sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

85. Ismael (10) - Feliz Ano Novo!


Quando calcorreia os arquivos da cidade, do cartório para as igrejas, das igrejas para a Torre do Tombo, da Torre do Tombo para as câmaras municipais, o senhor Espinheira vai descobrindo coisas que, não só o espantam a ele, mas também a quem ele conta. A propósito de uma casita que recebeu de herança na baixa de Lisboa, mais precisamente na Rua dos Correeiros, foi lendo uns papéis por aqui e por ali, até que descobriu a abertura de um auto da Polícia Nacional de um crime que se tinha dado num sexto andar do número quarenta e três. Foi, casualmente, numa tertúlia dos confrades das iscas com elas que me falou do assunto.

O senhor Espinheira é um homem bastante reservado no que consta a matérias sobre investigação. Depois compila tudo e quando acha que já está na altura certa, publica. Naquele dia lembrou-se de me falar da coisa, segundo ele, por duas razões que não me pareceram muito acertadas. A primeira teria a ver com o meu voraz apetite por iscas com elas. A segunda, talvez mais trabalhada por ele, foi a do meu conhecimento da vida de Ismael Gusmán. E se não fosse intrigante ele ter associado o crime do número quarenta e três à tasca do Ismael, já me deixaria com a pulga atrás da orelha o facto de ele saber algo sobre o caso, uma vez que esse crime tinha sido inventado por mim, para apimentar as minhas histórias e as do meu amigo do peito, Ismael Gúsman, galego nato e criado em Lisboa. E fiquei a matutar com os meus botões se Ismael ben-Avraham existe mesmo e não é uma criação que fiz ao estilo (mal copiado) do que criaria a senhora Agatha Christie, se o homem é mesmo médico, se é judeu e se fuma puros charutos cubanos. E Ekatrina, e Isabela e Ismaelix?

Esta conversa com o Espinheira e o crime do número quarenta e três, sexto andar, onde foi assassinada Isabela, a corista italiana, com sete facadas, num ato de violência indescritível, está separada por mais de cinquenta anos e ainda hoje me causa tanta estranheza ter ocorrido, que desde esse dia que não tenho andado a bater bem. Porque seria que ele me veio falar daquilo com o falacioso argumento do meu prazer pelas iscas com elas? Ou terá ele tido conhecimento de que Isabela é uma personagem de ficção? Ou terá lido o manuscrito de Francisca? Ou será algum enredo ligado com a misteriosa senhora de Trás-os- Montes?

Quando voltar a encontrar o Espinheira vou-lhe dizer cara a cara, olhos nos olhos, sem qualquer receio de vir a ser desmentido, de que não há prato que eu mais deteste do que as iscas com elas. E que só estava nessa reunião dos confrades das iscas porque me enganei no andar. Até porque se notava logo que eu não tinha o chapéu da confraria e que o laço na camisa e os sapatos de verniz era o meu traje de gala para mais uma noite de Reveiilon.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

84. Ismael (9) - Açúcar e canela


Lembro ainda dos carrinhos com rodas de madeira, dos índios e dos cowboys montados em cavalos de plástico, dos livros do pato Donald e dos seus três sobrinhos que me dava o Menino Jesus. Lembro-me do frio das noites de Natal que teimava em entrar pela frincha da porta da cozinha e do alguidar de barro onde a massa era batida e abafada. Não amor, com as tuas calças não. Isto é preciso força de homem. E depois de amassada a farinha, bem amassada com água quente e abóbora e um cálice de aguardente, apropriadamente fermentada e umas mãos fortes esmurrando-a e virando-a e, depois de se polvilhar com uma mãozinha de farinha seca, as cinco chagas de Cristo. Um pano branco, muito bem passado a ferro fará a primeira cobertura. Depois os cobertores e as calças de homem. Para levedar e a tornar fofa. À noite, bem à noitinha, a avô sentada em frente ao fogareiro com o óleo bem quente, que um salpico de água haveria de testemunhar a temperatura, esticava as filhós com as mãos e punha-as a fritar. Saíam loiras, fofinhas e bem cheirosas. Ainda hoje me lembro do cheiro daqueles fritos, num misto de aromas de abóbora com aguardente que perfumavam toda a cozinha. Depois eram temperadas com açúcar e canela. Nessa época não se bebia coca-cola e por isso o pai natal não aparecia pendurado nas varandas, nem a bater às janelas das casas. Naquele tempo, os bafos da vaquinha e do burro aqueciam o Menino em leito de palha enquanto Maria e José o adoravam no presépio. Num carreiro, desenhado com areia por entre o musgo, três reis, montados em camelos, seguiam a estrela que o meu pai colocava bem lá no cimo da árvore de Natal e, apesar de nós nunca termos visto neve, bolinhas de algodão penduradas no pinheiro mostravam que dentro de minha casa e apesar do calor da cozinha e do cheiro das filhós, do açúcar e da canela e das fatias douradas que a minha mãe já se preparava para fritar, mostravam que na minha casa também poderia nevar. Mãe, ainda falta muito para o Menino Jesus chegar? Perguntava eu enquanto olhava pelo canto do olho para ver quando é que o Menino deixaria a manjedoura onde dormia de cabelos loiros, muito loiros e bracinhos no ar para vir trazer os presentes à chaminé, até que, vencido pelo sono, já o sapatinho que há horas tinha nas mãos me pendia, era levado ao colo para a cama, com um beijinho e o aconchego dos lençóis.

Um dia relembrava as minhas noites de Natal com Ismael Gúsman. Uma lágrima corria-lhe no rosto. Diz que enquanto o neto cá morou até um triciclo lhe deu. Interrogava-se como é que seria o Natal lá longe para onde tinha emigrado. Depois, quando ficou só, às cinco da tarde fechava a tasca da Rua do Correeiros, já a noite começava a cair e, chegado à Quinta do Conde, comia uma sopa de couves, um naco de pão com qualquer cossita, como ele me costumava dizer, acendia o rádio transístor na mesa de cabeceira e adormecia, talvez ao som do Adeste Fideles. Ah é verdade, Sr. Constantino, pero não foi na noite de Natal, no!. En los Reyes como é o costumbre lá de mi terra. E falou-me de novo no triciclo.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

83. Ismael (8) - O manuscrito de Francisca


Seis anos Ismael Gúsman viveu com Isaura Peres. Francisca que adorava romances de amor não poderia estar mais feliz com este romance. Francisca chegou a morar no Porto. Filha do Alentejo quis o destino que, por força do trabalho do marido, um ilustre juiz de direito, tivesse de se deslocar para o norte do país. Não viveu aí muitos anos, o casamento não correu bem, pois o Dr. Castro Ribeiro era de mulheres, tendo decido rumar de novo a Sul. Mas regressar ao Alentejo não estava nas suas cogitações mais próximas. Nesse tempo grassava a fome e a miséria pelos campos alentejanos. Os jornaleiros alimentavam-se de toucinho cozido num caldo de água e acelgas e, se havia um naco de pão era porque o caseiro, ou o maioral do gado dispensava um pouco do que o patrão lhes dava. As pessoas emigravam para França e para a Alemanha que precisavam ser reconstruídas e havia trabalho. Quem cá ficava também não se fixava nos campos. É verdade que houve a campanha do trigo mas não chegava para todos. Francisca, que dela não possuía fortuna e como o Dr. Castro punha e dispunha, bem suportado por um regime que protegia os mais fortes, viu-se forçada a regressar com uma mão atrás e outra à frente. Ficará para mais tarde contar a vida atribulada de Francisca. Vem assim, a nossa alentejana, quando regressou ao sul, a fixar-se na Quinta do Conde. Foi aí que conheceu o meu amigo galego, Ismael Gúsman e o seu arrastar de asa à filha do sapateiro a jovem Isaura Peres, a quem todos chamavam Isaurinha bate-sola.

Naquele dia abafado de maio, trovejava e rezava-se a Santa Bárbara. Francisca precisava de ir à mercearia. Queria fazer uma sopinha e faltava-lhe o nabo. Sem nabo, para Francisca, sopa não era sopa. A mercearia do Sr. Rodrigues tinha de tudo. D. Francisca era vaidosa e até para ir à mercearia se aperaltava. Usava um carrapito muito bem composto com dois ganchos de madrepérola que o seu sobrinho Sebastião lhe tinha trazido de uma viagem que fez às Canárias. O sobrinho de Francisca era um belo rapaz, embarcadiço, tratava dos camarotes e das copas, ganhava para se governar. Só era pena ser manco, pois que se tratava de uma bela figura. Diziam que se tinha apaixonado por uma corista italiana e que andava na vida do mar para juntar um dinheirinho. Vestiu um vestido de chita às flores, calçou uns sapatos abertos, que mais pareciam sandálias, fino recorte a condizer com a sua anterior condição, colocou um cinto que lhe realçava a estreita cintura, pegou num pequeno cabaz de verga e um guarda-chuva, não fosse a trovoada lhe pregar uma partida e saiu.

Naquele dia na mercearia o encontro entre Francisca e Isaura foi tudo menos alegre. A filha do sapateiro estava disposta a abandonar o galego e Francisca ficara perplexa. Tão amorosos que eles eram. Depois, assim como se fossem duas grandes confidentes, veio Isaurinha bate-sola a confessar que soubera que Ismael tinha tido outra mulher, da qual nascera um rapaz, tal e qual a carinha do pai que até lhe puseram o mesmo nome e que, sempre que o galego estava com ela, ela se imaginava como uma substituta. Parece até que a moça era bailarina, amiga de uma tal Isabela que tinha sido assassinada uns meses atrás e a última coisa que Isaura queria era ver-se envolvida em crimes de sangue. Entrou Sebastião na mercearia, encharcado até á medula mas no seu tão inconfundível como harmonioso coxear, trocou olhares com Isaurinha, deu um beijo na testa da tia Francisca e pediu uma gasosa.

Quando regressou a casa Francisca colocou o nabo de lado. Pegou num bloco de apontamentos e gatafunhou umas frases. Juntou dois com dois mas não lhe dava quatro. Toda a história de Isaurinha bate-sola lhe cheirava a esturro a ponto de não ter acreditado nem  em uma única palavra? O que teria Isabela a ver com a mãe de Ismael Gusman Júnior? Porque é que o seu sobrinho andava a desencaminhar Isaurinha bate-sola se a sua paixão era uma bailarina do parque Mayer? O filho era tal e qual o pai mas quem seria a paixão de Ismael? Disse-me o Espinheira, bem recentemente, que apesar de toda a sua formação paleológica, uma das mais indecifráveis escritas era a do manuscrito de uma tal Francisca, da Quinta do Conde.

Eu era muito pequeno e nunca soube nada do que acima escrevi. Tive de inventar tudo para preencher mais um capítulo do meu livro. Mas fica bem haver histórias de amor, que com paciência desenvolverei, descreverei até a cor dos cortinados do quarto de Isaurinha Peres, a filha do sapateiro, do candeeiro de teto de Francisca, a qualidade das pantufas que Ismael usava em casa e os afagos que o bobby, o cão rafeiro, do marinheiro Sebastião recebia de cada vez que voltava de viagem. Mas agora só vos pretendo dizer que na tasca de Ismael Gusmán, que apenas comecei a frequentar já nos inícios dos anos setenta, pendurados numa parede, havia, como decoração, uma bigorna de sapateiro, duas sapatilhas de ballet e um ramo de hortaliça com dois nabos dependurados. Todas as semanas, um homem de bigode à Chalana, mas totalmente branco e com um sotaque de emigrante francês, substituía a verdura por outra mais viçosa.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Ismael (7) - Todo livro tem um tema, ou não...


Nunca falei ao senhor Ismael sobre o meu projeto de livro, embora já me tivesse passado pela cabeça que, se um dia eu escrevesse, ele teria como protagonista Ismael Gúsman. Conhecendo-o como eu o conheci, tenho a certeza que ele levantaria o avental azul-escuro para limpar o suor do pescoço, tiraria a boina e coçaria a cabeça. Depois perguntaria o porquê de ser ele. Conhecendo-o como eu o conheci, ele não gostaria de ser o protagonista mas apenas mais um, devidamente contextualizado. Seria aí que eu lhe diria que ele não estava sozinho. O seu pai Ismael Gúsman y Toledo, seu filho Ismael Gúsman Júnior, seu netinho Isamelito ou Ismaelzinho como também era chamado, os seus vizinhos, Ismaelix, Mendix  e Ismael ben-Avraham, mais o tio deste, Ishamel Baruch, Agatha Christie, Uderzo, Daniel Silva, Isabela, Ekatrina Smirnova, o Espinheira, a Fernandinha e até a D. Laurentina, para além de alguns amigos meus, entre outros, não esquecendo a misteriosa senhora de Trás-os-Montes e o inspetor Ismael Sacadura Flores e o coxo, fariam parte da história e, se me apetecesse, ao longo do pseudolivro, o tal que nunca escrevi mas que um dia, se me desse na real gana escrever, escreveria,  ainda apareceriam mais. Nessa altura, Ismael levantar-se-ia, iria buscar uns salgadinhos num pires de loiça de segunda, caqueirado nos bordos, dois copos grossos de vidro mas muito bem lavados, um canjerão meio de tinto, porque ele não bebe mas faz companhia e depois de acender um Português Suave sem filtro, cigarro a que ele se habituou depois de deixarem de ser produzidos os Provisórios, daria uma, vá lá, duas baforadas e dir-me-ia, veja lá xenhor Constantino em que é que me vai meter.

Postulado que Ismael Gúsman nunca soube deste seu protagonismo, assentemos no que ele me sugeriria para a minha virtual escrita ou como se diz hoje em dia nos meios intelectuais, para a minha putativa narração. Começaria com certeza por me propor que fossemos todos vizinhos, num só prédio, nos juntássemos em famílias tipo, os ixes eram todos franceses e viviam no segundo esquerdo, os escritores compartilhavam o apartamento do primeiro direito, D. Laurentina, seria a irmã mais velha da falecida mãe de Fernandinha e vivia com a sobrinha no rés-do-chão, Isabela e Ekatrina, já o sabemos, moravam juntas no sexto andar do número quarenta e três e assim sucessivamente. A misteriosa trasmontana ocupava a espaços um dos apartamentos do quinto andar. Eu dir-lhe-ia que isso não poderia ser, visto que, embora só agora tivesse sido publicado, já em mil novecentos e cinquenta e três, José Saramago tinha escrito Claraboia com a mesma estrutura. Pois bem alvitraria ele que, sendo assim, ainda teríamos a hipótese já que, tirando as bailarinas, todos moravam na Quinta do Conde (onde aquelas até poderiam ter morado no início), pôr todos a viver na mesma rua, uma rua, sei lá, que aos poucos se fosse extinguindo. Claro que isso seria como que plagiar o Mário Zambujal que já tinha escrito Histórias do Fim da Rua sobre o mesmo tema. Como tenho a certeza que ele encontraria uma solução, sugerir-me-ia que escrevesse um livro policial, “O crime do número 43” em que, depois de muitas cenas canalhas, o inspetor Ismael Sacadura Flores em fim de festa, reuniria todos na tasca da Rua dos Correeiros e, um a um, iria divulgando os motivos pelo qual ele ou ela poderia ter sido o assassino de Isabela e ao mesmo tempo ilibando-os até que, perante as evidências, quiçá Fernandinha, ou a misteriosa senhora de Trás-os-Montes ou, porque não, o respeitável senhor Ishmael Baruch, afinal um agente da Mossad infiltrado em tabernas, teatros revisteiros e cabarets, acabasse confessando que teria morto à facada à pobre corista italiana. Claro está que Mrs. Christie e o seu inseparável Poirot já o fizeram bem melhor e nem a rua dos Correeiros é o Nilo, nem o comboio do Rossio é o Expresso do Oriente e eu ousaria propor que, com tantos personagens, bastaria encontrar umas musas inspiradoras, uns velhos mal dizentes e uns personagens a atirar aos descobridores e escreveria um poema épico. E se a inspiração fosse muita, mas muita mesmo, dividi-lo-ia em cantos. 

Seria aqui que o meu amigo galego me daria uma palmadinha nas costas e me diria sem pestanejar Oiça lá xenhor Constantino, eu tenho muita conxideração por voxemecê, mas não quer ir chatear o Camões? E acabaríamos os dois com o resto do vinho que ainda ficara no canjerão.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

81. Ismael (6) - Boina, dia da mãe e sócio do Benfica


Estava a terminar o ano de mil novecentos e sessenta e seis. Ismael Gúsman tinha nascido em trinta e um e vindo com o tio para Lisboa no fim da guerra civil, apenas com oito anos de idade. No dia oito de dezembro fazia o que fazia em todos os domingos e dias santos. Vestia a sua melhor camisa, o fato preto de três peças e os sapatos de verniz que eram bem limpos e abrilhantados com azeite na véspera. Saía cedo de casa e, como a D. Laurentina, uma trintona bonita de cabelos negros e olhos cor de azeitona, tinha ficado sem o seu homem na queda dum andaime nuns prédios altos que andavam a fazer lá para Lisboa, como ela dizia, ele acompanhava-a à missa em Azeitão. Hoje era dia da mãe e Ismael, que já não se lembrava da sua, dizia mesmo que não sabia se a tinha conhecido, iria rezar-lhe três Avés Maria e um Padre Nosso. Depois apanhariam a carreira e iriam comer uma caldeirada a Setúbal.  Foi nesse momento, embrenhado nestes pensamentos, que Ismael Gúsman se lembrou que hoje não podia ser, que hoje não poderia acompanhar D. Laurentina à igreja.

Tinha sido no início do mês passado que o senhor Augusto parou lá pela tasca, num dia que fora buscar mercadoria aos armazéns de S. Domingos a fim de abastecer a sua venda de roupas. Carregado com dois pesados embrulhos de roupa interior e meias angorá, que se vendiam muito bem naquela época, tinha descansado os pulsos lá no senhor Ismael, saboreado um pastelinho de bacalhau superiormente confecionado pela Fernandinha e bebido um tintinho do Cartaxo. Depois falou-lhe que os garotos iam ser batizados na igreja de S. Tiago em Almada no próximo dia oito e que fazia muita questão que ele estivesse presente. A sua mulher, que na altura estava grávida de oito meses e que previa que o mais novo nascesse lá para Dezembro, insistiu muito e os miúdos lá fizeram a doutrina e agora, com doze anitos o mais velho, era já hora de serem batizados. E haveriam de fazer a primeira comunhão, se Deus quisesse. Pela amizade que tinham um pelo outro não poderia faltar ao batizado dos garotos.

Quando o meu pai conheceu o Ismael num torneio de chinquilho que o Pombalense foi fazer à Quinta do Conde, estava longe de vir a imaginar que o seu filho mais velho se iria tornar um amigo do peito de Ismael Gúsman. Nesse dia Ismael, que não se esqueceu de tirar a boina galega ao entrar na igreja, rezou pela mãe dele. Assistiu ao meu batizado, partilhou do nosso lanche e à noite bebeu um bagacinho enquanto dava um abraço ao meu pai pelo nascimento do meu irmão mais novo que resolvera vir ao mundo naquele mesmo dia. Tienes alí más um xócio para o Benfica, Augusto! O meu pai sorriu e, sabendo que a minha mãe, embora não tivesse assistido ao nosso batizado estava bem e feliz com o seu novo rebento ao lado, virou de um só gole o seu copinho de aguardente.

Constou-nos mais tarde que no regresso à Quinta do Conde, o Ismael, por não a ter levado à caldeirada, passou a noite toda em casa de D. Laurentina a pedir-lhe perdão.

domingo, 4 de dezembro de 2011

80. Ismael (5) - Bufos


A primeira pergunta que lhe fiz foi que cara é essa e ele quase me fulminou com os olhos. Ismael estava na ombreira da porta, o espanta-espíritos batia-lhe na cabeça sem que isso o incomodasse, um cigarro português suave sem filtro no canto da boca a dar mostras de que se iria apagar. Tirou a prisca da boca apertou-a entre o polegar e o indicador e jogou-a, como se fosse um berlinde, para o pavée da rua em frente à porta da tasca. E a culpa foi toda sua, senhor Constantino!

Quase me dava um baque quando entrei na tasca do galego. Parecia que tinha havido uma revolução. Mesas e cadeiras desarrumadas, viradas de pantanas, umas ainda caídas sobre as outras, garrafas partidas pelo chão, uma grande mistura de odores de licores e vinhos. Só uma garrafa de ginginha se mantinha intacta no seu lugar costumeiro entre a máquina registadora e o prato dos carapaus de escabeche. Nas prateleiras nada, as gavetas de um pequeno aparador onde Ismael guarda toalhas de mesa, talheres e pratos, caídas e despejadas, e os cacos do que outrora foram pratos de loiça esparramados pelo chão. E sou eu que tenho a culpa, sr. Ismael? Tenha lá paciência, mas não dei por nenhum tremor de terra e mesmo que desse por isso não sou eu que comando a Natureza. E foi então que o galego me explicou tudo. Aquele homem de fato cinzento e chapéu que se senta sempre na mesa do canto. Sim esse mesmo, aquele que todos dizem que é da PIDE.

(o meu pensamento voou; o pai do galego tinha morrido na guerra civil de Espanha, mas isso tinha sido há uns bons trinta e três para trinta e quatro anos; verdade que o D. Ismael de Gúsman y Toledo era republicano, mas o seu tio materno, o que o trouxe para Lisboa, era um devoto falangista e venerava o caudillo; e tantos anos, mas tantos anos depois, a mais a uma criança que chega aqui com oito anos de idade, não o haveriam de conotar com nada; cá para nós, que ninguém nos ouve nem lê, ele nunca se declarou mas eu acho que Ismael era do contra; mas isso era eu que era muito íntimo do galego; como é que eles iriam desconfiar?)

Sabe o que foi, sr. Constantino? Foi o seu livro. Sim o seu livro, aquele de capa cinzenta que você costuma andar sempre com ele debaixo do braço. Mas vossemecê tem necessidade de andar por aí com autores russos a exibir-se? E o pior é esquecer-se dele em cima da mesa. Vou-lhe contar, o tipo de fato cinzento e chapéu, pegou no livro, levou-o com ele, ainda o chamei, mas nada. Não era passada meia hora, chegaram outros, ele não, ele desapareceu, não deve querer que saibam que é bufo, revistaram-me tudo e perguntavam-me onde é que eu escondia os outros, onde que estavam os livros do Lenin e do Stalin?

Se não fosse trágica a situação do Ismael eu ter-me-ia rebolado a rir. Os desgraçados sacaram-me o Piskonov, o meu livro de matemática e deram cabo da taberna ao galego. Divinas inteligências. E ainda por cima tive de comprar um novo, porque àquele nunca mais lhe pus a vista em cima.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

79 - Ismael (4) - Oito em ponto.



O crime do número quarenta e três continuava por resolver. Aparentemente, quem poderia ajudar a polícia estava longe de o querer fazer. Desculpa atrás de desculpa, ia-se furtando a contar o que viu e também o que todos sabem que ouviu. A única coisa que se sabe ao certo é que no sexto andar, morava uma italiana, corista no Parque Mayer, que veio a ser encontrada morta com sete facadas fatais. A crueldade do crime foi tanta que o assassino não se dignou sequer tirar a faca do corpo da vítima. Todos sabemos quanto nos anos cinquenta era complicado tirar impressões digitais, compará-las com os registos. Se a pessoa que se dignou esfaquear a corista não possuísse cadastro, então muito mais difícil seria, se não mesmo impossível, descobrir o criminoso ou a criminosa. Ismael ben-Avraham fez sair com toda a pujança mais uma baforada do seu puro havaiano e foi logo avisar, de seguida, o detetive de que com ele não contassem. Se lhes não servia a história de que tinha estado a assistir a um jogo de futebol nas bancadas, então que se danassem. E virando-se para o velho tio que nesse dia tinha combinado ir jantar com ele uma shawarma, provar um húmus e principalmente deliciar-se com um faláfel de grão-de-bico, como só o Ismael ben-Avraham cozinhava, virando-se então para o tio, perguntou-lhe se não ia um copinho de vinha branco.

Quando entraram na tasca de Ismael Gusmán, o meu amigo galego ao ver o velho tio de Ismael ben-Avraham curvou-se numa vénia como se estivesse perante o rei da Abissínia, neste caso, mais propriamente, do rei de Israel. Tratou imediatamente de lhe servir um branco fresquinho de uma produção caseira, que um amigo da Charneca da Caparica lhe arranjou. E ao ouvido do velho Ishmael Baruch, pediu-lhe, não diga a ninguém. Ao fim de algumas palavras de circunstância sobre o estado do tempo e de conferirem os números da Lotaria Nacional, Ismael Gusmán puxou para a mesa o nome de Isabela Sardeli, a corista que tinha sido assassinada, uma semana antes, no sexto andar do quarenta e três. O velho pediu-lhe duas codornizes mal passadas e o sobrinho, para não fazer a desfeita ao tio, mandou vir para ele também, mas apenas uma só, desculpando-se que o húmus que lá estava em casa era para se comer. Mas pouco adiantaram. No entanto, não foi sem um olhar cúmplice, quiçá malévolo que olharam todos ao mesmo tempo para o tipo de bigode branco, mas com um corte à Chalana que acabava de entrar.

Nessa noite, Ismael Gusmán não teve uma noite descansada. Custou-lhe a adormecer porque o nome de Ekatrina Smirnova não lhe saia da cabeça. Com certeza que a estudante de bailado na Fundação, que tinha vindo para Portugal ao abrigo de um protocolo assinado com o Bolshoi, sendo companheira de quarto da italiana não podia ignorar, como sempre o informou, de tudo o que se tinha passado. Mas pior para os seus pensamentos e conjeturas era a ligação de Ismaelix a Ekatrina. Ali havia coisa. Na manhã seguinte a taberna abriu às oito em ponto, como era costume.

domingo, 27 de novembro de 2011

78. Ismael (3) - O fado


Oiça cá senhor Constantino. Você gosta de fados? Esta pergunta foi-me feita por Ismael Gusmán, com o seu sotaque galego que eu vou deixar de reproduzir para não me enganar nas trocas de ésses por xizes e por jotas ou por outras letras. Respondi-lhe que era um verdadeiro fã e que não só da rainha Amália, mas também da sua irmã Celeste Rodrigues, da Lucília do Carmo, do Alfredo Marceneiro, da Maria Teresa de Noronha, da Fernanda Maria, do Filipe Pinto, da Hermínia Silva, do António dos Santos e outros que referi e que, a esta distância de tantos anos decorridos, já nem me lembro muito bem. O galego, coçou o queixo, ajeitou o avental azul-escuro, pegou num pano e limpou o suor que lhe escorria do pescoço. Pediu-me para me sentar ao lado dele e meio envergonhado, perguntou-me, Diga-me cá senhor Constantino, mas diga-me com sinceridade. Vocemecê acha que a minha tasca, a cheirar a iscas com elas e a passarinhos fritos tem classe para receber esses famosos nomes que me acabou de enunciar? (isto tudo com um sotaque galego que nunca perdeu, apesar de ter vindo em garoto para Lisboa).  Como estava com pressa, ia ter uma aula de hidráulica a que não podia faltar, levantei-me, dei-lhe uma palmadinha num ombro e disse-lhe que ele não se preocupasse que eu trataria de tudo.

Este episódio passou-se em 1976 e a maioria dos fadistas de quem lhe falei eu só os conhecia mesmo de ouvir cantar na rádio, mas o Ismael andava com aquela mania que a taberna dele tinha de passar a ter fados. Em plena baixa lisboeta, não só era tradição mas também poderia ser a tábua de salvação para um negócio que começava a definhar. Principalmente à noite, a tasca, às nove horas, já não tinha freguesia. Outros tempos. Mas se eu prometi ao meu amigo galego que ia tratar de tudo, tratei mesmo.

Quando lhe apareci com um enorme cartaz que um primo meu me fez o favor de me fazer numa tipografia que tinha em Cacilhas, anunciando, Grande Noite de Fado Vadio na Tasca do Galego, Rua dos Correeiros etecetera e tal, até as lágrimas lhe vieram aos olhos. É claro que não contratei nenhum daqueles monstros sagrados da arte de bem cantar a lisboeta canção, mas falei com uma meia dúzia de pessoas que conhecia de outras fadistagens e que davam um jeito, no Mouraria, no Menor, no Cravo, no Caldas, no Vianinha, no Pedro Rodrigues, no Marceneiro, no Esmeraldinha e noutros estilos que o pessoal aprecia, com um bom copo de vinho tinto e uma posta de bacalhau assado. Entretanto reconheço-lhe uma cara de preocupação. E as guitarras, sr. Constantino, e as violas? Olhei para ele e dei uma gargalhada.

Às nove e meia da noite do dia vinte e um de Setembro de mil novecentos e setenta e seis, os trinta e dois lugares da tasca do Ismael Gusmán estavam todos ocupados. Com a casa já à média luz, com um amigo meu de origem judaica chamado Ismael Pinheiro, sobrinho do nosso conhecido Ismael ben-Avraham,  na viola, e um quarentão com um farto bigode branco e uma trança a cair-lhe no meio das costas na guitarra, trinavam os acordes de Lisboa à Noite. Ismael  Gusmán, fez um ar solene e clamou Silêncio que se vai cantar o fado.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

77. Ismael (2)


Se não se notassem as incoerências, o meu livro contaria as aventuras e desventuras de um famoso desconhecido que um dia apareceu na Quinta do Conde. Cabelo comprido e quase branco, um bigode à Chalana, via-se sempre acompanhado por um amigo do porte físico do Fernando Mendes, aquele apresentador televisivo que é muito engraçado a fazer teatro. O meu protagonista, a quem para facilitar, apesar de ter um nome pomposo de leitura difícil e todo em francês, seria no livro chamado de Ismaelix e o seu amigo, para não se confundir com o referido ator, seria conhecido apenas por Mendix. Mendix entraria uma ou duas vezes em alguns episódios em que se tivesse de recorrer ao trocadilho ou de levantar pedras com os braços atrás das costas. Ismaelix, ainda não o disse, aparece na Quinta do Conde pela mão de um avô materno, que viria a morrer de uma trombose, num dia em que foi dar milho aos pombos no Terreiro de Paço. Aliás, o senhor Bernard Ismaelix, avô do nosso herói, escolheu a Quinta do Conde para morar, porque naquele tempo toda a margem sul lhe pareceu um deserto. E sendo ele um pied-noir, descendente de uma família magrebina que se instalou em França, num bairro de lata nos arredores de Paris, mais propriamente no dixseptième (tendo mais tarde vindo a mudar-se para um sótão, vivendo em concubinato como uma concièrge de um prédio de seis andares lá para os Champs-Elysées), dizia eu que, dadas as origens, nada melhor do que escolher um deserto para habitar. Não se previa construir por ali nenhum aeroporto nem novas travessias, se bem que à data em que ele chegou a Portugal, poucos dias depois de terminada a segunda grande guerra, não houvesse nenhuma ponte que unisse Lisboa à margem sul. Mas não seria do senhor Bernard Ismaelix que o meu livro se ocuparia mas sim do seu neto Ismaelix, o tal com bigode à Chalana que um dia ainda viria a encontrar e a sentar-se ao lado de Ismael ben-Avraham com quem, apesar do incómodo do cheiro dos charutos, haveria de festejar abraçado, o quinto golo do Benfica, marcado pelo Artur Jorge num jogo contra a Académica e que também usava um bigode à Chalana. Assim mesmo, com mais de noventa mil a assistirem nas bancadas, Ismaelix e Ismael ben-Avraham encontram-se no Estádio da Luz e ainda dizem que não há coincidências.

No entanto, teria algum receio de vir a dar no meu livro muito protagonismo a estes dois personagens, um deles descoberto algures num livro de Christie, médico de profissão, como todos sabem e que fuma cubanos e outro, algures num quadradinho de Uderzo, a chamar maluco a todos os que falassem latim com sotaque do sul da Itália. Até porque o meu protagonista é mesmo o meu amigo galego e foi ele quem me contou lá na taberna da rua dos Correeiros, num dia em que não havia nada interessante de futebol para falar e enquanto eu comia uns carapauzinhos de escabeche, que às vezes apareciam lá dois tipos, um judeu pela certa, pois vestia sempre roupa preta e camisa branca com sobrecasaca e chapéu e tinha umas barbas compridas como as de um rabino e outro, de bigode farto e branco e com uma trança, também branca a cair-lhe pelas costas. Eu até lhe disse, Oh Ismael, você anda a ler muita bonecada, ao que ele me respondeu, se calhar são ciganos. E voltou a encher-me o copo de vidro grosso com um vinho tinto que era de estalo.


terça-feira, 22 de novembro de 2011

76. Ismael (1)


Tal como Agatha Christie com o seu Poirot, Uderzo com Asterix ou, mais recentemente, Daniel Silva com Gabriel Allon, também eu sempre sonhei em ter Ismael Gusmán como o protagonista das minhas estórias. Há no entanto algumas diferenças substanciais e inultrapassáveis entre o meu projeto e o dos citados ou outros que poderia ter referido. A principal é o engenho e a arte. Referi uma mestra da literatura policial, um colosso das histórias aos quadradinhos e uma das principais figuras da escrita de romances de espionagem e suspense. Nunca chegarei aos seus calcanhares, mas não custa nada tê-los como referência ou melhor, tê-los como mentores. A segunda é a circunstância. Os personagens de Christie, de Uderzo, de Silva são personagens de ficção, criados nas suas mentes brilhantes, desenvolvidas com desmesurada genialidade. Ismael Gusmán, não. Ismael é real e eu conto histórias reais de gente real.

Conheci o Ismael há mais de cinquenta anos e podia aqui retratá-lo pormenorizadamente, descrever a sua vida tim-tim por tim-tim, explorar-lhe os gostos e as aversões, os amores e os ódios, a idas e as voltas, os altos e os baixos, as alegrias e as tristezas, os humores e as cabisbaixices, as vitórias e as derrotas, as mulheres que teve e as que o rejeitaram. Ismael Gusmán falava comigo pelo menos uma vez por semana, tinha sempre uma história para contar. Quando veio da Galiza, mão dada com um tio, irmão de doña Pilarxita, sua falecida e saudosa mãe como sempre se referia a ela, dormia num enxergão de palha no saguão da taberna que o tio tomou de renda na rua dos Correeiros, em plena baixa Lisboeta. Quando o conheci, o Ismael já estava quase nos quarenta, de avental azul escuro apertado na barriga e sem peitilho, servia copos de três e lombinhos de porco na chapa enquanto me olhava, eu de moleskine e esferográfica bic entre os dedos. Porque as tardes eram mais calminhas, conversávamos enquanto eu lhe lia o Mundo Desportivo e foi o Benfica que nos uniu. Havia de ter visto xogar o Xulinho e o Roxério Pipi, sr. Constantino, dizia-me ele que nunca perdeu o sotaque galego, apesar de ter chegado a Lisboa com oito anos de idade. E comentávamos as fotografias do Zé Henriques em felino voo para uma bola castanha de catechu enquadrada com o ângulo dos postes da baliza. Depois abanava a cabeça e dizia que não tinha a certeza se o nosso Zé Gato seria capaz de defender assim as bolas do Valadas.

Se eu fosse Agatha Christie, o meu Ismael seria, provavelmente, um médico reformado que se sentava na tasca do galego com um charuto na boca, que o tio dele, um judeu estabelecido no Chiado, importava de Cuba e que lhos fornecia a um preço especial por reconhecimento dos cuidados que ele tinha tido com a sua filha mais nova que sofria de tísica, quando entraram em Portugal refugiados da Polónia. Ismael não seria Gusmán, mas sim Ismael ben-Avraham mas leria do mesmo modo o Mundo Desportivo. Seria arrolado como testemunha do crime que se passou no quarto andar do número quarenta e três e apesar do alibi que inventou para se livrar de testemunhar e que, por sinal, tinha fornecido ao Inspetor Zé Gato, de que estivera a assistir, no campo das Amoreiras, ao jogo do Benfica com o Carcavelhinhos, ao lado do seu amigo Valadas, não o iria liberar de ter de depor, pois nem o Carcavelhinhos já existia, nem o Benfica jogava mais no Campo da Amoreiras. Isso o meu lsmael, o galego, sabia-o bem, pois ao homem do balcão e avental azul escuro só a saudade de ver jogar o seu Deportivo superava a paixão pelo Glorioso. Ismael ben-Avraham já tinha, ele também, relegado para segundo plano a sua quase obsessão pelos puros havaianos, face às cores papoilares das camisolas dos seus ídolos. Mas não posso ficcionar, afinal o meu Ismael nem é judeu, nem vive numa pensão da Rua do Alecrim, mas é, porém, efetivamente galego, mora na Quinta do Conde que é, à data, quase uma aldeia isolada. A única coisa que ele tem medo mesmo é que o céu lhe caia em cima da cabeça. Quanto ao vinho tinto que serve em copos de três, não bebe nem uma gota. Disse-lhe o tio, mas ele não sabe se é verdade, que quando era bebé caiu dentro de um pipo na casa dos seus avós. Um seu antepassado, Jacques Ismaelix, que era o marido da parteira, seria o único capaz de o confirmar mas já tinha morrido pelos finais do século XIX. Só se ainda existisse algum testemunho escrito na Igreja de Goscinny, sua terra natal.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

75. Afinal o que é ser ignorante? Inculto? Burro?


Qual é o animal mais feroz que existe? Sem hesitação respondeu, É o galo!

A minha saudosa avó Emília nasceu e cresceu na serra algarvia. Os seus pais, gente do campo, bisavós que nunca conheci, eram agricultores. Levavam quintas de renda e outras courelas de sua propriedade. A vida ia-lhes correndo bem. Dos vários filhos, os rapazes iam estudar. As raparigas ficavam em casa. Era preciso cuidar da mãe e fazer o jantar para os homens. E a ceia. Aos domingos passeavam de charrete. Vestidos compridos, a tapar o tornozelo porque as meninas não eram umas quaisquer. Chapéu na cabeça e bonitos sorrisos. Em casa, além dos bordados em telas de linho, havia a cozinha e o quintal. Havia patos, coelhos, galinhas e galos. Não havia luz elétrica, a água era do poço. A televisão não tinha ainda sido inventada e os jornais não chegavam à serra. No rádio a pilhas, ouvia-se a Emissora Nacional. Os patos, os coelhos e as galinhas eram mansos.

Um dia destes, já lá vão uns bons sete anos, entrei no café da minha rua. Estava com pressa, pedi uma bica e dei uma olhada ao jornal do dia. Esqueci a pressa face à estupefação perante aquilo que lia. Daí a dias ir-se-ia comemorar o trigésimo aniversário da revolução do vinte cinco de abril. Os rapazes e raparigas entrevistados não tinham ainda trinta anos. Nasceram todos depois de 1974. A televisão é (era também há sete anos atrás) a cores, tem quase cem canais. Não moravam na serra, tinham frequentado as escolas secundárias, sabiam que havia animais mais ferozes do que o galo. Só não sabiam o que tinha sido a revolução do vinte cinco de abril.

Provavelmente já terão ouvido esta história apesar da juventude de alguns de vós. Mesmo que a conheçam repito-a porque haverá alguns dos leitores destas histórias que não estarão a par. Eu também a ouvi contar, uma vez que, o senhor faleceu no ano em que eu nasci. Sir Alexander Flemming tinha "acabado" de descobrir a penicilina. Um dos seus périplos, para conferências e divulgação, passava por Portugal e Sir A. Flemming chegava, aparentemente, triunfal a Santa Apolónia. Uma enorme multidão enchia o cais e uma banda de música, tchim pum, tchim pum, tocava a plenos pulmões e à força de toque de caixa. O próprio cientista estava abismado com o exagero da receção. Quando o comboio parou, todos se precipitaram numa corrida infernal mas passaram por Sir Alexander como cão passa em vinha vindimada. Nem sabiam quem era. Ao mesmo tempo a Seleção Nacional de Hóquei em Patins (ockey no tempo em que se deu a ocorrência) chegava, após mais uma retumbante vitória sobre a vizinha e rival Espanha, ganhando mais um título mundial. Os nossos jornalistas, da Emissora Nacional, já se vê e dos jornais da época, uns de microfone em punho outros de bloco e caneta, entrevistavam o selecionador, os jogadores e principalmente os dirigentes, gente fina afeta ao regime. Também muitos deles não sabiam sequer o que era a penicilina.

Se houvesse televisão a cores e outras divulgações, talvez a minha saudosa avó Emília tivesse ganho aquele concurso da telefonia. É que já tinha respondido certo a duas perguntas anteriores. E não. O galo não é o animal mais feroz que existe.

domingo, 13 de novembro de 2011

74. Antes de...


De novo inquietação. Um enorme afluxo de gafanhotos aparece de entre o nevoeiro e esbarra-se contra uma parede de faz-de-conta. Para lá do mundo não há nada, só o espaço dos gafanhotos. Um a um parecem querer se levantar mas logo uma rajada de Sol penetrante os cega. Ele assustou-se e escondeu-se por detrás do arco-íris não sem ter sido perseguido por um gafanhoto manco que troava de cada vez que a perna de pau assentava no soalho. Foi atendido por uma funcionária de uma secretaria hospitalar mal disposta e não menos mal-educada, enquanto uma criança de tenra idade relatava acontecimentos do futuro. De novo inquietação. Na sala de espera, indiferente aos cardumes de atum que invadiam o estúdio, um apresentador de televisão,  de fato e com a gravata a condizer, tocava uma guitarrada e um equilibrista de pijama, do cimo de uma bola gigante contava gafanhotos. Um esfigmomanómetro circulava, primeiro em pequenos círculos e depois um pouco maiores, como se quisesse desenhar uma casca de caracol e o relógio aproximava-se vertiginosamente do meio dia. Um gafanhoto maior do que o habitual insistia em vestir um colete à prova de balas, enquanto o Presidente da Junta discursava para uma multidão de mais de dois milhares de insetos e aracnídeos. Estava exausto e ofegante. Nunca uma corrida de bicicletas o tinha extenuado tanto, nem pelos corredores do hospital, nem no estúdio de televisão, nem na pista de circo, onde se tinha esquecido do palhaço, nem a caçar gafanhotos. Provavelmente àquela hora já o palhaço teria almoçado. Pensou naquele café que não bebeu e nas formigas que subiam pelas calças do Presidente da Junta. Sorriu uma, duas vezes e quando, por fim, adormeceu já levava com ele umas boas três horas de sonhos. Não voltou a ver o equilibrista por detrás do arco-íris mas já não se inquietou.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

73. Omo lava mais branco


Aquela iria ser a mãe dos seus filhos. Para o Joaquim Colaço, o Quim , não havia qualquer sombra de dúvida. Bonita e elegante vestia bem, embora parecesse não ter um vasto guarda- roupa, gostava de usar aquela saia plissada anos cinquenta e uma blusa de chita vintage às flores, com que se costumava apresentar nos bailes da sociedade aos domingos e, um vez por outra via-se com um vestido de organdi, não muito justo mas que, ainda assim, lhe fazia realçar as curvas, empinar os glúteos e sobressair o bonito peito que um soutien, onde era possível descortinar uma sensual renda de cetim, melhor o enaltecia. Para o Quim, sei-o, terá sido amor à primeira vista.

O Quim era um galã, moda antiga, muito influenciado por Errol Flyn, usava um bigode finíssimo que lhe embelezava o sorriso e, de quando em quando, deixava crescer uma pequena pera que o assemelhava ao RobIn Hood. Aliás, o Quim chegou durante os tempos da adolescência a ser mesmo alcunhado de Joaquim dos Bosques. Quando o viram de braço de dado com Marianinha, ela de cabelo ondulado, apanhado em cima como que fazendo uma coroa, vestindo um vestido aveludado em bordeaux, que nunca ninguém lhe tinha visto antes, qual Olívia de Havilland e ele com um sobrepeliz de pele de vaca e brilhantina na cabeça, pareciam um casal por detrás da claquete de  Michael Curtiz. Mas a surpresa não era a forma como se apresentavam, embora o vestido de Marianinha fizesse um vistão, nem como cuidavam e penteavam o cabelo. O que causou surpresa em todo o bairro, conhecidas que eram as constantes recusas de Marianinha e a vida um bocado cabeça ao vento e desbragada do Quim, foi o facto de se encontrarem juntos. Quim tinha levado a sua avante. Mas como em todas a histórias que conheço e que vos tenho aqui contado não há bela sem senão, quando se oficializou o namoro, Quim foi autorizado a frequentar a casa de Marianinha, todos os dias da semana exceto à quinta feira. Quinta feira era o dia da barrela e a porta de casa de Marianinha não se abria para ninguém.

A primeira questão se pôs a Quim era o que seria esse tal dia da barrela. Ele conhecia vários dias famosos, o dia do trabalhador que naquele tempo não era feriado, mas que sempre que coincidia com um fim de semana se comemorava com idas ao campo e piqueniques, o dia de Natal, que sempre foi comemorado em sua casa com bacalhau e filhós, o dia do pagamento da renda de casa, que calhava sempre a dia oito de cada mês, mas do dia da barrela ele nunca tinha ouvido falar. Quando, naquela quinta feira, a curiosidade superou o compromisso, Quim bateu, como de costume, três vezes na aldraba do portão. Marianinha nunca se sentiu tão encavacada e sem soluções. Ainda procurou um lençol para se cobrir, mas sem qualquer sombra de êxito. Afinal de contas, era o dia da barrela e toda a roupa da casa estava a lavar. Num desespero, enrolou-se na organza do cortinado da sala e abriu a porta ao seu Robin. Quando o Joaquim Colaço deparou com toda aquela transparência viajou até à floresta de Sherwood e nadou nu nos lagos de Nottingham.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

72. Uma história sem patos



Era uma vez… poderia muito bem ser assim que eu começasse este pequeno conto. Afinal de contas quem é que nunca contou uma história, aos filhos, aos netos ou aos sobrinhos que não tenha começado por era uma vez? Mas não, não vos vou contar assim, porque nestas histórias, rara é a vez em que o sapo não se transforma em príncipe, casa com a princesa e vivem felizes para sempre. Malogradamente hoje, a minha história não tem um final feliz.

Quem conta um conto tem de lhe acrescentar um ponto, pois não é verdade que é assim que o nosso povo diz? E eu hoje atrevo-me a dizer que este de hoje já terá muitos pontos acrescentados pois, ao contrário do que costumo relatar no que aqui vos escrevo, a estes factos não assisti. Contou-me um amigo meu, que ouviu contar à mulher dele que tem uma prima que, por sua vez, é muito amiga da protagonista, que se chama Maria Inácia. Direi eu, em tom exclamativo, que raio de nome haviam de ter dado a uma moça em pequena, que ainda por cima ainda é jovem! Maria Inácia era uma cunhada da minha avó que, se fosse viva, estaria agora com os seus cento e vinte anos. Por aí. Mas para não pensarem que exagero, a outra Maria Inácia que conheço é uma senhora, mãe de um vizinho meu que se reformou agora e que, segundo creio, já não terá sido mãe muito nova. Por isso eu digo que a moça se deveria chamar Patrícia, Vanessa ou vá lá Sandra. Mas não, ela é Maria Inácia e como Maria Inácia aqui ficará registada.

Pois esta mulher tinha e parece que ainda tem um fétiche que é comum a muitas mulheres e que eu, se me permitem fazer um juízo de valor, não vejo mal nenhum nisso. O seu marido, o Salvador (cá está um nome que voltou a estar na moda), é que não estava pelos ajustes. Cada vez que a Maria Inácia se lhe aparecia com o seu sorriso número trinta e quatro, já ele sabia que ela tinha comprado mais um par de sapatos. A sorte do orçamento familiar é que, segundo a prima da mulher do meu amigo afirma e que ainda não o apresentei mas que se chama António, a Maria Inácia não era de Gucci, Dolce & Gabbana ou Prada nem mesmo de Guardiani, Fendi ou Versace. A Maria Inácia compra qualquer sapato, seja na Loja das Meias ou no Corte Inglès, na Zara ou na Calzedonia,  na Bata ou na Calcantes, seja  na feira de Carcavelos e até, diz a prima da mulher do meu amigo António que já a viu comprar sapatos na rua Braamcamp a uns ciganos que só vendiam camisas Lacoste, malas Vuitton e calçado Galliano de contrafação. Sem exagero, jura o meu amigo António, creio que terá ouvido a mulher dele jurar, ou talvez não, talvez seja já da safra dele acrescentar esta jura, a Maria Inácia teria uns trezentos e catorze pares de sapatos. O Salvador é que já não aguentava mais. Nem espaço para guardar os discos do Tony Carreira e da Ana Malhoa lhe sobrava lá em casa. O pior foi no dia em que procurava no closet do quarto de dormir, o cachecol e a camisola às riscas do Sporting para ir a Alvalade ver um desafio. Passou-se dos carretos. Então não é que lhe caíram em cima duas caixas com botas de inverno que lhe causaram um traumatismo craniano sem fratura e um golpe profundo num sobrolho onde teve de levar seis pontos que lhe impediam até de engelhar a testa. Quando regressou do Hospital, sem sequer saber o resultado do jogo, reuniu a sapatada e foi encher os dois contentores do lixo que havia lá na Praceta. Consta que a Maria Inácia não teve outro remédio senão dar-lhe com os pés.


domingo, 30 de outubro de 2011

71. Grande



Conheci-o há muitos anos já ele, para mim claro está, era um tipo entrado na idade. Eu era, portanto, muito mais jovem, uns bons trinta e tal anos mais novo. Por isso a minha deferência com ele, obrigava-me a tratá-lo por Sr. Máximo. Teria, não sei bem, os meus sete anos e meio quando o meu pai, parece que ainda lhe oiço as palavras, me disse, vais conhecer a pessoa mais espetacular que alguma vez virás a conhecer. E foi verdade. O Sr. Máximo, ninguém sabe se era nome ou se era alcunha, ninguém sabia de onde tinha vindo, ninguém lhe conhecia família, não se lhe sabia a idade, não era apenas uma pessoa bondosa. Era uma pessoa eloquente. E tocava sanfona e tinha uma grafonola. Era aquela pessoa que gostávamos de ver, sentado na mesa do café, sempre com um café por beber (ele esquecia-se com frequência e só descobria quando a chávena já estava fria), rodeada de amigos, contando histórias, dando uma boa gargalhada. Nunca fumou um cigarro mas, sempre que um dos amigos fumava junto, não barafustava, não fazia gestos de desagrado. Por vezes, já depois do outro ter saciado o seu vício recomendava-lhe que parasse. Mas sem uma crítica, sem nenhum azedume. Colecionava conchas e tinha bichos da seda. Casou cedo, mas infelizmente o seu casamento não durou o tempo que ele previa. Tratava a mulher como princesa, ninguém lhe conheceu um arrufo. Aliás, antes pelo contrário, as amigas da mulher, com quem esta confidenciava, tinham inveja de não terem arranjado um marido assim. A doença, levou-a ainda nova e ele jurou honrar-lhe a memória nunca mais casando. Todas as manhãs havia uma rosa vermelha fresca, acabada de podar, que ele colocava na sua sepultura. O Sr. Máximo, assim lhe chamei até ao dia em que naturalmente veio a falecer, não bebia, mas era alegre. Nos bailaricos da coletividade, já eu ia nos meus dezassete anos e o Sr. Máximo nos seus cinquenta, dançava como qualquer jovem. As senhoras, solteiras, viúvas ou separadas quase que faziam fila para dançarem com ele e as casadas, todos temos a certeza, morriam de ciúme. Nas pausas para o bufett, pagava chocolates e laranjadas a todas. Algumas preferiam gasosa, outras um chá. Quanto a cultura, parecia-me um daqueles sábios de antanho. Conhecia os filósofos da antiguidade e os modernos. Um dia vi-o dar uma lição de história ateniense absolutamente fantástica. Conhecia a mitologia grega e a romana, comparada. Dava explicações de matemática gratuitas aos filhos dos seus amigos e, de religião, ele que nunca professou nenhuma, era como se fosse um sacerdote. Ou um pastor. Ou um imã, um rabino, um ayatollah, um cádi, um califa, um lama. Morreu há três meses, vítima de uma pneumonia, calculamos que com os seus quase (ou talvez mais) noventas anos. Do Sr. Máximo ninguém sabia quando nasceu, nem de onde era. Isso complicou tudo quando os amigos, numa última homenagem, lhe mandaram fazer a lápide. Colocar o quê? Apenas o único nome conhecido, sem data nem local de nascimento, não poderia ser. Optaram por lhe deixar apenas uma frase. Simpática, creio eu.” Aqui jaz, aquele que não bebia, não fumava, não discutia com ninguém, que tinha sempre uma palavra amiga, que era o melhor dos amigos que se pode ter…”. E como ele era a pessoa mais bem-humorada que alguém poderia conhecer, acrescentaram  “ … e que nunca falou mal da sogra”. E assim ficou gravado no mármore da sua lápide. No outro dia, junto à campa dele, reparei que quem passava e lia o epitáfio, não evitava comentar, este fulano era o máximo.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

70. Penalti



Pois é assim mesmo como lhe digo, meu caro Pedro. Eu bem sei que com a sua idade, com as suas barbas brancas, não há nada que o Pedro não saiba, nem nada que ainda o admire mas, se não estiver com muita pressa e eu sei que não, ficamos aqui um pouco mais à conversa. Desabafar, entende? No início eu nem era muito dado ao futebol, talvez da idade ou por ser assim franzino, não me puxava para a bola. Ainda me lembro de uma vez me terem dito, ficas aqui à defesa, o teu lugar é este, e depois com uma cana, fizeram um círculo à minha volta, não sais daqui deste espaço, percebeste? E eu que sim, com a cabeça mas meio estúpido, pensando com os meus botões, então o jogo não é andarmos todos a correr atrás da bola? E ali fiquei sem me mexer mais do que um passo para um lado e um outro para a frente, só para não sair do círculo desenhado e os outros a passarem por mim, a chutarem à baliza a marcarem golos e eu nem os via, pois se não podia sair daquele círculo como é que via os outros a marcarem golos? Mas o que eu gostava mesmo era de brincar às escondidas, aos índios e cóbois como nos livros aos quadradinhos, e ao pião. Foi o meu pai que me ensinou, sabe Pedro, lá no terreiro do pátio, ele a ensinar-me a enrolar a guita, do bico para cima, depois a inverter o pião a ensinar-me a lançá-lo, primeiro à menina, que era mais adequado para a minha idade e depois, quando eu já pegava melhor no pião e na guita ao mesmo tempo, lançar à homem, que era com mais força e eu, todo vaidoso, nos meus cinco anos de idade já a ensinar aos outros meninos a lançar o pião à homem. Mas a bola, mais cedo ou mais tarde, teria de vir ter comigo, era o meu desígnio. O meu pai trouxe-me, de uma viagem que fez ao estrangeiro, uma bola de catechu. Ena pah, uma bola de catechu! Era o único miúdo da minha rua que tinha uma bola de catechu e, claro está, estava decidido- A partir daí faria parte de todas as equipas, até que por fim, acabei por ter jeito para aquilo, sem nunca deixar de dar primazia à escola, onde além de ser o melhor aluno a ditado, nunca dava um único erro e a vocabulário também era bom, mesmo em longos textos, como o da Lebre e o Sapo-concho, eu sabia as chamadas palavras difíceis todas e além disso ainda ganhei uma taça num concurso da matemática. Pronto, tinha queda para a escola e sem deixar de estudar, sei ler desde os quatro anos, acredita Pedro?, (pena que era fraquinho a desenho), continuei a fazer parte de todas as equipas de futebol da turma e a marcar golos atrás de golos. Não admira, Pedro, que na minha galeria de ídolos o José Águas, o Torres, o Eusébio, o Artur Jorge, o Nené, o Jordão, o Magnunsson, o Nuno Gomes, estejam na primeira fila e só depois os reis D. Dinis e D. João II, o Marat, o Lincoln, o Marx, o Ghandi, o Salgueiro Maia, o Allende, o Mandela. Mais tarde, quando o meu joelho não me permitiu fazer mais corredias e o nervo ciático me travava logo à partida, troquei os retângulos das pelada pela frias bancadas do estádio e aí é que foi o pior. Começaram os tremores, as palpitações, as arritmias, a tensão arterial a subir. Pois foi Pedro, foi tudo isso, mas quando o Cardozo falhou aquele penalti, não aguentei mais e vim para aqui falar consigo e fazer-lhe companhia. Mas sabe o que mais me admirou, aqui neste local, Pedro? Foi o azul celeste dos relvados. E faça-me um favor, faça com que, à hora do jogo, faça bom tempo no Domingo, que eu já não tenho pernas para andar sempre a escorregar no piso molhado das nuvens. 

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

69. Há mais marés ou há mais marinheiros?



Não tenho por costume dizer, quando conto histórias, que isto que vos estou a contar é verdade, ou jurar pela minha querida saudinha que ninguém é mais verdadeiro do que eu, nem tão pouco bater com a mão direita três vezes no peito, mas que ele há coisas que até parecem mentira, lá isso há. Pois bem aquilo que vos vou contar a seguir, juro pela minha saúde que é verdade e, lá virá o tempo em que a tecnologia o permitirá, por agora vocês não veem, mas eu estou a bater com a mão direita no peito. Três vezes.

Seriam umas três para quatro da tarde, não posso precisar pois a luz ambiente era fluorescente e não se descortinava a luz do dia quando, por erro meu e falta de prática, deixei cair uma chave francesa com que trabalhava, lá em cima no desaerificador da casa da máquina. Pimba, catrapimba, pimba, pum, a chave a varrer os varandins dos vários pisos e a estatelar-se num passadiço, quatro andares mais a baixo. Segui o seu percurso com os olhos, mas não fui eu que a desviei. Só pode ter sido a Providência Divina, pois que naquele dia e àquela hora, um marinheiro que passava a centímetros e eu por consequência, foi como se tivéssemos renascido. Juro pela minha saúde como isto é verdade.

À hora do jantar, eu ainda estava lívido. É verdade que das setenta e duas horas consecutivas que iria trabalhar devido a uma arreliadora avaria a bordo, já tinham decorrido umas cinquenta sem pregar olho, o que não dá boa cara a ninguém, mas aquela era tão estranha que não passou despercebida a nenhum dos meus companheiros. Contei- lhes então o episódio acima relatado não sem uma ponta de emoção. Na verdade nem eu conhecia o marinheiro, nem ele me conhecia a mim, para poder ter qualquer tipo de qui-pro-quo com o indivíduo. Foi um acidente (incidente?) mas isso poderia acontecer a qualquer um.

Quando acabei de contar aos que comigo estavam na sala, um marinheiro presente pediu autorização ao comandante para usar da palavra e retirou a queixa que tinha acabado de fazer por tentativa de homicídio. Não voltei a ver este tripulante na minha vida. Também, não tenho vontade. A história não se repete duas vezes. E nunca sabemos quais são os desígnios da dita.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

68. A falar é que a gente se entende




Noutros tempos a gente escrevia de uma maneira diferente. Colocávamos dois eles na palavra ella, escrevíamos cousas em vez de coisas e até o nosso Eça, era Queiroz em vez de Queirós. Isto para não falar que quem ia a Chang-Hai ia exatamente ao mesmo sítio de quem hoje vai a Xangai. Ou poderíamos mesmo dizer que quem fosse a uma pharmacia comprar uma uncção a poderia espalhar na pele ao mesmo rhythmo com o que faria hoje. E se estas formas de escrever não atrapalhavam a oralidade, muito menos atrapalha quem atualmente decidiu adotar o acordo ortográfico feito com os outros países que falam a língua de Camões. Falam-na, não têm forçosamente que a escrever, pois se assim fosse estaríamos a escrever à moda do século XVI.

Esta introdução vai longa e não adiantou nem atrasou quase nada à história que vos quero contar hoje e que não é exatamente uma história para se escrever mas sim uma história para se contar. Resume-se a história ao jeito do nosso povo dizer as coisas pois, do Minho ao Algarve, se encontram por todo lado genuinidades linguísticas. Conto-vos então que a minha avó materna, saudosa avó acrescento, dizia ela que quando chegava, tinha avonde e a avó da minha mulher não fazia o café na cafeteira mas sim na escolateira (chocolateira, seria) e qualquer aparelho, para ela, era um tarrasso. Hoje em dia existem já publicados vários livros com palavras próprias de cada região que valem a pena ser lidos por quem for curioso destes regionalismos linguísticos.

Mas muito mais interessantes do que as palavras isoladas são as expressões que as utilizam ou como são verbalizadas, não me referindo propriamente às expressões idiomáticas, mas sim mais ao jeito que cada um tem para dizer coisas simples, para se fazer entender. Um amigo meu, já idoso, quando lhe perguntamos então como é que isso vai ti Joaquim?, ele responde-nos, estou aqui até que o enterrador queira. Digam cá se não tem magia? Era a esta magia do dizer que eu queria chegar com toda a retórica supra. Há uns anos atrás, quando o meu filho, ainda petiz, quis encher a garrafa de água no chafariz que estava ali mesmo à mão, o ti Chico pescador logo o desincentivou. Apontou-lhe um outro chafariz, que ficava distante daquele uns bons cem metros, que para a criança deveriam parecer mil, e explicou-lhe, enche antes daquela; esta também é boa, mas na presta. E claro que percebemos perfeitamente o que ele queria dizer.

sábado, 8 de outubro de 2011

67. Vozes de burro...


Quem me contou esta história já cá não está para me desmentir. Não é que isso tenha muita importância mas se é que há coisas certas na vida uma dela era que o ti Romão não começava nenhuma frase a não ser por "na", um "na" prolongado, como apraz à pronuncia alentejana, mesmo que depois fosse apenas para confirmar a sentença. Mas se na sequência da conversa isso não viesse a confirmar um desmentido formal, pelo menos deixaria o interlocutor na expetativa. Daí que não me sobrem muitas dúvidas que esta minha história tenha desde já uma verdade, mesmo que seja mentira. "Na" , sr. Constantino (ou, neste caso, porque ele não lia o meu blog) , "na" sr. Vítor...

Nesse tempo tão pouco se falava numa ponte que unisse o Pomarão a El Granado, quanto mais imaginar que desde a Moreanes ao povoado espanhol qualquer carro poderia fazer o trajeto em menos de meia hora. Para dizer a verdade, ninguém pensava que se poderia ir de carro a El Granado. O mais que se fazia era tentar que alguém que fosse para aqueles lados, na data e hora indicada lhe desse uma boleia numa qualquer carroça, em alternativa a levantar-se às quatro da manhã e a pé chegar à Corte de Pinto. Aí alguém os faria atravessar o Chança, outrora rota de contrabandistas. Do outro lado, já em Espanha, um carro os esperaria para os levar ao António. E a horas, porque o António tinha freguesia que chegasse e não pactuava com atrasos.

Era o António pau para toda a obra. Para uns, santo, para outros apenas vidente, milagreiro era o que era, curandeiro de meia-chinela para alguns, poucos, endireita, doutor,  pode escrever, doutor com letra grande, sr. Vítor. Até curava sesões! Para o Joaquim da Mula, rapaz cá da aldeia, filho de mineiro, forte e sagaz, o António, não passaria de um charlarão que nem uma alimária seria capaz de tratar. Acostumado que estava às bestas, mulas, machos, burras e outros quadrúpedes, ajudava-os a nascer das éguas do patrão, dava-lhes os primeiros fenos, sem piedade disparava a espingarda de caça se algum dos animais tinha o azar de se enterrar num barranco e de lá quebrar uma pata. Era ele próprio um bruto que nem conhecia uma letra, nem de propósito, maior do que um burro. Numa tarde aziaga, Joaquim das Mulas, caiu ele num barranco que ia cheio com as primeiras águas de Novembro. Durante semanas tossiu como se fosse a tísica que dele se tivesse apoderado. Em Mértola os médicos não lhe davam com a maleita e para Beja, nem pensar, já lá lhe tinha ficado lá a Marcília, sua primeira e única mulher, casada de papel passado e a mais o filho que trazia na barriga.

Joaquim das Mulas, que já não trabalhava havia bem umas oito luas, pediu ao Sr. Lima se lhe emprestava uma besta. Riu-se quando disse ao patrão que não sabia se ia a Espanha para se curar a ele se para curar o animal, tal era o estado em que estava a mula que o patrão lhe havia emprestado. Ainda assim era melhor que nada. E meteu-se a caminho.

- E lá teve de se render a quem ele não acreditava, na foi ti Romão?

- Naaaaa, qual quê, sr Vitor. Quando entrou no consultório do António, dizem que eu na vi, sr. Vítor, olhos nos olhos com o curandeiro, na foi capaz de outra coisa senão zurrar.

sábado, 1 de outubro de 2011

66. Postetxea



Esta história, que ele não me contou porque eu próprio assisti, já a tenho ouvido contar a outros, noutras circunstâncias e com outros intervenientes mas, normalmente, com o mesmo fundo ou, como hei-de dizer, querendo mostrar o mesmo. Conheço-o há muito anos e sou seu companheiro de viagem desde há longa data também. Sei que ele se desenrasca em qualquer parte onde vá, não porque fale muitas línguas, quero dizer, safa-se em inglês, é mais forte em francês e, em castelhano, surpreendeu-me pela quantidade de vocabulário que possui. Ainda no domingo passado, estivemos com uma família brasileira sua amiga e quando ele se saía com um está muito giro logo corrigia para muito legal, pronunciando legau para que não restassem dúvidas. Com isto quero dizer que, se acrescentarmos o Português do Brasil, ao Português de Portugal, ele desenrasca-se falando em pelo menos metade do globo. E prometeu-me que iria tentar aprender um pouco mais de russo, mas descartou de imediato aprender mandarim ou árabe. Diz que não tem muito jeito para o desenho.

Já o vi entrar em muitos gags linguísticos, no último dos quais tive de lhe dar uma cotovelada para que o polícia da alfândega americana em Nova Iorque não pensasse que ele estava no gozo. Então não é que quando o polícia lhe perguntou what are you doing here? , em vez de lhe responder que estava em turismo, respondeu-lhe, I’m talking to you, sir… Mas a mais engraçada dele foi quando pediu um sumo de laranja num bar de hotel em Madrid. Pediu-o em português, sem mais nem outra e a resposta que obteve foi, yo no hablo inglês, señor. Depois foi vê-lo (e ouvi-lo) pedir,  jus d’orange,  orange juice e até suco de laranja, sempre acompanhado do respetivo s’il vous plait, please ou por favor, recebendo  sempre a mesma resposta do garçon, yo no hablo inglês, señor. Quando se lembrou que era zumo de naranja, recebeu um largo sorriso de volta, um estava de broma comigo?  perguntado sem rancor nem má cara e porque acertou finalmente teve direito a um platito de tapas e  um outro com  aceitunas, por supuesto.

Ao ouvir o Maciel contar-lhe o embaraço que teve em Algeciras para pedir duas cervejas, tentando espanholar (ou portinholar) a palavra, que foi desde cerberra a xerbexa passando pela inevitável cervieija,  com o empregado do balcão a olhar para ele e a fazer a sua já famosa cara número três, riu-se e disse-lhe em  bom português, quero duas cervejas se faz favor diga-se assim ou não, ao que o empregado, em português fluente, lhe respondeu, já podia ter dito,  decidiu então que desta vez o gesto seria tudo. Mas não o conseguiu exatamente. Quando viu o pequeno magote de quatro idosos conversando naquela praça de Santurce, uma pequena vila portuária do país basco, aproximou-se e perguntou-lhes onde eram los correos. Olhando uns para os outros e encolhendo os ombros, ouviram-no repetir, señores, por favor,  los correos. Nada, ninguém entendeu. Puxou do envelope que levava no bolso do blusão, mostrou a carta, fez um pequeno gesto retangular no local do selo, disse-lhes meio furibundo comprar sello e eis senão quando escutou os quatro em coro Ah! Los correos! Jurou que a sua próxima seria estudar basco. Couriers se calhar seria mais fácil. Ou não.

sábado, 24 de setembro de 2011

65. A toalha da mãe da Dora



A Dora fazia anos e queria ter uma grande festa. Afinal de contas não é todos os dias que se fazem dezoito anos e, embora naquela época a maioridade se atingisse aos vinte um, aos dezoito era permitida a emancipação para determinados atos. E obter a carta de condução era um deles. Logo a Dora, que andava há tempo a namorar aquele Mini Clubman cor de café com leite. Seria uma das primeiras e das mais novas mulheres, aliás menina e moça, a ter carro e ainda por cima um Mini. Uns bons noventa contos, daquele tempo, mas os pais tinham posses.

Que me lembre de memória estiveram na festa, além da Dora e da mãe da Dora, que ia repondo o stock de comes e bebes à medida que o íamos devorando, estavam lá dizia eu, o Gouveia, o Coutinho, o Jorge, o Zeca, o Pires, o Antero, o Gregório (deste nunca mais me esqueço por razões que agora não vêm à baila, mas um dia destes contar-vos-ei uma empolgante e inusitada cena, em que o Gregório foi protagonista), a São, a Eduarda, a Maria Helena, a Guida Peres e a Guida Antunes, a Ana Cravo, outra Ana que só a conhecíamos por Bebé  a Gina, ai a Gina… e a Carolina Franco. Estes são os nomes que me lembro mas eram mais, algumas amigas e amigos da Dora e vizinhos que moravam na mesma rua e que apenas conheci naquele dia. E havia croquetes, rissóis, pasteis de nata, bolas com creme, pastelinhos de bacalhau, ducheses e uns bolos grandes, com chantilly e fios de ovos, que a mãe da Dora fez e que estavam deliciosos, pelo menos aqueles que eu provei. E coca colas que naquele tempo não eram Coca Colas mas eram Canada Dry e laranjadas e gasosas Schweppes que era a marca mais famosa daqueles tempos além da Laranjina C. E lá numa arca que a mãe da Dora tinha na marquise, amontoadas e muito fresquinhas, Sagres e Cergal, esta última a cerveja da moda. Mas não podiam era estarem à vista pois parecia mal uma vez que ainda éramos menores.

Comemos e bebemos, principalmente bebemos, mas não foi só para isso que fomos à festa. Era pela música e palas miúdas. (Elas se calhar era pelos rapazes, mas isso eu já não sei). Ali se dançava o rock da época com o som a altos berros, dançávamos os Mungo Jerry com o seu  In the Summertine, abanávamos fortemente a cabeça quando os Shocking Blues arrasavam com Venus, acalmávamos languidamente à voz de Jim Morrison, sentávamos para ouvir, só ouvir, a guitarra do Jimmy Hendrix ou a voz de Jannis Joplin e não nos desagarrávamos quando os Wallace Collection tocavam os primeiros acordes de Daydream ou Carlos Santana “sambava pa nós”. Foi no meio destes estados de estômago e de alma que demos por falta do Coutinho. Ele e a Guida Peres, que já andavam meio enrolados, de repente desapareceram. Ao fim de alguns minutos encontramo-los debaixo da mesa bem encobertos pela comprida toalha bordada de Viana do Castelo. Nem a mãe da Dora, naquele entra e sai com a bandeja dos pãezinhos de leite com fiambre, deu por isso, nem eles estavam propriamente a dançar o Whiter Shade of Pale.

A foto, que desta vez não é da minha autoria embora seja minha propriedade, representa a banda (algarvia) Six Irish Man, que aconselho vivamente a ser vista em concerto.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

64. L(u/a)gares



Ligando o Lugar e a Vila, havia uma avenida e havia uma azinhaga, fazendo entre elas um ângulo de noventa graus. A vila crescia a montante da azinhaga, onde já havia prédios e a oriente da avenida. Os prédios da vila subiam da azinhaga até ao cimo e do cimo até ao rio. Ao longo da azinhaga, casas térreas e pátios com os dias contados. No sítio onde a azinhaga se bifurcava, no centro da fisga, mais quintas e algumas barracas. Parece difícil descrever, parece que é coisa com quase cinquenta anos, mas na cabeça dele ainda estava viva a estrutura. De tal maneira ele tinha presente o lugar onde vivia que me fez um desenho. É por isso que eu estou a tentar reproduzir. A jusante da azinhaga, quintas e também, quintas para oeste da avenida. Era a quinta do ti Zé Guimarães, a quinta do Pombal, a quinta do ti António (mais tarde, disse-me ele, descobriu que era a quinta do Teotónio), a quinta do Plantier, um francês há muito radicado em Portugal e outras que ele me descreveu mas que, peço perdão, não tendo a mesma memória, já se me varreram os nomes.

O tio Raul era um homem fino. Não que fosse algum bacharel ou tabelião, isso não. Nem era engenheiro, doutor de leis, médico ou farmacêutico. O tio Raul era corticeiro, talvez o melhor das fábricas do Concelho pois sabia da arte de escolher, quadrar e rabanear como ninguém. E fez a quarta classe com distinção. No seu círculo de amigos havia até gente graúda. E por isso mesmo, raramente o tio Raul passaria mais do que uma noite na pildra por gritar mortes a Salazar e vivas à Rússia. O tio Raul era inteligente, lia como poucos e dizia poesia como mais nenhum. O pior era os copitos, coitado.

Naquele dia vinham os dois garotos, irmãos, cada um com um saco de azeitonas verdes, acabadas de colher. Tinham atravessado a azinhaga, saltado o valado da quinta do Plantier, onde havia um enorme pomar e extenso olival. O caseiro, o ti Manel Francisco, já lhes tinha dito que eles eram os únicos miúdos que ele autorizava que fossem às azeitonas, mas que não dissessem a ninguém. Encontraram o ti Raul, já com um grão na asa, que lhes perguntou o que traziam nas mãos. Olhou os sacos, mirou as azeitonas, tirou um punhado, olhou-as atentamente, voltou a colocá-las no saco, devolveu as azeitonas aos garotos, isto tudo sob o olhar daqueles dois pares de lanterninhas brilhantes, um azul como o mar, outro castanho cor de azeitona madura, de seis e sete anos de idade, chispando respeito pela excelência de tio que tinham. Deu dois tostões a cada um e disse-lhes “Rapazes, não sejam parvos, de pequenino é que se torce o pepino”- Quando o tio terminou a primeira parte “não sejam parvos…”, o que me fez o desenho jura que ambos pensaram que o tio lhes ia dizer, “não deixem roubar as azeitonas!” .  O que seria isso de torcer o pepino?

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

63. Porto



Ao Porto ninguém tratava de outra maneira a não ser por Porto. O Porto era do Porto e falava com um sotaque nortenho, talvez do Porto ou então dos arredores do Porto. Ainda no outro dia eu dizia que era de Almada e a pessoa respondeu-me, ah sim de Lisboa e eu fiquei-me. Se calhar o Porto não era mesmo do Porto, mas todos o tratavam por Porto. Mas não era apenas a sua origem que o caraterizava. O Porto era um tintoleiro. Onde houvesse uma pipa, um garrafão ou uma garrafa cheia, ou meia, do rubro líquido o Porto parava e encharcava-se. Nunca vi o Porto que não estivesse bêbado. O Porto raramente andava sozinho e raras as vezes sem a mulher. Quando ele não vinha com a mulher vinha na companhia da sua bebedeira e quando vinha com a mulher, eram quatro. Ele, a mulher e duas tremendas besanas. O Porto, morava no bairro de barracas que do meu bairro, tinha um matadouro a separá-lo. O Porto cambaleava, melhor que qualquer pessoa que eu já tivesse visto cambalear. E nem nos filmes de Sam Peckinpah, um cowboy cambalearia tão bem como o Porto, depois de uma seta envenenada do Cheyenne Touro Sentado ou do Sioux Asa de Falcão.

Se havia alguém que gostava e ainda gosta de pescar era o Baixinho. Mal as férias da Páscoa começavam e já estava o Baixinho a fazer a sua abertura de época (este parêntesis é para vos falar do desgosto que um febrão, alto lá com o charuto, o fez ficar na cama numa sexta-feira santa em que o pai, com linha de mão, anzol empatado a arame e poita feita de um pedregulho moldado, tirou do rio um safio de cinco quilos e meio, a quem lhe foi dada a honra de beber uma mini no caminho para casa. Ao pai não, ao safio!). Naquele dia, tinha almoçado havia pouco tempo, a maré estava baixa demais, daria tempo para que, com a sachola, escavar umas quantas poças no ostral, recolher uma boa mão cheia de minhocas e começar a pescar um pouco mais tarde. Quis o almoço e a sua digestão que esta colheita não corresse a preceito. Quando começou a ver tudo a andar à roda, largou o sacho, a lata das minhocas, a cana de pesca, o bornal do material, o balde da pescaria, saiu, com as poucas forças que ainda lhe restavam, à procura do trilho que o levaria  a casa. Caiu num barranco, à beira da azinhaga, desfalecido. E começou a viajar.

Quando acordou no hospital de Almada, algumas horas depois, parecia que ainda via o Porto, com ele aos ombros mais de dois quilómetros ribanceira acima, a entregá-lo aos pais. Felizmente que a flecha atirada por Asa de Falcão, em vez de o fazer cambalear, dotou-o falcoamente de duas divinas asas. Obrigado, Porto (sussurrou o Baixinho).

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

62. Amuleto



Dizem que o bulling, não sei se é assim que se escreve, é uma atitude das crianças e adolescentes de agora que, por maldade ou por inveja, decidem assediar quer moral, quer fisicamente colegas da mesma escola, por vezes da mesma sala e às vezes até vizinhos que sempre se deram bem antes da dinâmica de grupo os ter feito alinhar e transformar o colega, por vezes, num saco de pancada. O bulling tem de ser combatido pela sociedade, seja pela sociedade civil com uma maior intervenção dos pais (e, quiçá, a educação dos mesmos), seja pelas autoridades quando isso se justificar.

Mas o bulling não é uma coisa de agora. Apenas está mais mediatizada. Lembro-me perfeitamente do nome dele e também da sua figura física e rosto, pois fomos vizinhos e amigos de infância. Vou chamar-lhe Hélder, um nome inventado para uma história absolutamente verídica. O Hélder era assim como que o maior totó da minha criancice. E se as crianças hoje são vítimas de bulling ou porque são gordos, ou porque são génios, ou porque não alinham em cenas patetas e indignas, convenhamos que se fica mais à mão de semear dos agentes provocadores quando se é um perfeito totó.

A D. Constância era uma boa mãe. O Hélder ia sempre para a escola de batinha branca como se usava na época, a pasta dos livros ao tiracolo e uma lancheira bem recheada. O lanche do Hélder era dos melhores daquele tempo, onde nunca lhe faltava uma sandes de ovo, uma peça de fruta e até, por vezes, um chocolate. O Hélder até já tinha caneta de tinta permanente em vez do velhinho aparo. Quer dizer, tinha durante um dia ou dois pois se não lha roubavam, convenciam-no a dar. E com o lanche era a mesma coisa. Coitado do Hélder que nunca comia o lanche que a mãe lhe arranjava. Às vezes, com as lágrimas nos olhos e a dizer se a minha sabe mata-me de porrada, lá estavam os outros a assediarem-lhe a lancheira. Mas certo dia, o Hélder não perdeu tudo. Os gajos tinham-lhe dado uma pedrinha da sorte. Fechas bem esta pedra na mão, Hélder e, enquanto a tiveres bem fechada na mão, ninguém te faz mal nem ninguém te bate nem mesmo a tua mãe.

E lá estava o nosso Hélder, regressado a casa, de mão bem fechada protegendo a pedra, confessando à mãe que tinha ficado sem lanche, enquanto D. Constância lhe pegava num braço e lhe dava uns fortes açoites por ele ser tão totó, ele ria, esquivava o rabo curvando a espinha e gritava bem alto para quem o queria ouvir que enquanto tivesse aquela pedrinha na mão, ninguém lhe batia, ninguém lhe podia fazer mal. E repetia e repetia e repetia ao ritmo de cada nalgada.