quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

191. Vodka, fantasmas e futebol



"Frei Bento Patinho estava sentado de costas para a entrada, num dos bancos da primeira fila. A capela era pequena e não se sabe a que Santo ou Santa ali se fazia devoção. Um altar em mármore cor-de-rosa italiano de Carrara, um crucifixo assente num suporte de pé ao lado do altar e, por detrás, uma Nossa Senhora numa redoma de vidro. D. Bonifácio, quando entrou na capela, fez um rewind à fita magnética das suas memórias. Ali acorria quando brincava às escondidas com os filhos e filhas do caseiro e da cozinheira, ali se refugiava na adolescência onde refletia nas suas crises pseudo-existenciais, ali algumas vezes namorou a filha de D. Verónica de Castro, uma amiga de infância de sua mãe, que amiúde os visitava, ali acompanhava desde criança os seus pais para assistir às missas realizadas pelo padre Augusto Pereirinha, um velho amigo de seu pai que com ele cresceu, ali foi batizado ainda de tenra idade e ali casou com Antonieta, o grande amor de sua vida. Hoje, D. Bonifácio só ali entra para conversar com Frei Bento Patinho, um frade nascido no século XV.

Frei Bento Patinho estava sentado de costas para a entrada. D. Bonifácio aproximou-se. Na capela apenas os seus passos se ouviam. Aristides fcou lá fora pois não iria ouvir o patrão falar sozinho, como ultimamente era costume. Preferiu esquivar-se a tal desiderato. Frei Bento Patinho levantou uma mão e fez sinal para que D. Bonifácio parasse. Ele assim o fez e se quedou em pé, um pouco atrás de Frei Bento. O silencio era tanto que se podia ouvir o zumbir das abelhas. De repente, D. Bonifácio estarreceu. Era noite. Apenas uma lâmpada economizadora que dava uma luz amarelada, uma luz de defuntos, iluminava a pequena nave. O inverno ainda ia a meio. Nem uma flor florira nos vastos jardins da mansão. Corrijo. Alguns malmequeres amarelos e brancos já despontavam. Mas isso era na rua e abertos, apenas durante o dia se podiam ver. Não poderia ser o zumbido de abelhas. Olhou para todos os cantos e fixou o olhar no ouvido direito do frade. Pareceu-lhe ver um ponto negro. Fixou-se nesse ponto e, aos poucos, mesmo com a escassa luz, foi possível ver que se tratava do terminal de um headphone. Era dali que vinha o zumbido. Estaria Frei Bento Patinho a escutar alguma ópera de Wagner em MP3? Uma edição litúrgica em audiobook? As cantatas de Bach? Os madrigais de Monteverdi? O homem que sou do Tony Carreira? Pablo Alboran e Carminho em dueto?

As dúvidas só se desfizeram quando, num repente, o frade salta do banco aos pulos e aos gritos de golo, golo, goooooolllllooo!!! Frei Bento Patinho estava a ouvir um relato de futebol."

Uma enorme gargalhada ecoou naquele salão. Estava tudo em suspenso com mais este episódio contado por D. Micá quando a nossa contadora de histórias se sai com esta de que o fantasma de um frade do século XV gostava de futebol. Foi então tempo para uma pausa e Eduardinha serviu as bebidas onde pontuou o leite magro com chocolate e um licor conventual de avelã.  

Perguntou então o Pires Cunha se podia contar um episódio relacionado com um jogo de futebol o que deixou a Geninha, que não gosta nem de ouvir na palavra, muito enfadada a perguntar a toda a gente «onde é que está a vodka? onde é que está a vodka?» e a Marta Caracinha a afastar-se e a dizer ao Pedro Rebocho que se o serão ia acabar em coisas da bola o melhor era irem embora e sugeriu-lhe as docas, ao que ele respondeu «está bem». Apesar destas e de outras desistências, como o serão mal tinha começado, lá ficaram alguns para ouvir a história do Pires Cunha. O Pires Cunha tem ar de poeta. Usa sempre camisas com gola à padre, compradas na Zara, aliás aproveitou os saldos de janeiro para comprar duas em azul bebé com risquinhas, mas ligeiramente diferentes, porque uma tem bolso de peito e a outra não tem  e ainda uma branca com duplos botões nos punhos, que lhe dá assim um ar de não-sei-o-quê. Raros são os dias em que não coloca uma écharpe, quase sempre de algodão frisado com franjas, dá-lhe duas voltas sem apertar no pescoço e faz-lhe descair as duas pontas para trás. Uns dias usa boina galega preta, outros boina oitavada de tweed em xadrês. Por acaso hoje não usava nem uma coisa nem outra. Vestia umas calças pretas de ganga elástica, uma camisa branca, com gola à padre, claro está, debruada com um friso de um material plástico, quer à volta da gola quer acompanhando a costura onde se situam as casas dos botões, uma écharpe vermelha e branca aos quadrados, estilo guerrilheiro palestiniano e um porkpie bordeaux na cabeça que fez questão de não tirar durante todo o serão, apesar de no salão de D. Micá, não fazer nem sol nem frio e a lareira estar a crepitar desde as seis da tarde para dar conforto à tertúlia. E quando o Pires Cunha se levantou para tomar um lugar em que ficasse virado para todos os que o queriam escutar, ouviu-se a voz do Eduardo Aragão, que como se sabe tem uma vida de boémio de que lhes darei conta noutra altura, a desafiá-lo «Ó Pires, tu com esse chapelinho hoje recitavas-nos era um poema». E o Pires Cunha acedeu, prometendo que contaria a história da bola noutra ocasião. A Marta Caracinha voltou a despir a jaqueta grená com pele sintética a imitar coelho na gola e a Geninha virou de seguida dois shots de vodka. Já não prestou atenção à poesia uma vez que adormeceu a um canto sentada no chão.


sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

190. Nu com vento



Ele há histórias que por mais que repetidas nunca cansam. É por isso que gosto de passar os meus serões de quintas-feiras na casa da D. Micá. Não que eu já conheça o desfecho da história de fantasmas que ela tem andado a contar e que eu, por afazeres ou parêntesis que não me permitem a sua continuação mais efetiva, tenho demorado a transcrever. Ou então é mesmo a D. Micá que faz estes parêntesis tão grandes, estas extenuantes esperas, em que nem ata nem desata. Caprichos de uma contadora de histórias que já apanhou os vícios do seu criador, não do Criador, como é bom de ver, teriam bastado apenas sete dias, incluindo um de descanso.

Retornando ao que me fez hoje voltar ao vosso convívio que foi contar o que se passou com o meu amigo Eduardo Aragão precisamente ontem e que ele não perdeu a oportunidade de à noite nos encher de pormenores. Foi até bom porque a noite estava fria, D. Micá teve de acender a lareira, o ambiente compôs-se e até as pernas da Eduardinha sobressaíam mais ruborizadas das meias brancas com rendas. Mas de Eduardinha, por hoje, vamos ficar por aqui e vamos desde já diretos ao assunto.

Não é a primeira vez que o Eduardo vai para aqueles lados. Mas das outras vezes que ele lá foi, diga-se de passagem, quase sempre de forma bem produtiva, falar-vos-ei quando for oportuno para que não nos dispersemos do essencial. Contar-vos-ei do dia em que ele tinha marcado um encontro com uma senhora que conheceu num baile social de caridade, mas, bom, não adianto mais nada, porque nem o Eduardo, apesar de meu amigo, me perdoaria as indiscrições, nem vocês, tão entusiasmados que estão para saberem o que é que houve ontem de tão especial, estariam interessados no episódio de Eduardo Aragão com a senhora de sociedade com quem se encontrou em plena Serra da Arrábida. E é precisamente aqui que começa a narração do Eduardo.

A manhã apresentava-se chuvosa mas nada que não se previsse. Os meteorologistas já o tinham avisado, mas mais nada havia a fazer, pois o encontro estava combinado e o almoço com os amigos não seria perdível. A vegetação está mais verde que nunca, mas rareiam as flores. Ainda faltam alguns meses para que as aroeiras se cubram de roxo e para que as abelhas, sôfregas de néctar,  as povoem. Também o céu, se em vez de cinzento carregado tivesse aparecido azul misturado com alguma nebulosidade  cinza escura, cinza claro, teria dado outra luz ao vício de Eduardo, que é, embora eu nunca vos tenha dito, um amante da fotografia. Um dia contar-vos-ei como é que ele, a bordo de um navio soviético, comprou a sua primeira Zenite de contrabando, é claro, mas uma boa máquina, com lentes Zeiss de primeira categoria. Fica para outra vez. Vestia umas calças quentes de fazenda grossa, enfiadas em botas de caça e um blusão impermeável. Um chapéu na cabeça, acessório que ele não dispensa, dá-lhe um ar fino e o momento, para ele é sempre solene. Quando entra no Convento de Nossa Senhora da Arrábida, outrora pertença dos duques de Aveiro e mais tarde dos de Palmela, sente algo de especial, visto, vocês não sabem mas a D. Micá é pessoa para o confirmar, ser ele ainda descendente em quarto grau, de um franciscano que se desviou do seu caminho contemplativo, ou melhor dizendo, contemplou coisas terrenas e foi por aí fora. Pagou o seu bilhete de três euros, tal como estava estipulado e tal como os outros amigos, com quem foi, o fizeram e depois seguiu com avidez de conhecimento as informações transmitidas pelo insubstituível Quirino de Almeida. Este homem, ex funcionário da Centrel, trabalhando nas telecomunicações tal como Eduardo trabalhou um dia,  trabalha no Convento da Arrábida, onde vive, há já 19 anos, tendo sido até personagem de livro, do escritor Jorge Marques e ator num filme dirigido por Manoel de Oliveira, precisamente, "O Convento".  O senhor Quirino que é um autodidata, hoje faz de quase tudo lá no Convento, conhece-lhe toda a história desde a sua fundação, pelo que teve de ler e se documentar para isso, falou nao só da estrutura física que ali se nos depara mas também, com afinco e convicção, da vida dos frades que por ali andaram e primeiro desfrutaram do Convento, Frei Martinho de Santa Maria, a quem D. João de Lencastre, duque de Aveiro cedeu o usufruto quer do Convento quer das encostas da serra, aonde já existia o "Convento Velho", que mais não eram que grutas na serra onde os frades franciscanos cumpriam a sua missão contemplativa, Diogo de Lisboa, Francisco Pedraita e S. Pedro de Alcântara. Falou o senhor Quirino e assim nos contou ao serão o Eduardo Aragão, das capelas construídas na serra a mando de d. Ana Manique para que se tornassem lugar de peregrinação constituindo as catorze estações da Via Sacra, embora só sete houveram sido construídas  Depois falou da passagem do convento para os duques de Palmela e finalmente para a Fundação Oriente, seu atual proprietário. Quirino de Almeida realçou a vida isolada, contemplativa e de reflexão, dos frades, incluindo a frugalidade das suas refeições, constituídas quase exclusivamente de pão e água. Depois, o senhor Quirino propôs-nos um jogo. O senhor Quirino é assim mesmo, tem algum espírito de humor e é um artista. Não vos disse mas o senhor Quirino é pintor. Um dia destes assistiremos a uma mega exposição no Convento dos seus óleos que, pela figura do senhor Quirino só temos de acreditar que será uma grande exposição com E maiúsculo.  E o seu jogo consistia em fazer de nós um arquiteto. O objetivo foi fazer-nos ver o state of art do século XVI. Na realidade, para a época, aquele era um Convento com todas as comodidades, nomeadamente tinha água "encanada". E esta? Pois foi aqui que pontuou o Eduardo Aragão. No jogo do senhor Quirino intervieram como arquitetos-projetistas todos os visitantes, nomeadamente o José Mota que foi eleito arquiteto-mor. Não havia nada naquele lugar. Zero. Nem paredes, nem sequer os bancos em que estavam sentados, o que quer dizer que se aquilo fosse de repente, teriam todos caído com o rabo no chão.  E como construiriam  então,os novos arquitetos, o Convento? Construí-lo-iam à luz do século XXI, obviamente. E entre outras comodidades, luz, televisão, microondas,  máquinas de lavar roupa e loiça, chuveiros e retretes. Nas celas, os frades, teriam ate computadores ligados à Internet. E foi aqui que interveio o nosso Eduardo. Dizia ele para o senhor Quirino  que se assim fosse, os frades não mais viveriam a pão e água. Era só mandarem vir umas pizzas pela Internet. Ah rica contemplação do nosso século.


domingo, 20 de janeiro de 2013

189. Está na hora de beber algo




Cheia de glamour e no entanto… D. Micá estava muito queixosa, coitada. Recostada sobre a chaise longue, exibia um vestido cor carmim, comprido, com uma generosa racha na perna esquerda e um não menos generoso decote. D. Micá tinha uns seios bonitos pelo que os decotes lhe davam um ar garboso. Os cabelos soltos, hoje cacheados, deixavam ver uns brincos compridos, pendentes de oiro branco, terminando num discreto rubi. Os lábios condiziam com o vestido, o vestido com os brincos e estes, por sua vez condiziam com a pulseira que fechando o círculo dava com os brincos. Como aliás não podia deixar de ser. No pescoço uma gargantilha, deixando-lhe o colo nu, realçado na sua pele alva e aveludada. D. Micá vestia sempre bem nos dias em que recebia e não fosse ela, parecia que o candeeiro, com pendencias de cristal, não teria o mesmo brilho. Mas estava muito queixosa hoje, D. Micá, tanto que, durante todo o serão, não dispensou os serviços de Preciosa a sua enfermeira particular. Volta e meia pedia desculpa e saía para os seus aposentos para que Preciosa lhe massajasse as pernas. Depois voltava, mas o sofrimento, por vezes não conseguia que os seus próprios olhos o não denunciasse.

Conjeturavam o Fagundes e o Justino Carlos sobre o mal-estar de D. Micá enquanto beberricavam, o Fagundes porque ainda teria de regressar essa noite a Santarém, um copo de leite magro com chocolate e o Justino Carlos um licor de avelã, que ele dizia gostar muito. Um, que D. Micá andava com uma inflamação no nervo ciático, que já tinha ouvido a D. Ermelinda falar de que a filha tinha problemas de coluna e outras coscuvilhices menos próprias de um professor do ensino secundário e o outro, que lhe tinha chegado aos ouvidos pela mulher, “nos dias em que não anda entretida com o ricalhaço”, terá pensado o Fagundes, coitado, que da Graziela nunca mais terá sabido o paradeiro, que D. Micá tinha um problema no menisco e que seria operada em breve, mas que fazia um certo tabu com a coisa.

Num outro canto da sala, a Marta Caracinha, hoje exageradamente vestida em estilo juvenil, com um vestido cor-de-rosa às bolinhas com um grande laçarote na cintura, os totós que parece não querer largar, meias até ao joelho e uns sapatos de ténis, da mesma cor do vestido, ninguém lhe dá os vinte dois anos já feitos, mais parece uma colegial de doze ou treze, preparada para ir a um show da Xana Toc-Toc no campo do Atlético, à Tapadinha, conversava com a Geninha, esta, como sempre, de copo de vodka na mão, preparada para o despejar de um shot, sobre uma pequena desavença que teve com o Pedro Rebocho, devido ao facto do namorado só gostar de vestir preto, o que não lhe ficava nada bem com o cabelo pintado de roxo e um novo penteado funk que ele tinha decidido fazer num novo cabeleireiro que abriuna Ericeira e que é propriedade de um amigo dele de infância. Consta que o amigo é gay e a Geninha desconfia que ela está mais preocupada com a aproximação do Pedro Rebocho ao Dinis do que com cor do cabelo, pois que para Geninha fica-lhe mesmo a matar. E deram por finda a conversa quando a Marta se virou para Geninha e disse:

- Por este andar hoje não vamos ter história.
- Parece que não; parece que a D. Micá está com umas horríveis dores nas pernas – assentiu a Geninha, depois de mais um shot de vodka.
- E ao que consta, ninguém sabe de onde lhe vêm aquelas dores – disse, com um ar algo pesaroso e intrigada, a Marta Caracinha.
- Desconfia-se que a coitada tem reumático. Vê lá tu, Marta, tão nova e já a sofrer tanto. Eu nem quero imaginar o que será de mim daqui a uma meia dúzia de anos – lastimava-se Geninha.
- Oh filha, não bebas tanto. Olha que a vodka não dá saúde a ninguém – desdenhou a Marta.
- Olha quem fala. Tu, que toda a gente sabe és uma viciada em leite magro com chocolate, qualquer dia estás cheia de colesterol – disse sem muita convicção, mas também com alguma falta de argumentos, a Geninha.
- Do quê? Do leite magro? Deves estar a passar-te – riu-se Marta e voltou-lhe as costas, até porque naquele momento, chegava, muito bem disposto, o meu amigo Eduardo Aragão.

Eduardo que sempre foi um bom atleta, mas que falaremos disso logo que for oportuno, cumprimentou um a um, por quem ia passando, deixava umas chalaças sobre o estado do tempo ou sobre os últimos resultados da bola e dirigindo-se a D. Micá, beijou-a na mão e perguntou-lhe:
- Então, gostou da caminhada? Amanhã vamos a outra. Olhe que dizem que faz muito bem para os diabetes. E para o coração – acrescentou e, virando-se para Eduardinha, cada dia mais provocante no seu traje de empregada de dentro, piscou-lhe o olho e perguntou: - O que é que vamos beber hoje?

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

188. O chichizinho de D. Micá




“Antonieta desaparecera tão misteriosamente da sala como misteriosa tinha sido a sua aparição na mansão. D. Bonifácio d’Assunção, na verdade, nunca se impressionou com a sua presença. Por isso, não se estranha que não se tenha impressionado com o seu desaparecimento. Parece que quem não ficou assim tão indiferente foi Gatófio que desatou a miar compulsivamente que até parecia uma gata no cio, embora, os próprios testículos, os dele, o testemunhem como um gato macho como poucos e não há telhado nas redondezas que não os conheça. E vice-versa.

D. Bonifácio colocou os dois dedos, indicador e médio, ligeiramente fletidos, nos lábios, dobrou a língua e assobiou. O silvo foi tão agudo que Penafiel se assustou. Um gato a miar como miava Gatófio e um cão que ora ladra ora uiva, como o faz Penafiel, transformaram o silêncio que se tinha feito cerca da meia-noite e meia hora, quando a música brasileira, que tinha substituído o canto gregoriano, também já se havia finado, num arraial da animália. Para agravar a situação, lá fora, dois cavalos relinchavam e ao longe ouvia-se o piar de uma coruja. Ao som do silvo emitido por D. Bonifácio de Assunção, que do barulho dos animais não fora com certeza, atendeu Aristides que compareceu prontamente mas não se pode dizer que a correr, pois Aristides já não tinha idade para grandes velocidades, trazendo a bengala e o chapéu de D. Bonifácio. Este, dispensando por enquanto o chapéu, pois não tinha intenção de se ausentar de imediato da mansão, pegou na bengala e pediu a Aristides que o acompanhasse à capela do edifício. À sua espera, estava já Frei Bento Patinho, um frade dominicano falecido em 1478 e que tinha por costume passear-se altas noites, sem nunca ter sido visto, pelos claustros do convento onde viveu no século XV, em pleno reinado de D. Afonso V, o Africano e pela mansão de D. Bonifácio, mais de quinhentos anos depois, sabe-se lá porquê. A verdade é que a sua presença era muito querida a D. Bonifácio e nada dizia a Aristides que, por mais que ouvisse o patrão falar com uma terceira pessoa, nunca tal criatura houvera visto e, por isso, chegou a pensar que D. Bonifácio estaria xexé da cabeça”.

D. Micá fez uma pausa. As pessoas protestaram, pois queriam saber o que se passou entretanto na capela da mansão. D. Micá disse que precisava de ir fazer um chichi porque as pessoas da sociedade, apesar do ar sempre descontraído, dos vestidos bonitos, dos chapéus de cerimónia, dos varandins com mesas de ferro forjado e trabalhadas, pintadas de branco, com toalhas de renda de Viana do Castelo ou da Madeira, com canapés século XIX, das fotos de pose sentadas ao lado dos filhos e o marido por detrás em pé, com amigos e amigas chamados Vavá e Vivi, Lili e Liluxa, Pepas e Pipas, essas pessoas também fazem o seu chichi e, claro está, quando a necessidade assim o obriga, também dão o seu, delas, punzinho.

É claro que a pausa se prolongou mais do que era esperado, ou então não, pois todos sabem que quando alivia um português, aliviam logo dois ou três, as conversas são como as cerejas, ficamos ali a conversar de banalidades, até que Eduardo Aragão propôs que jogássemos uma partida de poker. Que pena o Eduardo estar a ter esta recaída. Acho que vocês vão gostar no dia em que eu aqui vos contar como Eduardo Aragão gastou uma fortuna, uma não, duas, por causa do vício do jogo. Mas hoje a história já vai longa e Eduardo provavelmente não gostará que eu mexa nos seus fantasmas, pois quem é boa, boa mesmo, a contar histórias, cor-de-rosa ou não, é a nossa querida D. Micá.


quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

187. Micá e os coentros picados





O meu amigo Eduardo Aragão, de quem um dia, se surgir a oportunidade, falarei mais em detalhe das suas qualidades de bom gastrónomo e requintado gourmet que não dispensa o fois gras e o champanhe, o goulash ou o cordero asado, as gambas a l’ajillo e a massada de cherne, é absolutamente doido por pataniscas de bacalhau com arroz de feijão.

Estávamos nós a falar nele, em casa da minha amiga Micá, D. Micá como todos lhe chamamos, quando a nova empregada, a Eduardinha, anunciou a chegada do sr. Eduardo Aragão. Já falaremos da sua entrada não muito triunfal para vos referir que hoje era Eduardinha quem estava de serviço. Perguntei a D. Micá que era feito da outra moça, a protegida do sr. Hortêncio, que costuma tropeçar nos tapetes e partir serviços. Então não é que a raparaguita se apaixonou pelo Faria, sendo que o Faria, que entretanto, diz-se no salão de D. Micá e não só, namora com uma viúva que lhe dá de tudo, do bom e do melhor, olá se dá, oh, oh, não foi capaz de resistir ao bater de pestana da empregadeca, o que aliás deixou deveras descontente o sr. Hortêncio que, parece, fala-se também, isto hoje é só má-língua, tinha um fracote por ela? Mas enfim, são vidas, quando o Faria que voltou a ser colocado em Santarém, voltar, lá pelas férias da Páscoa, altura em que, está até já prometido pela D. Micá, vamos comer o melhor borrego no forno que se come em toda a região de Lisboa e Vale do Tejo, cozinhado especialmente para nós pelo Januário Pitinha, que é um alentejano dos quatro costados e ainda é dos que aquecem o forno a xerogases e ramos secos de oliveira e chapotas de azinho para fazer brasa para isolar a porta do forno, quando ele vier de férias, dizia eu, vou-lhe perguntar se é verdade aquilo da pequena, pois todos já estávamos a começar a admirar as camisas de marca, os blasers da Sacoor, as gravatas de seda (para falar a verdade a que usou no réveillon, era um bocado apanascada), os sapatos Carpelio, enfim, tudo do bom e do melhor, repito o que já tinha dito acima, que a viúva lhe orientava. Mas com este derivar, já me estava a esquecer que vos queria falar da Eduardinha. Há corpos que não foram feitos para serem criadas de servir. A Eduardinha, que é uma rapariga alta, terá talvez o seu metro e setenta e três, metro e setenta e quatro, usava uma farda preta que devia ser da outra, que era bem mais baixa, pois a saia ficava-lhe tão curtinha que deixava transparecer as rendas das meias brancas e até as molas do cinto de ligas, a blusa, preta também, estava-lhe bem apertada no busto deixando que os fartos seios com que Deus a brindou, realçados por um wonderbra branco, que se testemunhava pela parte superior da copa no decote da blusa, até pareciam querer sair-lhe da sua encapsulada indumentária. Ficava-lhe também a matar um aventalzinho branco, com bordado inglês do mesmo tecido que o cabeção. O mais interessante é que Eduardinha, fez há pouco uma plástica, colocou botox nas maçãs do rosto e nos lábios e maquilha-lhe primorosamente. Quando olhamos para Eduardinha, a lembrar os mais irreverentes desenhos de José Vilhena, não queremos saber para nada porque é que o Eduardo Aragão entrou, naquele dia, menos bem no salão de D. Micá ou se tinha jantado pataniscas de bacalhau com arroz de feijão, salpicado com coentros picados e decorado com quatro azeitonas novas. Quem é que quer saber disso?…   

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

186. As passas de D. Micá ou uma noite de Réveillon com fantasmas



Uma sala com pouco mais de vinte e cinco metros quadrados ostentava um bar, todo em mogno, fazendo um recanto onde algumas dezenas de copos se suspendiam de um teto incorporado e onde uma lanterna com lâmpadas de halogénio fazia refletir o brilho imaculado do cristal de chumbo. Nas prateleiras, garrafas com os mais finos whiskies, maltes de 30 anos, blendedes das mais diversas origens, alguns bourbons e vários irlandeses. Numa secção reservada aos nacionais, não escasseavam os Porto e os Madeira, alguns moscatéis de Setúbal, nomeadamente roxos e outros do Douro e, como não podia deixar de ser, o nosso bem conhecido Licor Beirão. Noutra prateleira perfilavam-se as cachaças, vodkas, runs e aguardentes velhas e mais umas quantas bebidas que nem vale a pena referir, tal é a diversidade de espirituosas que D. Micá faz questão que constituam recheio do seu famoso bar. Como era de se prever, estava reservado algum espaço para umas garrafinhas muito simpáticas de 0,25 l contendo leite magro com chocolate, um ex-libris da Fundação. Um sofá em forma de círculo e uma mesa de centro em pau-brasil completavam a mobília, com dois bancos altos junto ao balcão do referido bar.

Sentada num destes bancos, D. Micá, vestido vermelho comprido com uma racha lateral que surgia do tornozelo e terminava na anca, apesar dos folhos translúcidos, deixava ver as rendas das meias pretas. Nos pés os sapatos com salto de agulha de doze centímetros eram de verniz e o seu longo cabelo, penteado por Felisbela, a sua cabeleireira preferida do salão das Amoreiras, culminava em duas loiras tranças enroladas e cruzadas na testa como se fosse uma grinalda vitoriana. Nos pulsos, várias pulseiras de ouro e prata, em aros entrecruzados cujo blaisé do conjunto, fazia contraste com uma gargantilha preta incrustada de brilhantes Swarovsky e discretos brincos com aplicações de fino cristal. Na mão direita fazia girar, em gestos suaves, um copo em forma de flute, meio cheio de D. Perignon, ora cheirando ora degustando, com elegância, o seu conteúdo. A mão esquerda, com um anel solitário no anelar e um relógio Gucci com incrustações de diamante, deambulava de um lado para o outro ou em círculos, acompanhando o ritmo do conto com que nos tem vindo a entreter e que também nos brindou naquela noite de réveillon.

«De repente, como que por magia, a trovoada parou e nem mais uma gota de água caiu da negro cinzento dos céus. Penafiel sossegou em cima do tapete e Gatófio foi-se enrolar nas suas patas dianteiras. D. Bonifácio, tentou encetar o diálogo com Antonieta. Ou com o seu fantasma para se ser mais preciso.
- O que queres com essa caixa?
Fez-se um silêncio sepulcral. Penafiel rosnou. Gatófio nem se mexeu. D. Bonifácio, pacientemente, esperou uma resposta. Uma forte corrente de ar, de desconhecida origem, apagou o castiçal que estava em cima do aparador. Então uma voz cavada, com o timbre da outrora voz de Antonieta mas com um assustador vibrato, respondeu.
- São os teus restos.
Não se notou nenhum ar de perplexidade no rosto de D. Bonifácio. Bateu três vezes com a bengala no chão. Penafiel ergueu-se e espreguiçou-se. Uma buzina de carro escutou-se, vinda algures do portão de ferro. Um fogo-fátuo acendeu-se sobre a cabeça de Antonieta e Gatófio soltou uma gargalhada, uma humana gargalhada, talvez melhor dizendo, uma sobre humana gargalhada e o som de um violino, tocando uma música triste começou a encher o compartimento.
- O que queres de mim, Antonieta? – Perguntou, mantendo uma calma que ora parecia real ora se assemelhava a uma calma aparente.
- Tens de te confessar - disse-lhe Antonieta, e o som do violino foi agora substituído por cânticos gregorianos como se a mansão de D. Bonifácio fosse agora um enorme convento.
Gatófio voltou a rir-se e Penafiel ladrou-lhe. Gatófio esticou as quatro patas e elevou a cauda que, entretanto, parecia um escovilhão.
De novo se ouviu a buzina do carro, agora acompanhado de mais umas quantas buzinas de outros carros estacionados na ampla garagem da mansão. Antonieta sobrevoou o chapéu de D. Bonifácio e dirigiu-se à janela. A noite estava calma, mas Aristides estava com um apito na boca e fazia gestos como que a regular o trânsito. Uma música brasileira substituiu o cântico gregoriano.»

D. Micá calou-se. Pediu às quatro pessoas que a ouviam com atenção e interesse o desenrolar da fantasmagórica e, mais tarde, ver-se-á, arrepiante história de D. Bonifácio da Assunção, paciência, mas naquela noite ela não estava em condições de continuar a narração. Estava preocupada com outra coisa. Faltavam cinco minutos para a meia-noite e Eduardo Aragão ainda não tinha chegado. E se apesar do champanhe e de uma mesa bem farta, com leitão da Bairrada e camarões de Madagáscar, champanhe genuíno e algum, pouco, leite magro com chocolate, se Eduardo não chegasse antes das doze badaladas com a caixa de passas de uva sem grainha que ela lhe tinha encomendado, aquilo não era meia-noite digna de uma passagem de ano, não era nada. Mas antes que o anúncio da Raposeira ou da Coca-cola, do Óleo Fula ou da Aqua de Gio passassem nos écrans das televisões, interrompendo a contagem decrescente, a campainha da porta tocou.