Quando calcorreia os arquivos da cidade, do cartório para as igrejas, das igrejas para a Torre do Tombo, da Torre do Tombo para as câmaras municipais, o senhor Espinheira vai descobrindo coisas que, não só o espantam a ele, mas também a quem ele conta. A propósito de uma casita que recebeu de herança na baixa de Lisboa, mais precisamente na Rua dos Correeiros, foi lendo uns papéis por aqui e por ali, até que descobriu a abertura de um auto da Polícia Nacional de um crime que se tinha dado num sexto andar do número quarenta e três. Foi, casualmente, numa tertúlia dos confrades das iscas com elas que me falou do assunto.
O senhor Espinheira é um homem bastante reservado no que consta a matérias sobre investigação. Depois compila tudo e quando acha que já está na altura certa, publica. Naquele dia lembrou-se de me falar da coisa, segundo ele, por duas razões que não me pareceram muito acertadas. A primeira teria a ver com o meu voraz apetite por iscas com elas. A segunda, talvez mais trabalhada por ele, foi a do meu conhecimento da vida de Ismael Gusmán. E se não fosse intrigante ele ter associado o crime do número quarenta e três à tasca do Ismael, já me deixaria com a pulga atrás da orelha o facto de ele saber algo sobre o caso, uma vez que esse crime tinha sido inventado por mim, para apimentar as minhas histórias e as do meu amigo do peito, Ismael Gúsman, galego nato e criado em Lisboa. E fiquei a matutar com os meus botões se Ismael ben-Avraham existe mesmo e não é uma criação que fiz ao estilo (mal copiado) do que criaria a senhora Agatha Christie, se o homem é mesmo médico, se é judeu e se fuma puros charutos cubanos. E Ekatrina, e Isabela e Ismaelix?
Esta conversa com o Espinheira e o crime do número quarenta e três, sexto andar, onde foi assassinada Isabela, a corista italiana, com sete facadas, num ato de violência indescritível, está separada por mais de cinquenta anos e ainda hoje me causa tanta estranheza ter ocorrido, que desde esse dia que não tenho andado a bater bem. Porque seria que ele me veio falar daquilo com o falacioso argumento do meu prazer pelas iscas com elas? Ou terá ele tido conhecimento de que Isabela é uma personagem de ficção? Ou terá lido o manuscrito de Francisca? Ou será algum enredo ligado com a misteriosa senhora de Trás-os- Montes?
Quando voltar a encontrar o Espinheira vou-lhe dizer cara a cara, olhos nos olhos, sem qualquer receio de vir a ser desmentido, de que não há prato que eu mais deteste do que as iscas com elas. E que só estava nessa reunião dos confrades das iscas porque me enganei no andar. Até porque se notava logo que eu não tinha o chapéu da confraria e que o laço na camisa e os sapatos de verniz era o meu traje de gala para mais uma noite de Reveiilon.