sábado, 8 de setembro de 2018

236. O dono da bola - #7. O tio Liberto



Comecei a ler bem novinho. Hoje isso já não é de espantar. As crianças nascem com um tablet nas mãos, manuseiam um smartphone antes de completarem o primeiro ano de idade, mandam SMS aos três anos, jogam minecraft aos quatro e aos cinco deixam um whatsapp aos pais com uma fotografia da rave no refeitório do infantário. Os tempos mudaram mas eu, que mais ao menos tenho acompanhado a evolução tecnológica e também o hábito das crianças, pai de dois e avô de três, não lastimo ter aprendido em livros e em jornais. Comecei então a ler antes dos cinco anos de idade. E antes que vos fale do tio Liberto vou-vos contar uma pequena história que se passou mais ou menos por esse tempo.

Uma doença infetocontagiosa mandou-me alguns dias para a cama de um hospital. Para evitar contágio fiquei em isolamento

- Mãe, quero ir embora

isolado aos cinco anos de idade num hospital, sem poder ver pai nem mãe, uma crueldade! Só entravam médicos e médicas, enfermeiras e enfermeiros e auxiliares de limpeza. Com a idade com que fui internado é impossível ter memórias mais consistentes, mas nunca se me desapareceram flashes. Outras coisas sei de as ouvir contar ao longo dos anos. Mas há fotografias indeléveis cá nos meus recantos da memória. E é assim que ainda hoje me lembro, sem que por isso tenha qualquer pesadelo, nem sequer sonho, de uma enfermeira

- Ai bebes, bebes…

 a dar-me uma valente bofetada por eu chorar e me recusar a tomar os comprimidos. Leram bem? Uma enfermeira deu-me uma bofetada na cara, a mim, uma criança de cinco anos de idade, porque isolado, só, sem ver os pais nem o irmão, dias seguidos, chorava e não queria tomar os comprimidos. E então foi por escrito que através de uma senhora da limpeza,

- Se eu contar, ninguém acredita

que achava muita graça de eu, tão pequenino, já saber ler e escrever, que mandei uma mensagem aos meus pais,

- Ele diz que é para o senhor ler

e foi assim que a direção do hospital tomou conhecimento e mandou substituir a enfermeira no meu quarto.

Nessa época o analfabetismo atingia o país inteiro. Oficialmente, segundo números do Estado Novo, 40% das mulheres não sabia ler nem escrever e 29% dos homens estavam na mesma situação. Na verdade, quem “andava por aí” sabia bem que estes números eram de conveniência

Salazar!| Salazar!

a realidade era muito mais penosa. Uma dessas pessoas, que não sabia ler nem escrever, era o meu tio Liberto,
- Comunista, só pode ser

a dizer que é analfabeto, só podia ser comunista, senão não diria aquilo, escolas sempre houve

O tio Liberto não era meu tio de verdade. Era meu vizinho lá no pátio, mas como era irmão da minha tia Gracinda e filho da minha avó Felismina

. Anda cá que avó dá-te as sopas

e a avó Felismina dava-me as sopas de café com leite e eu acalmava-me e ameaçava a minha mãe se ela ralhava comigo, que não eram nem minha tia, nem minha avó mas era assim que as tratava desde pequenino, então o tio Liberto também era meu tio. O tio Liberto era dos Belenenses

Belém! Belém! Belém!

naquele tempo, ali para os lados do Pombal, em Almada, aquele pessoal era quase todo dos Belenenses.

Belém! Belém! Belém!

Claro que isto de dizer quase todos é uma maneira de dizer. Era no tempo em que pontificavam no Belenenses, O Capela, o Feliciano, O Serafim Neves, o Armando Correia, o Artur Quaresma, o Manuel Andrade, o Mariano Amaro, o Vasco de Oliveira entre outros que tinham sido campeões nacionais em 1946, aliás no único título que os Belenenses conseguiram conquistar e que, durante cinquenta anos, conservaram como único campeão nacional para além de Benfica, Sporting e Porto. Mais tarde ao círculo de notáveis ainda se juntariam figuras como José Pereira, Vicente Lucas e o grande e extraordinário Matateu

- Gooooooollloooo de Matateu!

relatavam galhardamente na Emissora Nacional, não admira, portanto, a falange de apoio que durante anos os Belenenses tiveram e mantiveram.

À segunda-feira, logo pela manhã, o tio Liberto, na época já com uma certa idade e, portanto, já sem trabalhar, entrava pela taberna do António Marques pegava no Mundo Desportivo, lá na taberna havia sempre um ou dois jornais embora a maioria não os soubesse ler, e lia-o de ponta a ponta. E não o emprestava a ninguém enquanto eu não aparecesse ao pé dele, nem que tivesse de dar três voltas ao jornal. Eu só saía de casa quando a minha mãe me deixava, pois embora só tivesse aulas da parte da tarde tinha de ter os trabalhos de casa prontos, a tabuada na ponta da língua, as contas certinhas, a lição estudada e a história e as ciências sem falhas. E lá aparecia eu que era recebido quase já em desespero pelo tio Liberto

-  Senta-te aí, senta-te aí, diz lá o que é que eles aqui escreveram

que apontava para as legendas das fotografias e me pedia para que as lesse, sim as fotografias nesse tempo eram legendadas como que contando a sua história, sempre em primeiro lugar as fotografias do seu Belenenses[1]. E só depois de lhe ler as fotografias todas e a crónica do jogo, as declarações do treinador e as pontuações dos jogadores é que ele dobrava o jornal em quatro e me dizia

- Pronto já te podes ir embora

estás livre e lá ia eu, quase sempre a chupar um rebuçado de mentol que era a paga do tio Liberto à minha leitura para ele do Mundo Desportivo.



[1] Clube de Futebol Os Belenenses tratado pelos seus adeptos como Os Belenenses, mas também, muitas vezes, simplesmente como O Belenenses, daí no texto aparecer umas vezes no plural, outras no singular.

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