domingo, 26 de agosto de 2012

164. Pôr-do-Sol



O Sol já se punha e Marina estava preocupada. Àquela hora o seu homem já costumava estar a dar a saudação de santas noites no umbral da porta, algumas vezes, diga-se em abono de Marina e não tanto de Eliseu, com um grãozinho na asa, pois que na antiga carvoaria do senhor Bartolomeu, hoje um moderno café de aldeia, mas que ainda é conhecido pela carvoaria, pinga da boa era o que não faltava. De Pias vinham, e eram despachados, quase todas as semanas um duzentos litros de tinto, hoje já não em pipas mas sim em garrafões devidamente selados e certificados. Não era parvo nenhum o carvoeiro, que sempre colocava na mesa ou no balcão um pires de azeitonas, com orégãos e uma boa pitada de sal, temperadas na hora, que deixavam as bocas do Eliseu, do Gamito, do ti João da Burra e mesmo do Dr. Sesinando, numa sequeira de repetir a dose. Por vezes não eram só dois nem três copos que o Eliseu já levava a mais no bandulho, mas àquela hora já Eliseu trespassava o portão, com «santas noites, minha esposa». 

Desligou da tomada o ferro elétrico, pousou-o no descanso para que arrefecesse e debruçou-se no fogão para cuidar do jantarinho de feijões que já fumegava. Cheirava a carnes cozidas, mas os melhores aromas vinham de um chouriço de porco preto, de uma morcela de sangue e de uma moira de Barrancos, já para não falar do perfume da hortelã da ribeira que inundava toda a cozinha e que, trespassando as cortinas de fitas, mergulhava agora no alpendre. Se o seu Eliseu não vinha ao isco de tão eloquente aroma, então era porque alguma coisa lhe haveria de ter acontecido. Ter-se-ia ele esquecido que hoje era o seu aniversário? Ou então desta vez abusou, ficou pelo café do carvoeiro, teria já bebido para além da conta, não se daria por levantado da cadeira, o Dr. Sesinando ou o Gamito, principalmente este, a contarem anedotas brejeiras, o ti João da Burra a abanar a cabeça e a chamar-lhes pantomineiros, o senhor Bartolomeu a encher mais um canjirão de barro decorado de S. Pedro do Corval. Já lá iria ver, era só acabar de arrumar os lençóis no gavetão da cómoda, tirar o avental, passar água pelo rosto, alisar os cabelos, abaixar o lume no fogão e seguir para o centro da aldeia. Haveria de dizer-lhe das boas. Ai diria, diria.

Eliseu não estava no café do senhor Bartolomeu. Nem lá dentro, onde o calor começava a ficar incomodativo, nem na esplanada onde uma brisa, vinda do lado da barragem, convidava a mais um copo e a dois dedos de conversa. Mas não. Hoje nem o Gamito tinha passado por lá, nem o Dr. Sesinando que fora chamado de urgência ao casal do agricultor Romão para assistir ao parto de uma bezerra que estava em vias de correr mal, nem o ti João da Burra o tinha visto, isso confirmou-o ele mesmo, abanando a cabeça e dizendo para Marina que o Eliseu ainda não tinha parecido por lá hoje. O mesmo o confirmaram outros fregueses que, com ou sem azeitonas retalhadas, bebiam o seu copito, uns ainda encostados ao balcão, outros cá fora, em roda, entoando modas alentejanas em local onde o cante nunca se extinguiu. Despediram-se de Marina levando a mão ao chapéu, num ritual que parecia ensaiado, dado a simultaneidade do ato e ficaram a comentar entre eles, coisas que já se ouviam dizer, que não há fumo sem fogo, que era fim do mês, que o moço tinha recebido a féria, aquilo tinha apanhado comboio para Beja, onde de certeza se fora juntar com uma outra, para uns mulher perdida, para outros vadia, outros falando numa antiga namorada nunca esquecida, para os demais a amante. Pelo menos da fama e das bocas do mundo não se livrava, assim se calhandrava no intervalo entre dois Pias tintos ou brancos frescos, próprio dos fins de tarde no café do carvoeiro.

Chegou a casa já a noite se cerrava e só tanto não se notava porque o quarto crescente alumiava com as suas sombras os caniços do valado, prateava as ramagens do pequeno ulmeiro prantado quase à porta do quintal e projetava limões a preto e branco na alva parede da casa. Marina, ao ver o seu homem já chegado, encostado na ombreira olhando o portão por onde era agora ela que entrava, não conseguiu evitar que lhe escorresse uma lágrima pelo rosto. Primeiro ficou especada, sem saber o que fazer. Mas alguma fração de segundo depois correu para ele e abraçou-o pela cintura. Ela não podia crer que logo hoje, no dia do seu aniversário, o seu homem a fosse abandonar sem água vai, nem água vem. E ela que nunca tinha acreditado nos rumores e nas más-línguas estava quase a sucumbir ao teor dos mesmos. Um milhão de pensamentos lhe percorreram o corpo durante todo aquele tempo de espera mas agora só a intrigava aquele tarrasso que o marido trazia pendurado ao pescoço. «Oh homem, onde é que foste descobrir essa coisa que trazes aí pendurada ao pescoço, valha-me Deus», e benzeu-se. «É uma máquina fotográfica, novinha em folha. Encomendei-a para hoje, já que recebia a féria e que tinha de a trazer para te oferecer no teu aniversário. Só que o Gamito foi buscá-la a Beja e atrasou-se um pouco. Mas até há males que vêm por bem, como se costuma dizer», rematou. E para se explicar melhor ficaram os dois a contemplar o bonito pôr-do-sol que poucas horas antes Eliseu captara com a sua máquina nova. 


terça-feira, 21 de agosto de 2012

163. Enganar guarda-redes





Eugénio. Ainda me lembro dele como se fosse hoje. A malta chamava-lhe quase sempre Ogénio. Aliás, ele próprio, quando lhe perguntavam o nome, dizia chamar-se Ogénio. No meu bairro habitava muita gente com pouca formação escolar, como aliás era comum no país inteiro, por isso não era de estranhar que tivesse como vizinhas a Ofrásia, a Estrudes e até a Esprança. E cada um deles, independente do seu nome, cada um deles tinha o seu sonho. A Ofrásia sempre sonhou ser cançonetista mas, coitada, quando abria a boca as palavras articulavam-se menos do que as de Hermínia Silva quando caricaturava, nas suas populares entradas em cena, no Maria Vitória ou nos filmes do Lopes Vieira. Acabou sendo a melhor cerzideira lá da rua, apanhava malhas em meias como nenhuma outra e, com o seu pé-de-meia, abriu uma oficina de arranjos, ela era fazer bainhas, ela era apertar saias ou alargar outras e até arranjar mangas de camisas ou casear braguilhas de calças. Já a Estrudes, que ainda andou no segundo ano da Escola Comercial, mas teve que desistir quando o velho Sarafim, seu pai, viúvo e trolha de profissão, um dia desapareceu sem deixar rasto, deixando a miúda de 12 anos aos seus próprios cuidados. Começou a lavar escadas mas, felizmente, ao crescer, tornou-se uma bela moça e cobiçada, até que um senhor bem-posto na vida, já ela ia bem nos seus dezoito anos, fez caso dela, saiu do bairro, um dia apareceu lá a conduzir um belo espada e quando a cumprimentaram, as velhas amigas, «ó Estrudinhas isto, ó Estrudinhas aquilo», ela ripostava, «Estrudes não, Gertrudes, que eu agora sou uma gaja fina» e acabavam todas à gargalhada. Da Esprança fala-se pouco, até porque nunca foi rapariga de muitas confianças, quando conversava com as vizinhas era apenas no lugar de frutas do ti Toino, falavam do belo olho das couves, da frescura do feijão verde, das batatas que se desfaziam ao cozer e finalmente bom dia, boa tarde, que a Esprança não era de muitas falas. Quem nunca mais apareceu foi o velho Sarafim.

Mas eu comecei esta história para falar do Ogénio e não das minhas vizinhas, isso é conversa para calhandreiras, eu sou um mero contador de histórias, chamo-me Constantino e estou aqui para vos deixar testemunhos. O sonho do Ogénio era ser jogador de futebol e habilidade não lhe faltava. Quando, entre a rapaziada, se tratava de escolher equipas o Ogénio era sempre o primeiro a ser escolhido, dado o seu jeito inato para o pontapé na bola. E, para que conste, o Ogénio jogava descalço. Naquele tempo, a miudagem não tinha as condições que hoje os jovens têm, pavilhões, ringues de tartan ou de outros sintéticos e outras modernices e, diga-se de passagem, aqui o vosso contador de histórias acha muito bem. Jogávamos nos pátios, no intervalo entre prédios, pracetas e quintas onde não era pouco frequente termos de pisar os cardos para podermos fazer rolar a bola. E, de entre todos os que davam o pontapé na chincha, era o Ogénio quem se destacava. É claro que os putos de doze anos cresceram, cada um seguiu a sua vida, nem todos conseguiram ir ao encontro dos seus sonhos, como não o foi a Ofrásia, como não teve tempo de os ter a Estrudes e como nunca se soube se alguma vez os teve ou não a Esprança porque só falava da textura dos nabos, do viço das nabiças, da flor dos grelos, dos alhos chochos e da cebola grelada e bom dia ou boa tarde, conforme a hora do dia. Mas o Ogénio conseguiu o seu desiderato, veio a ser jogador de futebol, o problema dele não era a bola, o problema dele não era o pelado ou o relvado, o problema dele não era o elástico dos calções, pois acostumado a andar de calções atados com um baraço ou apertados com uma fita de nastro ou com um elástico de cuecas enfiado, comprado na capelista da dona Júlia do quarente e sete, por acaso uma boa senhora que até tinha uma filha bem engraçadinha, estava ele. O problema do Ogénio eram as chuteiras, para ele autênticos OVNIs, coisa que nunca tinha visto na vida e que nem sabia se saberia jogar com elas, resumindo, um suplício. Quem teve o privilégio de contar com o Ogénio nas suas fileiras foi o Atlético do Pragal, mas teve de haver condições e compromissos, parte a parte. O Ogénio podia treinar descalço mas nos jogos era obrigado a jogar com chuteiras, assim o exigiam os regulamentos e sem isso, nada feito. Ogénio anuiu e no primeiro dia que calçou as botas, um colega da equipa, para não o magoar, já que Ogénio fazia mesmo falta à equipa e não era conveniente que amuasse disse-lhe, baixinho e com cuidado, que ele tinha calçado as botas ao contrário. Ogénio, colocou o dedo em frente ao nariz e aos lábios e ripostou «chiu, isto é só para enganar guarda-redes».

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

162. Tripas



Não se contavam as minis que invadiam o tampo da mesa do café. Gervásio Garção e Jacinto Jesus tinham tirado a tarde para se enfrascarem e falarem dos velhos tempos. À pala de um pratinho de caracóis a que se seguiu um pires de polvo vinagrete e um de ovas de bacalhau temperadas com cebola, pimenta moída, azeite e vinagre, já lá iam mais de duas dúzias de minis.

Gervásio e Jacinto são amigos de longa data. Já se conheciam nos tempos de liceu. Tendo sido cada um de sua turma não tinham a intimidade que vieram a ter e a usufruir quando ambos decidiram, cada um por sua própria vontade, tirar o curso de oficial da marinha mercante, na Escola Náutica em Paço d’Arcos. Se o liceu não os juntou tanto quanto o comboio da CP, que os levava do Cais do Sodré à estação de Paço de Arcos, não raro até Oeiras, pois que na conversa amiúde se esqueciam de sair na estação devida, tendo de inverter a marcha para poderem chegar à escola, o João Balão e os seus petiscos eram de facto o elo de união que soldava como prata a amizade destes dois jovens estudantes. Tão amigos eram que quando acabavam o namoro com uma já o outro se agarrava à mesma febra e vice-versa para não complicar a prosa. Acabavam sempre na tasquinha a queixarem-se um do outro a atirarem culpas de um para outro «pois cedeste-ma porque a gaja não vale um pires de caracóis». E o outro «ó meu grande pilantra, para não te chamar outra coisa, a tua, mal se senta no banco do carro, adormece e começa a ressonar que eu, em vez de a levar até à praia de Santo Amaro, deixo-a mas é à porta dos paizinhos». E riam à gargalhada, sem nunca antes terem deixado de bater os fundos da garrafa, uma na outra, e soasse um uníssono «à nossa!».
Passaram mais de quatro anos sem se verem. Os cursos acabados, um ingressou na Soponata, o outro foi para a CTM, infelizmente companhias de navegação que a desastrosa política económica cá do burgo resolveu destruir, as rotas e os destinos eram diferentes e, quando um desembarcava, o outro navegava e de novo vice-versa, também para não complicar a prosa.

Foi um recado dado por Gervásio à mãe de Jacinto, num tempo em que nem telemóveis ainda existiam em Portugal, que acabou por reunir os dois amigos, primeiro num rememorativo almoço no Chico e, depois de um passeio pelas instalações da Náutica e alguns dedos de conversa com antigos professores e com a bonita empregada da secretaria, acabarem, finalmente, a tarde no João Balão.
- Lembras-te da Carolina Cintra que andava com a gente no quinto ano do liceu e que todos a conheciam pela fuinha? – Perguntou o Gervásio Garção, a propósito ninguém sabe de quê e já com mais álcool no estômago e no sangue do que aquele que lhe permitia abrir os olhos com firmeza.
- Se me lembro, ó Gervas – que era assim que Jacinto Jesus tratava o amigo – se me lembro. Era uma miúda que veio transferida de um liceu do Porto não foi? Andei caidinho por ela e ela nunca me deu a mínima bola.
- Vê lá se te portas com juízo, já não somos garotos – atalhou Gervásio com receio de que o Jacinto entrasse nas propostas e apostas que faziam com que trocassem de namoradas um com o outro, como quem empresta uma camisa para um jantar com a professora de inglês. – Eu agora sou um homem casado e já não vou nessas maluquices.
- Mas diz-me cá, ó Gervas. O que é que a Carolina Cintra tem a ver com o teu casamento?
- Caraças, pá, parece que não percebeste, ó tanso. – E virou mais uma mini de um só gole. – Casei com a Cintra, pá. Não deu para entenderes?
Naquele momento era difícil que alguém entendesse alguém. Tal era o arrastar de línguas que parecia não se descolarem do céu da boca e nem se desprenderem dos dentes. Já se tornava até difícil perceberem-se um ao outro, quanto mais entenderem-se.
- Pois ouve bem.  ó Gervas. À Cintra até as tripas lhe comia. – rematou o Jacinto que entre as miúdas do liceu, era conhecido pelo Jacintão, no seu metro e noventa e dois e quase 100 quilos de peso e deixando cair a pesada cabeça sobre o braço, adormecendo de seguida.
Nem a conta pagaram. O senhor João chamou-lhes um táxi, assentou com o taxista que primeiro deixaria em casa o Jacinto pois morava mais perto e estava bem pior da buba e só depois entregaria Gervásio à porta de sua casa. Pagou ao taxista a corrida por antecipação e recomendou-lhe, «cuide bem desses dois».

A dona Isménia de Jesus, mãe de Jacinto era uma senhora que sempre tivera Gervásio na melhor das contas. Assim, cada recado que recebia do Gervas com destino ao seu filho era como se fosse uma ordem a cumprir com a maior brevidade possível. Até entrava em ansiedade. Era quase meio-dia e o Jacinto ainda nem tinha acordado para o almoço. Ora essa! Agora que o moço gozava de umas merecidas férias de embarcadiço era deixá-lo descansar, mas assim não. Assim era demais. Mas enfim, hoje era desculpável porque na véspera não tinha chegado muito católico a casa. A olhar de mãe, ninguém engana. Mas logo que o viu descer a escadaria que ligava os quartos à sala, onde habitualmente tomava o pequeno almoço em casa, nem o deixou respirar.
- O Gervásio ligou-te
- E o que lhe disse, mãe? – Perguntou-lhe esfregando os olhos.
- Olha, disse-lhe que deves ter abusado um bocadinho, que nem jantar quiseste e que ainda estavas a dormir.
- Fez bem, mãe, em não me acordar. Obrigado, mãezinha. – E deu-lhe um beijo repenicado na bochecha que deixou dona Isménia toda embevecida. – O que é que o Gervas queria?
- Quer que vás lá jantar esta noite.

Carolina Cintra abriu a porta ao amigo do marido num à vontade de andar por casa. Um short mostra-badana de ganga azul-clara , uma blusa branca de alças, com um coração aplicado ao meio do peito de onde parecia as mamas quererem saltar e chinelas havaianas cor de rosa. Dava-lhe um ar desarranjado, meio blaisé, mas sexy. Jacinto não podia, nem evitou fulminá-la com os olhos.
- Olá fuinha - disse com um sorriso de estupefação mas de uma timidez mal disfarçada, quando Carolina lhe abriu a porta.
- Olá Jacintão. Entra. Não faças cerimónia.
- E o meu amigo Gervásio? – Perguntou, por não ter encontrado outra maneira para se desbloquear.
- Vê lá a chatice Jacinto. Sem mais nem menos, recebeu ao meio da tarde um telefonema da companhia, teve de fazer as malas à pressa. Apanhou um voo de última hora e já deve estar a caminho do Dubai. Vai render um piloto que adoeceu de repente. Coitado.
- Sendo assim se calhar é melhor eu voltar noutro dia. Até porque, com certeza não estavas à minha espera.
- Aí é que tu te enganas, Jacinto. Foi tudo combinado com o Gervásio. Não lhe disseste que a mim, me comias as tripas?
- Disse. Não posso mentir. – Respondeu ainda mais acabrunhado Jacinto, tentando desviar o olhar das cavas da blusa de Carolina, por lhe ter vindo à memoria o que Gervásio disse e deixou claro, de que os tempos de adolescente já tinham passado.
- Pois então passa ali para a sala de jantar. Vou-te servir um vinho fino enquanto se apuram as tripas. Hoje vais comer umas tripas à moda do Porto como nunca te passaram pelo estreito, carago.