sexta-feira, 28 de setembro de 2018

239. O dono da bola - #10. Ao lado de uma carreira


O que aqui vos conta esta história poderia ter sido jogador de futebol. A sério, pá! Quero dizer, jogador de futebol a sério. Com chuteiras de marca e camisolas da Adidas, ou da Puma, ou da Nike, ou da Macron… Com os estádios cheios, ou quase, a verem e a aplaudirem. E a gritar golo, correndo o estádio de punho no ar como o Eusébio. Bem, como o Eusébio não, que foi único. Como o Ronaldo, talvez. A saltar, a fazer uma chicuelina e gritar olé em cada golo,

(E como é que isso podia ter acontecido se nunca passaste da cepa torta? Se nunca jogaste futebol a sério apesar de teres jogado à bola até aos quarente e cinco anos?) 


e aqui começa a narrativa. O meu irmão Carlos andava nos treinos de captação do Sporting. A coisa ia bem lançada e, treino após treino, regressava a casa com mais esperanças de que poderia assinar, de um momento para o outro, pelo seu clube do coração

Pai eles dizem que para a semana mandam os papeis

o meu pai entusiasmado porque a coisa ia bem lançada. Entretanto, o Marques, que era um dos centrais do Sporting e nosso vizinho lá no Bairro recrutou e recomendou aos treinadores que faziam a captação, alguns de nós,


(havia um que festejava cada vez que que conseguia acertar na bola, mas isso não é para contar)


que dávamos uns toques lá no Matadourense, eu excluído, não porque não desse uns toques na chincha,

(a minha avó tinha um dito que era qualquer coisa assim: gaba-te cesto…)

mas porque já ultrapassava a idade limite para a captação. Mesmo assim fui. Fui ver o meu irmão treinar.

Quando chegamos ao campo de treinos do estádio de Alvalade, equipou-se o Carlos, equiparam-se outros que iam à captação e equiparam-se os recomendados pelo Marques. Obviamente, eu não me equipei

- Junte-se àquela turma, aqui não tem espectador

mas o senhor Osvaldo Silva, um dos treinadores, o outro era o celebríssimo Hilário, perguntou-me porque não me equipava. Expliquei-lhe que já não tinha idade para a captação e que só vinha ver o meu irmão treinar

- Vai que aqui não tem espectador

mas isso não podia ser. Ou me equipava e me juntava à turma ou tinha de me ir embora, sentenciou-me. Não tive outro remédio. No meio de camisolas e calções, lá encontrei umas chuteiras que me serviam. Nem sei se eram do mesmo par. Mas serviam-me.  E lá fui eu, para as bancadas,

- Ó cara aí você não quer jogar, não?

é bom de ver, tentando me esconder ou, pelo menos, passar despercebido, enquanto os miúdos que tentavam a sua sorte se esgatanhavam para ter lugar num dos onzes. Num destes onzes estava a maioria dos juvenis do Sporting que transitavam de um ano para o outro, as academias dos clubes, nomeadamente a de Alcochete, só veriam a luz do dia muitos, mas muitos anos mais tarde. No outro time os noviços. O meu irmão, porque já tinha ido a muitos treinos, já equipava na equipa principal, embora ainda não tivesse contrato assinado

- Pai eles dizem que para a semana mandam os papeis

E eu sentado na bancada, ia assistindo ao desenrolar do treino e à velocidade com que os treinadores, Osvaldo e Hilário, iam mandando os candidatos para o duche. Quem sabe, sabe e um jogador de futebol reconhece-se logo ao primeiro toque. Ou ao segundo, De vez em quando ouvia-se a voz de um deles: Há aí algum defesa esquerdo na bancada?

- Ó cara aí você não quer jogar, não?

e depois um defesa direito, um central, um médio centro, por aí fora até que depois de vários extremos direitos terem ido para o balneário mais ninguém respondia das bancadas,

- Vai que aqui não tem espectador

acabrunhado, levantei o braço

(mais um para jogar dez minutos)

mas na primeira jogada em que intervim, sentei no chão o defesa esquerdo da equipa juvenil, dei uma revienga ao central, chutei à baliza onde, concentrado, atuava o meu mano e pimba! Bola na barra. Todo eu tremia. Por um lado, marcar um golo ao meu irmão seria a pior das traições, por outro, quando a gente está em campo nem sequer pensa nisso. Pensei? Não pensei? Não faço a mínima ideia. Graças a Deus que a bola foi ao travessão. Oiço o apito de um dos treinadores.

(mais um para jogar dez minutos)

O senhor Hilário interrompeu o jogo. Pensei de imediato. Falhar um golo em frente ao guarda-redes é uma blasfémia cuja penitência é o balneário. Mas não. O senhor Hilário, muito educadamente, veio ter comigo e explicou-me qual seria a posição correta do corpo para que eu tivesse tido êxito naquela jogada. Eu tremia cada vez mais, mas respirei fundo e a tremura passou. Nova corrida da direita, um passe em profundidade, o ângulo era difícil e o remate foi pronto. O Carlos correspondeu com uma daquelas defesas que a gente só vê nos resumos da televisão, como a defesa da semana. Seu Osvaldo, manda um berro,

(mais um para o balneário)

o Carlos para e fica com a bola na mão, o treinador corre para mim. E sentencia: Se falha outra assim vai tomar um banho.

(Eu não disse? Mais um para o balneário)

Não falhei mais porque também não tive mais nenhuma oportunidade. Cinco minutos depois o treino tinha acabado. Que vitória! Já tinham ido para o banho uns quatro extremos direitos e eu fiz o treino até ao fim.

No final os treinadores foram falando com alguns dos miúdos. Não sei o que lhes disseram porque estava longe. Distanciei-me sempre…

- Aqui não tem espectador

Chamou também o meu irmão Carlos e soube depois que lhe disseram que continuavam a contar com ele.

- Pai eles dizem que para a semana mandam os papeis

Depois chamou o grupo do Marques, ou seja, os do nosso Matadourense. Escolheu o Carapinha para o próximo treino. Creio que o Mesquita também, não tenho a certeza. Voltaram aos balneários e eu segui com eles. Aí o senhor Hilário chamou-me: És do grupo do Marques? Não, somos do mesmo Bairro mas só vim ver o meu irmão treinar,

- Aqui não tem espectador

e ele ripostou: Voltas para a semana e, se puderes, traz o teu pai contigo. Ainda argumentei que não tinha idade par a captação. Ele fez um ar de não importa e ainda me perguntou: És tu que és irmão aqui do guarda-redes? E eu: Sou sim, senhor treinador. Ao que ele terminou dizendo; então o pai serve para os dois.

Despedimo-nos. Só voltei ao estádio de Alvalade muitos anos depois para ver um jogo da seleção nacional. Mas no metro, de regresso a casa, pensei, Está decidido. Não volto. Isso é que era bom. Não seria capaz de jogar ali! E foi assim.

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

238. O dono da bola - #9. O meu irmão guarda-redes


Na praceta das traseiras não havia carros. Aliás quase não havia carros em nenhuma das pracetas. Estávamos nos finais dos anos 60, início dos 70 e pouca gente tinha dinheiro para comprar carros. Um bairro onde a maioria eram operários, empregados de comércio, embarcadiços, estivadores e outros portuários, motoristas de autocarro, funcionários públicos, que na época ganhavam bastante pouco, magarefes, pescadores e um ou outro estabelecido. Assim, como hei de dizer, classe operária e baixa classe média. No bairro não havia ricos embora também não se possa dizer que fosse um bairro pobre. Mas carros havia poucos, havia muito espaço para jogar à bola, era na minha praceta, era num baldio que ligava o Bairro ao Valdeão, hoje integrando o HGO, era na própria estrada onde, amiúde, aparecia a GNR a perseguir os putos que jogavam à bola, bastas vezes a guarda a cavalo pois aquela urbanização estava implantada numa zona rural, cercada pela Quinta do Olho de Vidro, a Quinta do Cesteiro, o Valdeão, a Quinta do Malquefarte, a Quinta do Pinheiro e por aí fora que a minha memória não consegue lembrar-se de todos os nomes, eu não sou nenhum Saramago, era na praceta das traseiras e a minha mãe,

- Joga-lhes um balde água

cheia de cardos e de outras ervas que a malta pisava com os sapatos, para a transformar em campo relvado, no meu Bairro não se andava descalço e que no final até parecia mesmo um campo relvado, até aonde vai a imaginação das crianças. E lá se montava o estádio, onde hoje é um rinque cimentado, com balizas de futebol a sério e a minha mãe,

- Estou a falar a sério, manda-lhes um balde água

e redes de proteção para que as bolas não acabem nos vidros de alguma janela, e eram duas pedras a servir de baliza, quatro se contarmos que havia duas balizas e numa delas, o meu irmão do meio, o mais novo ainda era praticamente bebé, guarda-redes como se falará mais tarde, mas ali, a voar para a bola e a cair nos cardos batidos e os joelhos a baterem no chão a chegarem a casa sangrando, no entanto ele voava, parecia o Capitão América ou o SuperMan, ou para mim o melhor, o major Jaime Eduardo de Cook e Alvega, o major Alvega da revista Falcão, que saudades que tenho daqueles livros aos quadradinhos e a minha mãe,

- Vem para mesa

e eu a pedir para atrasar um  bocadinho o almoço, estava a acabar um capítulo de História ou de Geografia pois à tarde ia ter ponto, com o Falcão escondido no meio dos livros de estudo e, enquanto o major Alvega não arrasava a asa da tirania nazi dos céus de Inglaterra, eu não engolia o bife ou, mais certo, os carapaus fritos, mas não, não voava tão alto como o major Alvega porque o major Alvega voava de avião e o meu irmão Carlos voava sobre o relvado de cardos e eu frustrado porque mais uma vez, apesar da bomba, que não de um avião da RAF nem da Luftwaffe, era uma bomba saída dos pés de uma criança de catorze anos, não marcava golo, logo eu do Benfica e ele do Sporting, podia lá ser eu não marcar, quem me dera que fosse frangueiro e eu cada bola, cada golo, mas não, ele defendia mesmo bem, defendia quase tudo. Só que eu era avançado e também marcava bem mesmo ela entrava altas ou por cima da pedra que era  poste ou que fingia ser se entornava o caldo entre irmãos, rivais de clube e rivais na função, um avançado, outro guarda-redes, Foi golo, Não foi nada e eu Foi e ele Não foi e eu Batoteiro, Batoteiro és tu, Larga já a bola que a bola é minha, Querias, vem-ma cá tirar se a queres e eu ia e andava-mos à bulha e a minha mãe para aquela que via os nosso jogos pela janela da sala, tão garotos que nós éramos e acabámos por casar, já lá vão trinta e oito anos de enlace muitos de namoro, dois filhos e três netos eramos uns garotos e a minha mãe sem sonhar que alguma vez ia ser a sogra recomendava-lhe,

- Se eles discutirem, manda-lhes um balde água.

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

237. O dono da bola - #8. Um-contra-um


No andar por cima do meu morava uma família incompleta. Um pai viúvo e dois filhos ou, mais propriamente, um filho e uma filha. O filho, o Zé Carlos, era o meu parceiro ou, mais precisamente, o meu adversário no um para um.
O pai, figura austera e de poucas falas, subia as escadas de cabeça baixa. Bom dia, boa tarde era o mais que se retirava daquela boca e não era todos os dias. Nas mais das vezes, saía mudo e entrava calado. Não sei se o poderíamos apelidar de trombudo, de antissocial ou simplesmente de tímido. Mas para a minha pessoa, para ser verdadeiro, ou mais condicente com a realidade, tenho de o dizer que nunca foi tão macambúzio assim. À tal saudação de bom dia ou de boa tarde acrescentava quase sempre um olá e, talvez por mor do filho, sabia até o meu nome. Boa tarde vizinho dizia eu, Olá Vítor, respondia ele, e até chegava a perguntar, verdade que raramente,  Estás bom? Não tenho a certeza, apenas porque não me lembro de ver lá mais ninguém, penso que era o único que ele autorizava a entrar lá em casa para brincar com o Zé Carlos e bonomia das bonomias, autorizava a filha a ir ver televisão à nossa casa. Mas os filhos não punham, com ele, o pé em ramo verde. Se algum fazia alguma patifaria, haveria castigo pela certa o que a mim me doía por consequência. Era quando ele não deixava o Zé Carlos sair para jogarmos à bola.

O Zé Carlos era o meu companheiro no um para um. Quando fomos morar para o Bairro as pracetas não estavam arranjadas. Eram em terra batida e nem mesmo os passeios dos prédios estavam acabados. Havia calçada alternando com buracos e pedras de calçada soltas. Havia também alguns prédios inacabados embora naquela época não fosse moda os “ocupas” e, como tal, assim se mantinham até que a A Confidente pegasse neles. Dizia-se na época que os construtores, afogados em dívidas, alguns até com andares vendidos, mas sem papeis passados, o que fez com que algumas pessoas tivessem perdido o dinheiro da entrada, poupanças de uma vida, tinham fugido a salto para França para não serem presos. Outros diziam também que tinha havido negligência ou até corrupção, na altura usava-se dizer que “estavam feitos” com a Câmara Municipal, sendo que alguém se abarbataria com o dinheiro das calçadas que nunca foram feitas, a troco de fechar os olhos nas inspeções. Venha agora a saber-se porquê, tantos anos passados, isso agora não interessa para nada, siga a Marinha como se costuma dizer. A verdade é que chegamos ao 25 de Abril com as pracetas e arruamentos num estado tão deplorável que antes mesmo de se falarem por todo os país em comissões de moradores, já no meu Bairro se tinha constituído a Comissão para o Melhoramento da Pracetas, liderada pelo Jaques e de que faziam parte o Sr. Agostinho, o Ti Abreu, entre outros que já me não ocorrem à memória. Para muitos isso seria muito bom, pois nos finais dos anos sessenta, principio dos setenta já existiam alguns carros lá no Bairro, fruto de uma evolução positiva de emprego na margem sul do Tejo, com a abertura da Lisnave na Margueira em Almada e, assim, as suas viaturas escusavam de ficar atoladas, para outros seria muito melhor porque viria mesmo a ser construído, numa das pracetas, um rinque onde ainda hoje se podem fazer os jogos de futebol, no local onde no meu tempo era necessário cortar cardos e amassar ervas para jogar à bola. Além disso, o 25 de Abril já me veio apanhar com quase dezanove anos, numa altura em que nem eu, nem o Zé Carlos jogávamos à bola na nossa praceta pelo que não nos faria diferença nenhuma. Aliás, no 25 de Abril o Zé Carlos já nem morava no andar de cima. Tinha-se mudado não sei para onde.

Quando o Zé Carlos e eu descíamos, pouco antes da hora do jantar, em tempo de verão, pois está visto, que não só ainda era dia às oito da noite, como no inverno a praceta era um lamaçal, contávamos dez pés em cada ponta da praceta entre duas pedras que iriam servir de baliza. E só nós dois, de um lado para o outro, num mano a mano, onde ninguém ganhava nem perdia. Quando o pai do Zé Carlos dava um assobio ou a minha mãe se assomava à janela para avisarem que o jantar estava pronto era como se o árbitro desse por terminado o encontro. Só que o resultado passava para o dia seguinte e assim sucessivamente. Penso que o placard está em duzentos e quarenta e seis a duzentos e quarenta e cinco mas já não me lembro quem está a ganhar. A última partida foi há quase cinquenta anos.

sábado, 8 de setembro de 2018

236. O dono da bola - #7. O tio Liberto



Comecei a ler bem novinho. Hoje isso já não é de espantar. As crianças nascem com um tablet nas mãos, manuseiam um smartphone antes de completarem o primeiro ano de idade, mandam SMS aos três anos, jogam minecraft aos quatro e aos cinco deixam um whatsapp aos pais com uma fotografia da rave no refeitório do infantário. Os tempos mudaram mas eu, que mais ao menos tenho acompanhado a evolução tecnológica e também o hábito das crianças, pai de dois e avô de três, não lastimo ter aprendido em livros e em jornais. Comecei então a ler antes dos cinco anos de idade. E antes que vos fale do tio Liberto vou-vos contar uma pequena história que se passou mais ou menos por esse tempo.

Uma doença infetocontagiosa mandou-me alguns dias para a cama de um hospital. Para evitar contágio fiquei em isolamento

- Mãe, quero ir embora

isolado aos cinco anos de idade num hospital, sem poder ver pai nem mãe, uma crueldade! Só entravam médicos e médicas, enfermeiras e enfermeiros e auxiliares de limpeza. Com a idade com que fui internado é impossível ter memórias mais consistentes, mas nunca se me desapareceram flashes. Outras coisas sei de as ouvir contar ao longo dos anos. Mas há fotografias indeléveis cá nos meus recantos da memória. E é assim que ainda hoje me lembro, sem que por isso tenha qualquer pesadelo, nem sequer sonho, de uma enfermeira

- Ai bebes, bebes…

 a dar-me uma valente bofetada por eu chorar e me recusar a tomar os comprimidos. Leram bem? Uma enfermeira deu-me uma bofetada na cara, a mim, uma criança de cinco anos de idade, porque isolado, só, sem ver os pais nem o irmão, dias seguidos, chorava e não queria tomar os comprimidos. E então foi por escrito que através de uma senhora da limpeza,

- Se eu contar, ninguém acredita

que achava muita graça de eu, tão pequenino, já saber ler e escrever, que mandei uma mensagem aos meus pais,

- Ele diz que é para o senhor ler

e foi assim que a direção do hospital tomou conhecimento e mandou substituir a enfermeira no meu quarto.

Nessa época o analfabetismo atingia o país inteiro. Oficialmente, segundo números do Estado Novo, 40% das mulheres não sabia ler nem escrever e 29% dos homens estavam na mesma situação. Na verdade, quem “andava por aí” sabia bem que estes números eram de conveniência

Salazar!| Salazar!

a realidade era muito mais penosa. Uma dessas pessoas, que não sabia ler nem escrever, era o meu tio Liberto,
- Comunista, só pode ser

a dizer que é analfabeto, só podia ser comunista, senão não diria aquilo, escolas sempre houve

O tio Liberto não era meu tio de verdade. Era meu vizinho lá no pátio, mas como era irmão da minha tia Gracinda e filho da minha avó Felismina

. Anda cá que avó dá-te as sopas

e a avó Felismina dava-me as sopas de café com leite e eu acalmava-me e ameaçava a minha mãe se ela ralhava comigo, que não eram nem minha tia, nem minha avó mas era assim que as tratava desde pequenino, então o tio Liberto também era meu tio. O tio Liberto era dos Belenenses

Belém! Belém! Belém!

naquele tempo, ali para os lados do Pombal, em Almada, aquele pessoal era quase todo dos Belenenses.

Belém! Belém! Belém!

Claro que isto de dizer quase todos é uma maneira de dizer. Era no tempo em que pontificavam no Belenenses, O Capela, o Feliciano, O Serafim Neves, o Armando Correia, o Artur Quaresma, o Manuel Andrade, o Mariano Amaro, o Vasco de Oliveira entre outros que tinham sido campeões nacionais em 1946, aliás no único título que os Belenenses conseguiram conquistar e que, durante cinquenta anos, conservaram como único campeão nacional para além de Benfica, Sporting e Porto. Mais tarde ao círculo de notáveis ainda se juntariam figuras como José Pereira, Vicente Lucas e o grande e extraordinário Matateu

- Gooooooollloooo de Matateu!

relatavam galhardamente na Emissora Nacional, não admira, portanto, a falange de apoio que durante anos os Belenenses tiveram e mantiveram.

À segunda-feira, logo pela manhã, o tio Liberto, na época já com uma certa idade e, portanto, já sem trabalhar, entrava pela taberna do António Marques pegava no Mundo Desportivo, lá na taberna havia sempre um ou dois jornais embora a maioria não os soubesse ler, e lia-o de ponta a ponta. E não o emprestava a ninguém enquanto eu não aparecesse ao pé dele, nem que tivesse de dar três voltas ao jornal. Eu só saía de casa quando a minha mãe me deixava, pois embora só tivesse aulas da parte da tarde tinha de ter os trabalhos de casa prontos, a tabuada na ponta da língua, as contas certinhas, a lição estudada e a história e as ciências sem falhas. E lá aparecia eu que era recebido quase já em desespero pelo tio Liberto

-  Senta-te aí, senta-te aí, diz lá o que é que eles aqui escreveram

que apontava para as legendas das fotografias e me pedia para que as lesse, sim as fotografias nesse tempo eram legendadas como que contando a sua história, sempre em primeiro lugar as fotografias do seu Belenenses[1]. E só depois de lhe ler as fotografias todas e a crónica do jogo, as declarações do treinador e as pontuações dos jogadores é que ele dobrava o jornal em quatro e me dizia

- Pronto já te podes ir embora

estás livre e lá ia eu, quase sempre a chupar um rebuçado de mentol que era a paga do tio Liberto à minha leitura para ele do Mundo Desportivo.



[1] Clube de Futebol Os Belenenses tratado pelos seus adeptos como Os Belenenses, mas também, muitas vezes, simplesmente como O Belenenses, daí no texto aparecer umas vezes no plural, outras no singular.