheres e de outras que não se sabe, inclusive de uma
amantizada de Jovelino, a quem este, por estratégia, fechava os olhos nos seus
avanços com o imediato. Este comportamento passivo de Jovelino Azeredo
valeu-lhe as boas graças do imediato que, para que chatices não viessem a
surgir no futuro, quando os “apalpansos” passassem a deboche e a coisa se
complicasse, pois nunca se sabe como se comporta um homem quando passa de
candidato a corno, a chifrudo de pleno direito. Assim, convida o Godofredo a
Azeredo para que este embarcasse no pequeno navio e o deixou, com uma mão à
frente e outra atrás, como soe dizer-se, na ilha de S. Tomé, torrada pelo equador
e onde o cacau já era rei. Sem meios nem linhagem, difícil ficava para o jovem
Jovelino se embrenhar no meio dos plantadores, fulanos de influência e ligações
aos meios militares, a bem dizer, fulanos de tal. Não perdeu tempo, homem de
raça que era, em entender o negócio e não vale a pena aqui explicar
detalhadamente, porque para contar histórias temos a D. Micá, Jovelino Azeredo
acabou como exportador de cacau tendo feito fortuna. Regressou a Portugal em
1976 com quase sessenta anos de idade, solteiro rico e dizem até que não era
mau rapaz. Mas não se ficou por aqui, pois num saltinho às berças, veio a
conhecer uma bela senhora, que ainda não tinha feito os quarenta anos, a D.
Ermelinda Sebastião, casaram e vieram a gerar Maria Catarina Sebastião Azeredo,
Micá para os amigos, D. Micá para os conhecidos, grupo onde me incluo. Está
visto que é preciso contar como é que o senhor Jovelino veio a ser comendador
mas isso conta-se mais rápido do que qualquer história que D. Micá conta aos
serões que costuma dar na sua casa apalaçada ali para os lados da Lapa. Tendo
ficado órfã de pai, arrastou D. Ermelinda para Lisboa onde o dinheiro e um
arquiteto, por acaso de nomeada, de uma firma de Arquitetos que só podemos aqui
dizer que se tratava de Fulano, Sicrano e Associados, pois D. Micá, por causa
de umas alterações que foram feitas à casa, sem que ela as tivesse avalizado,
jurou nunca lhes fazer publicidade, mas dizíamos que o dinheiro e o arquiteto
transformaram um velho palacete numa residência moderna. Decorada já nos finais
dos anos 90 do século XX, a casa perdeu aquele ar pesado neocolonial para que a
modernidade sofisticada se encarregasse de fazer o resto. É assim que um piano
Steinway & Sons, totalmente branco com incrustações Swarovsky pontuava na
ampla sala, com também amplas janelas de vidro triplo e caixilharia em pau-brasil
aclarado e um pequeno varandim onde só cabem duas pessoas de cada vez, quiçá
com algumas intimidades. Os tetos e o chão foram forrados de placas de carvalho
sueco e uma parede em mármore cinza claro contém uma lareira a gás, incrustada.
No centro, uma mesa redonda baixinha em ébano sobre uma grande tapeçaria persa
e uma chaise longue acolchoada a
couro italiano. Num canto da sala, com vista para o Tejo, dois espaçosos sofás
de quatro lugares cada, dispostos em L de tons branco sujo. O único móvel era
um aparador em laca onde se encontrava camuflada uma excelente aparelhagem de
som e a sua coleção de CDs de música pop-rock anos oitenta. Nas paredes, apenas
dois elementos decorativos. Uma pintura de Paula Rego e um retrato emoldurado
do Senhor Comendador, de autor desconhecido. Quando o senhor Jovelino
regressou, não quis que o seu dinheiro ficasse parado e associou-se com um
cunhado de D. Ermelinda Sebastião que era criador de vacas leiteiras. Pois não
só criaram uma sociedade de sucesso, mas também uma fundação, a Fundação do
Leite Magro com Chocolate, associando o espirito da alimentação saudável com o
gosto inconfundível e indispensável do cacau e cuja atividade nunca foi
relevante, pois dela nunca se ouviu falar, mas também nunca deixou de receber o
devido subsídio estatal. Um certo 10 de Junho recebeu uma comenda, dizem que
por causa da sua Fundação, mas que não se sabe se foi bem assim. Coitado, de
pouco lhe valeu pois um fulminante ataque cardíaco acabaria por o mandar desta
para melhor, apenas alguns meses depois de agraciado. Vivem agora D. Micá, nos
seus pouco mais de trinta anos de idade com a sua ainda roliça e bem tratada
mãe, de rendimentos e de serões, não vá o tédio matá-las. E se vos falei hoje
de Jovelino Azeredo foi porque ouvi contar, da boca da própria D. Micá, um dia
que fui convidado para o serão por um primo meu que é seu amigo e que por sinal
também é meu amigo, pois senão não me faria tais convites e que arrasta a asa a
D. Micá, a contadora de histórias. Dela ainda ouviremos falar bastas vezes
nesta sequência de histórias por ela contadas e outras não.
quarta-feira, 19 de setembro de 2012
167. Fantasmas
Chovera
naquela tarde de início de outono. Tinha findado um verão quente, um estio
abafado, um sem conta de dias em que as terras e as plantas não tinham recebido
nem uma gota de água. O tio João Fagundes andava desesperado. Os pastos secaram
como nunca tinha visto em nenhum outro dos seus sessenta e oito anos de idade e
nem valia a pena tentar lançar semente à terra. As vacas estavam a ser
alimentadas a ração e a feno importado e bebiam água trazida pelos bombeiros, o
que para as parcas economias do tio João Fagundes estava a ser um desmesurado rombo.
Estava a ser uma catástrofe. Pedir dinheiro ao banco é que ele não ia. Nunca
devera nada a ninguém.
A noite fora atribulada. O tio João não sabia
se tinha dormido se tinha sonhado. Estava muito desassossegado. Por isso,
naquela madrugada, o Tio João levantou-se cedo. Cedo e sobressaltado. Antes de
se deitar, fez o que fazia todas as noites ao longo dos vastos meses de seca.
Olhara para o céu e não tinha tido nenhum sinal de que o tempo iria mudar. Mas
o raiar da manhã desmentiu a sua enorme experiência de meteorologista empírico.
A noite também tinha sido agitada na vacaria e o constante balir de ovelhas e
cordeiros e o ensurdecedor berrar das cabras, mesmo a horas em deveriam estar a
dormir traziam pressentimentos, insinuavam que algo estaria para acontecer. O
tio João também o sabia. Melhor do que ninguém. O primeiro trovão fê-lo
estremecer e trouxe-lhe uma alegria mórbida. A própria pele eriçou-se como se
fosse a de uma galinha. Chegou-se ao poço e fez subir o balde de madeira. Só
depois se lembrou de que o poço estava seco havia meses. Quis lavar a cara
abundantemente com a água fresca acabada de tirar, como fora seu costume. Hoje
principalmente. Agora nem água no poço para a sua higiene tinha. Ainda assim,
vazou de um dos bidons de plástico, que os bombeiros tinham enchido, para uma
bacia e, com as duas mãos, deu várias chapadas de água até que se encontrasse
completamente acordado. Em face de toda a secura, de toda esta escassez não
deixava de ser irónico o seu pensamento:
- Temos água.
- Temos água.
Repetiu.
Depois chegou o banco às vacas, pegou no balde e começou a ordenhar. Toda a
manhã trovejou, mas nem uma pinga de água havia caído. Ao meio-dia a fome
apertou-lhe. Cortou um naco de toucinho e outro de pão. Serviu um copo de vinho
de uma garrafa que havia tirado de uma meia-pipa de zinco, que lhe serve de
garrafeira. Tirou do bolso do colete aos quadrados um velho relógio que lhe
pendia de um cordão vindo da segunda casa da fila de botões a contar de cima.
Estava na hora.
Tio João
Fagundes tinha uma sobrinha. Nunca casou, nunca teve prole e a única herdeira,
se é que se pode chamar herdeira de quase coisa nenhuma, era uma sobrinha,
ainda jovem. Faria hoje 18 anos. Julieta nascera de uma aventura do seu único
irmão, um doidivanas de grande coração e bom humor, sempre pronto para pregar partidas,
conhecido como Joaquim Mineiro, com uma moça lá da terra, que diziam ter
problemas. Quis o destino e o pó das minas que a silicose ceifasse a vida de
Joaquim, quando a sobrinha era ainda uma criança. A mãe de Julieta, infelizmente,
não tinha condição para a criar, vivendo desde há muito tempo internada numa
casa de saúde, usufruindo de uma escassa pensão por mor da morte de Joaquim,
com quem, por imposição deste, quando os pulmões quase já não respiravam, casou.
O tio João Fagundes assumiu todas as despesas suplementares que não fossem
cobertas pela pensão do falecido irmão, bem como todos os custos da educação da
sobrinha. Internou-a num colégio de meninas e proporcionou-lhe uma esmerada
educação. O irmão, lá no Céu onde repousava, não iria sofrer por isso. Hoje ela
faria 18 anos, já tinha idade de herdar. As três vacas leiteiras estavam
tratadas, as ovelhas, fora do redil, comiam o que restava de erva seca e as
cabras remoíam raízes e pequenos troncos. Ele faria o ponto de situação com o
Januário Pinheiro, o filho do seu melhor amigo, aquele a quem se acostumou a
confidenciar coisas da vida. Mas não tudo. Absolutamente, não tudo. Estava na
hora, mas não o faria ali. Não queria que a sua imagem, pendurada no tronco de
uma oliveira, ensombrasse para sempre a pequena propriedade que ainda lhe
restava e que a sobrinha lhe faria o que quisesse. O pouco que tinha seria para
ela. No banco já estava até uma autorização para que a menina, a partir do dia
em que fizesse 18 anos, pudesse “mexer-lhe” nas economias. Ele já estava ali a
mais. Aliás, os homens da terra costumavam partir bem mais cedo.
Passou pela
casa de Januário Pinheiro e cumprimentaram-se. O diálogo entre os dois era
sempre muito profícuo e alegre, mas hoje pouco falaram. O Tio João conhecia-o
desde garoto. Era o filho único do seu grande amigo Inocêncio Pinheiro, homem
da mesma idade, tinham ido às sortes juntos, bebiam na mesma taberna, cantavam
as mesmas modas. O seu maior desejo era que um dia, Januário, casasse com
Julieta.
- Hoje vossemecê
não está bom, ti João.
O tio João
Fagundes não respondeu à observação do jovem Januário. Respondeu-lhe como se
não o tivesse ouvido.
- Estive a
tratar das vacas, ordenhei-as, dei-lhes feno e comi um naco de toucinho.
E depois
rematou,
- Cheira-me
que vai chover.
- Huuumm, hoje o ti João não está bom - disse-lhe Januário franzindo o sobrolho. O
tio João, voltou a não ligar importância às observações do rapaz. Só lhe
interessava fazer o ponto da situação, discretamente. O moço haveria de
perceber, mas que não fosse logo. O velho castanheiro no cruzamento do álamo
para a várzea, já estava escolhido. Por detrás ele tinha escondido um
pedregulho. Era à medida. Num buraco do tronco tinha escondido a corda. Seria
ao lusco-fusco.
- Sabes que
quase não sei como dar de comer às ovelhas e às cabras? Hoje tive de lhes abrir
o redil e deixá-las procurar. Está tudo seco.
- Lá isso
está, homem. Mas ó ti João, vossemecê está-me a esconder qualquer coisa.
- Isso é
impressão tua - respondeu, dando pela primeira vez atenção ao jovem amigo -
Está tudo bem, não te preocupes – rematou.
Bebeu um
copo de água e saiu. Januário tirou a boina e coçou a cabeça. Depois voltou a
colocar a boina e resmungou entre os dentes «o ti João hoje não está bom».
No caminho,
tio João Fagundes tirou o terço do bolso e começou a rezar. Sem esperança nem
Fé. O tio João sempre ouvira que quem põe fim à vida de alguém não terá as
bênçãos do Céu. Muito menos se for a sua própria vida. Ainda assim rezava.
Rezava o padre-nosso e as avé-marias na ordem do terço. Fazia-o quase
mecanicamente pois se iria cometer um pecado, que fosse só um, que de não ter
rezado não se arrependeria.
Atravessou o
parque que dividia os terrenos do amigo Januário Pinheiro dos terrenos da
várzea. Os plátanos estavam repletos de castanho e verde numa combinação de
cores a anteceder o fim. O Céu era de um cinzento carregado. Iria chover, mas
agora já era tarde. Um pequeno passeio em pedra vermelha, iria, alguns minutos
mais tarde, depois do grande aguaceiro, refletir os tons das árvores e as cores
do céu, nessa altura, talvez já salpicado de azul. Se tivesse sorte alguém o
veria antes do cair da noite. Não estava feliz por ir passar uma noite que se
adivinhava de breu e chuvosa, esticado e encharcado naquele ramo. Mas era
tarde. Vinha tarde, muito tarde a água.
Uma primeira
gota caiu-lhe na cabeça destapada. O tio João não gostava de boinas. Tinha bom
cabelo e gostava de o mostrar. Depois outra e ainda outra. A chuva começara a
cair com intensidade. O tio João só acelerou o passo, quando na orla do parque
que dava para os terenos da várzea, um chapéu e uma bengala jaziam no único
banco daquele jardim. O coração bateu-lhe forte.
- Ó raios!
Exclamou e
guardou o terço no bolso do casaco.
- Ó raios!
Exclamou de
novo e parou como se fosse uma estátua. Olhou o chapéu e olhou a bengala. Olhou
de novo. Ele conhecia aquele chapéu. E da bengala ele não tinha a mínima
dúvida. O tio João desatou a correr em direção ao castanheiro. Pelo caminho
exclamou de novo «ó raios!».
Joaquim, o
seu único irmão, mais novo e mais rápido, tomou-lhe a dianteira. Pendurado pelo pescoço jazia morto
e frio, suspenso num ramo do castanheiro. Um pedregulho aos seus pés. E
continuava a chover. Choveu durante toda aquela tarde de início de Outono.
terça-feira, 11 de setembro de 2012
166. Há coincidências?
Quando peço
licença e me sento naquele banco corrido de madeira na venda do mestre Tomé,
que em tempos já foi carpinteiro mas que, por morte do velho Domingos Colaço,
seu pai, acabou do lado de lá do balcão a servir copos de branco e agora,
minis, que a modernidade é assim mesmo, oiço histórias que vá lá saber-se se
são verdadeiras ou não, mas que nos fazem pensar. Eu, que estou sempre a dizer
que não acredito em coincidências, tenho dias em que me sinto quase a dar a mão
à palmatória. A história que vos trago hoje compu-la a partir da narração
empolgada do Carita, que se virou para o filho do ti Manel Torrado, de quem
agora não me lembro do nome e que tem andado emigrado lá para a Bélgica «Ah não
há coincidências, não? Então toma lá esta!».
D. Cerise
era a professora primária. Senhora dos seus sessenta anos há mais de trinta que
vivia na aldeia. Uns dizem que tinha sido freira e que por mor de um amor
ardente teria quebrado os votos. Não aceite na sua terra natal, cedo viria para
Portugal e se fixara naquela aldeia raiana. Outros que era filha de emigrantes
e que por ter nascido em França logo lhe prantaram o nome de Cerise. Para
muitos lá na aldeia era a senhora professora, para outros era a francesa. Para
o senhor doutor que lá ia, de início de mês a mês e que, não se sabe porque
feitiço, passou a ir todas as semanas, D. Cerise era uma mulher doente. Para
outros era a amantizada do médico.
Anastácio
Canilhas era um miúdo que gostava de armar aos pássaros. Gostava também de
jogar à bola na eira, de arranjar bicicletas e de pescar nos barrancos e
tapadas. Canilhas era sobrenome que lhe vinha do avô, pois tinha por profissão
remendar tetos de canas. Anastácio Canilhas era aluno de D. Cerise mas aos treze
anos era já marçano na venda do velho Domingos Colaço, aos dezasseis aprendiz
de padeiro na padaria da D. Eugénia, aos vinte foi às sortes a Beja, aos vinte
e três arrumou emprego na Carris em Lisboa, aos vinte cinco regressou à terra e
foi tomar conta das alfarrobeiras do patrão Carapeto, das ovelhas, dos pomares
e da menina Genoveva a quem todos chamavam de Veva ou mais carinhosamente de
Vevinha. O que nunca lhe passou foi a mania de pescar achegãs nas tapadas.
Joaquim
Perna, era um garoto muito pacato. Se Perna que já vinha de tantas gerações,
alguma vez foi alcunha, ele não o sabe. Na escola, era o melhor aluno de D.
Cerise, passava sempre de lição e sabia de trás para a frente e de frente para
trás o primeiro catecismo. Estudou o segundo e o terceiro, fez o quarto
catecismo, a comunhão solene e o crisma. Por não se dar a grandes brincadeiras
com os outros rapazes, não tinha muitos amigos. D. Cerise, uma mulher doente,
como dizia o Dr. Armindo, todas as semanas faltava um dia às lições. Ora porque
tinha de ir ao consultório do senhor doutor, ora porque uma maldita enxaqueca
não a deixava sair de casa, outras vezes um desarranjo e ainda outras, a
espondilose não a deixava endireitar a espinha. Mas da boca de Maria Amélia, a
moça, hoje uma mulher, embora solteira e dizem as línguas da terra, ainda
virgem, que lhe faz a lida da casa e lhe é companhia nos fins de tarde
solitários e sonolentos, nunca se lhe ouviu palavra, nem mesmo quando a
vizinhança jurava a pés juntos que a porta dos fundos que dava para um amplo
quintal, mas protegido pela frondosidade da sua vegetação, rangia em dia de
médico.
Nesses dias
de ausência da professora, uns iam ajudar os pais nas hortas, outros ficavam no
átrio a jogar à bola, outros, os mais pequenos saltavam para casa onde uma avó,
uma tia mais velha ou a própria mãe, que de falta de trigo não saíra para
jorna, lhes dava café quente quando era inverno ou água da infusa quando o
calor apertava, um naco de pão e por vezes uma fatia de toucinho e os protegiam
da estiagem abrasadora ou dos ventos gelados vindos da vizinha Espanha. Joaquim
Perna só depois de se certificar que o Padre Francisco não precisava de mais
nada, mudava de roupa, que a roupa de ir à escola era sagrada, vestia una
calçanitos mais velhos e uma blusa também coçada, pegava numa vara de bambu que
já fora de seu pai e saía com Anastácio Canilhas para pescarem na tapada do Carapeto.
Eram tão amigos que um dia, quando olharam para as sacolas e viram que ambos
tinham exatamente o mesmo número de achigãs pescados, proibiram-se mutuamente
de um morrer primeiro do que o outro. E quem desobedecesse, lá no Céu teria de
pagar um pirolito ou uma laranjada ao amigo. Ao que Canilhas, rapaz mais vivido
acrescentou «para mim pode ser uma amêndoa amarga». E deram os dois em
uníssono, uma valente gargalhada.
Vevinha,
andava numa demanda louca, num desvario nunca visto, numa ânsia indescritível.
A sua casa era um corrupio, com as vizinhas a saírem e a entrarem para a
consolarem e dizerem de circunstância «vai ver que não há de ser nada». Anastácio
tinha saído para pescar. Já passava da meia-noite e do homem não havia notícia
nem mandado. Ninguém pesca naquele charco à noite, ainda mais com lua cheia,
terra de lobisomens e de outros perigos, com a guarda atrás dos
contrabandistas, os tiros que rasgavam em clarões no meio da noite, o bornal
pela certa já vazio, haveria de ter fome. E sede. Anastácio desde que conheceu
Genoveva era homem de casa e o patrão Carapeto, tinha por ele muita estima. Que
alguma coisa lhe havia de ter acontecido, isso havia. Joaquim Perna, que
conhecia o lugar como ninguém, ou melhor, tanto como o amigo, desde os tempos
da escola primária que ali pescavam juntos, já tinha feito mais de duas batidas
e nada de Anastácio. Vencido pelo cansaço e pelo medo dos sons da noite,
regressou e foi-se anichar no sino da igreja, onde fez de vigia e passou a
noite.
No adro da
igreja jazia inanimado, sem dar cor de si e esvaindo-se em sangue. «Coitadinho»,
diziam umas. «Pobrezinho», ouviam-se a outras. «Desgraçado», lamuriavam uns.
«Coisas…», sem terminar a frase balbuciavam outros. Eram duas horas naquele
início de tarde, onde uma chuva miudinha teimava em prometer que nessa noite
não haveria lua. Alguém chegou a correr com os braços no ar gritando que o
corpo de Anastácio Canilhas tinha sido encontrado no charco. Vevinha, em sua
casa, vestida de negro desde a véspera, cobria a cabeça com um lenço e deixava
cair duas lágrimas enquanto se ajoelhava junto ao nicho de Nossa Senhora. A seu
lado ardiam duas velas. O velho padre Francisco, não encontrou o Joaquim Perna
que era quem lhe tocava o sino. À falta do sacristão foi ele mesmo quem foi
tocar a rebate. Lá em cima, dormitando encostado ao sino após uma longa noite
de vigília, sem de nada se aperceber estava Joaquim Perna. O sino atingiu-o
numa fonte e Joaquim não teve pernas para se aguentar. Quando caiu no adro da
igreja, já estava morto. Anastácio morreu primeiro. Fariam as contas da aposta
daí a algumas horas. Agora era tempo de mudarem de fato.
quinta-feira, 6 de setembro de 2012
165. Espelhos da minha infância
O meu espelho começa a cansar-me. Não que não seja um
espelho bonito, numa decoração, quiçá já um pouco démodé, mas ainda assim
funcional e condicente com o ambiente. Não que não esteja em condições, sem
quebra da película que o espelha, sem rachas no vidro, sem perdas nos cantos,
sem manchas. Não que não reflita o ambiente calmo em tons de verde-água que
permite uma suave transição entre o matinal despertar e o mundo azul brilhante
que nos chega pela janela. Não que ao olhar o espelho, olhos nos olhos, não
possa detetar mais uma cã, mais um pé de galinha, mais um engelho na mão que
pega a lâmina com que de manhã me barbeio, me penteio, me apronto. O meu
espelho não tem defeitos e apesar disso começa a cansar-me. Talvez, se um dia
se quebrar eu venha a ter saudades dele, mas agora…
Agora, saudades tenho do espelho do senhor Zé Barbeiro, o
barbeiro, claro, onde em miúdo ia para cortar o cabelo. Na verdade o senhor Zé
Barbeiro não tinha um mas sim dois espelhos. Exatamente um em frente ao outro.
Eu não gostava muito do senhor Zé Barbeiro que me obrigava a permanecer imóvel na
cadeira, minutos sem fim, eternidades, a ponto de me ameaçar cortar-me uma
orelha se eu não estivesse quieto. Estar sentado na cadeira do babeiro era para
mim um suplício mas também um fascínio. No espelho do senhor Zé Barbeiro eu
via-me e o espelho via-me a mim. Quando eu me olhava por detrás, o espelho
olhava-me de frente e quando eu me olhava de frente o espelho olhava-me por
trás. E se a minha cabeça ficava à frente de um e de outro e de outro e de
outro e de outro e de outro, eu inclinava-a um pouco e ficava a ver uma
infinidade de Constantinos, uns de frente outros de trás, pelos espelhos fora.
Queria lá saber se o senhor Zé Barbeiro me cortava uma orelha ou não. Até
aposto que aquilo era mentira dele.
Gostava também do espelho do senhor Isidro. O senhor Isidro,
para dizer a verdade não tinha só um espelho, ele tinha muitos. E todos eles também
me fascinavam e intrigavam. Eram pequenos, colados nos pilares da loja e em
qualquer deles não se via a pessoa mais do que dos joelhos para baixo. Com os meus
três anos, mais que me fascinarem, intrigavam-me. Eu via as pessoas inteiras e no
espelho só tinham calças e sapatos, ou então um bocadinho de vestido meias e sapatos.
E então eu agachava-me para ver se percebia por que é que quando eu andava a
rastejar pelo chão via as pessoas inteiras nos espelhos. E então vinha o
fascínio da descoberta. E por isso a exaustivamente repetida pergunta, que por
vezes já lhe enchia a paciência «mãe, quando é que vamos ao senhor Isidro
comprar umas sandálias?». Até sonhava com os espelhos da sapataria.
Dona Carmo, que é como lhe chamavam mas que eu sempre
duvidei de que se chamasse assim, pois tinha sotaque espanhol, só tinha um
espelho. Eu, quando era garoto estranhava e perguntava à minha mãe porque é que
a Dona Carmo tinha um espelho tão velho. Acho que a resposta que obtive foi
porque Dona Carmo também já era velhota, mas a verdade é que em termos fashion, Dona Carmo estava muito à
frente. O espelho dela era propositadamente velho, numa moldura de castanho,
parecia salpicado e escurecia nos cantos. Quem visitava a loja da D. Carmo era
gente fina que ia lá comprar ou alugar chapéus de cerimónia. Era a chapelaria
mais importante da vila, vendia boinas, bonés, chapéus de coco e até cartolas.
O espelho condizia com a decoração “de época” da loja da Dona Carmo. Balcões,
armários, prateleiras e espelho, tudo a condizer. Uma vez o meu pai alugou na
loja Dona Carmo um chapéu parecido com o do Fernando Pessoa. Quando olhou para
o espelho da Dona Carmo saiu de lá com a sensação que havia qualquer coisa que
não estava bem e quase culpou o espelho por isso. Só dois dias depois é que se
lembrou que não tinha bigode.
Na Feira Popular era rir até mais não poder. Quando cá fora ouvíamos
aquela cassete que não parava de gargalhar, numa antecipação dos risos
enlatados das séries televisivas, sabíamos que estávamos perto do Palácio dos Espelhos.
É claro que lá dentro todos nos partíamos a rir, mas nunca eramos tantos quanto
as gargalhadas vindas do altifalante poderia induzir. Espelhos que nos
distorciam a imagem, onde tão rapidamente eramos anões, como jogadores de
basquetebol, onde reproduzíamos o Bucha e Estica lado a lado, onde eramos
marrecos ou barrigudos, e onde até tínhamos os maxilares de lado sem termos
jogado boxe. Se ainda houvesse Feira Popular voltaria ao Palácio dos Espelhos.
Ando a precisar de rir.
No prédio em frente ao que eu morava, vivia num segundo
andar a Dona Perpétua. Dizem que a Dona Perpétua era uma senhora que tinha tido
uma casa de passe na Baixa Lisboeta. Quando a D. Perpétua se retirou dessa
vida, tendo-se casado com um senhor que tinha um carro desportivo verde-claro e
era, pelo menos, uns vinte anos mais novo do que ela, vimos um dia chegar uma furgoneta
e descarregar umas peças de mobília à porta do prédio. Ouvimos da janela do
segundo andar a Dona Perpétua, com ar de quem se levantara tarde, com um
cigarro numa mão e embrulhada num robe azul-escuro de cetim, gritar «cuidado
com o espelho!». Dizia a malta mais velha, com ar de malandrice, de que era o
espelho que ela punha aos pés da cama quando atendia os clientes. E a gente, na
nossa ingenuidade de putos, ria-se sem saber porquê.
Ah, é verdade, não podia acabar esta minha memória de
espelhos sem vos contar duas coisas. A primeira é que todo este desenrolar de
pensamentos sobre os espelhos da minha criancice não demorou mais tempo do que
o de cortar a barba matinal. A segunda é para dizer que quando o padre fez as
exéquias de Dona Carmo chamou-lhe Mari Carmén. Eu bem me parecia que ela era
espanhola.
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