quarta-feira, 30 de maio de 2012

144. Ismael (57) - Foi tamanha a confusão



«Vamos lá acabar com isto». Como não podia deixar de ser, foi Isaurinha Bate-Sola quem levantou a voz. E o borburinho, os diálogos cruzados e, às tantas, a gritaria instalou-se. «O que você quer é conversa», disse com uma total falta de respeito o Castro Ribeiro, um meritíssimo juiz, jubilado, que para os seus pergaminhos deveria ter tido mais tento na língua. «Pantomineiro és tu, ó cabeça de burro», disse, sem pudor nem decoro, o inspetor de estribeiras perdidas, virando-se para o rececionista. O filho do senhor Ismael da farmácia também não se quis ficar atrás e virou-se para o meu amigo Ismael aos gritos «ó galego manda mas é uma frigideira de óleo a ferver por cima destas cabeças de atum algarvio». A peixeirada estava instalada. Ninguém se entendia e Francisca chegou mesmo a vias de facto dando dois tabefes ao sobrinho e exigindo respeitinho. Dizia ela «o respeitinho é muito bonito». A senhora de Trás-os-Montes, que de idosa que era, já não tinha coração para aguentar tanto, encostou-se a um canto e desatou a chorar e a comissária Xana, fazendo jus à sua autoridade, pegou no cassetete e bateu duas vezes no fundo de um alguidar de latão que servia de decoração na parede dos fundos da tasca do meu amigo Ismael. «Parem já com esta merda ou vai tudo para a choldra. Mas vocês pensam que isto é o Pátio da Cantigas ou quê?». E virando-se para o dr. Castro Ribeiro disse-lhe «eu perco o respeito a um doutor juiz mas ou você se mete na ordem ou meto-o eu, seu António Silva de meia tijela». Depois virou-se para os outros polícias, tendo saído na rifa o anafado do chefe de brigada, Ismael de Almeida. «Olhe lá ó gordo do caraças. E se você parasse de comer esses passarinhos fritos e ajudasse a pôr ordem nisto? Daqui a bocado está mais bêbado que o Vasco Santana e nem haverá candeeiro que o valha para o levar para casa». O chefe de brigada não tugiu nem mugiu e foi necessária a intervenção de Ismaelix que gritou alto e bom som «Estes portugueses estão loucos!», tendo, ato contínuo, desatado à chapada por tudo quanto lhe apareceu à frente. Levou o Espinheira, coitado, que não tinha largado a sua gasosa nem aberto a boca a não ser para arrotar, levou o filho do senhor Ismael da farmácia que engoliu o Português Suave sem filtro que tinha acabado de acender. Levou a Isaurinha Bate-sola que deu uma volta no ar que até se lhe viram as cuecas, por acaso bem bonitas, brancas com rendinhas. Levou a empregada do Ismael Gusmán que fez voar uma travessa de jaquinzinhos e o respetivo arroz de tomate. Levou o rececionista que contar aos amigos, se viesse a sair dali ilibado, porque o bruto do Ismaelix partiu-lhe a cana do nariz com um bofetão. Levou a Ekatrina dois beijos nos beiços ou melhor dizendo, atirou-se esta ao pescoço do namorado tentando acalmá-lo e beijando-o afincadamente mas ele desviou-a calma e docemente, como se faz a uma namorada. Levou o velho Ishmail Baruch um empurrão na cadeira de rodas, que rodopiou de tal maneira que parecia que estava no poço da morte da feira popular. Levou o sobrinho, o judeu Ismael ben-Avraham, que até tem andado calmo, desde o dia em que por engano se sentou em cima de uma seringa com um sedativo que era para um paciente com perturbações no córtex, uma tapona no focinho que se deitou adormecido ao colo da enfermeira feia. Levou a enfermeira feia por se meter onde não era chamada. Levou o marinheiro Sebastião um sopapo, que se aquilo fosse um navio do século XVII teria voado até ao cesto da gávea. Voltou a levar a Isaurinha Bate-Sola porque o povo, empolgado, gritou bis na ânsia de lhe voltar a ver as cuecas com rendas. Levou o chefe de brigada Ismael de Almeida com um saco de milho na cabeça que até começou a ver pombos e, finalmente, levou Francisca um raspanete por ter escrito nos seus apontamentos que se um dia, o inspetor Ismael Sacadura Flores se armasse em Poirot de S. Nicolau, haveria um borburinho tamanho que era preciso ir chamar os franceses para acalmar a coisa. E assim foi, depois da coisa acalmada, pode Ismael Sacadura Flores dizer quem matou e porquê, a malograda Isabella, corista do Parque Mayer, com sete facadas no peito.


segunda-feira, 28 de maio de 2012

143. Ismael (56) - Por fim, o final


Desta vez ela foi efusiva. Confesso que a um dado momento até fiquei encabulado. Eu estava na praia com um bloco de apontamentos, uma anemómetro, um papagaio de papel, um cronómetro e uma fita métrica. Nem sei porque é que vos estou a contar isto, ainda são capazes de pensar que me estou a passar. É verdade que já faltou mais, mas estava eu nas minhas experiências de caráter cientifico quando ela gritou de cima do paredão «senhor escritor, senhor escritor», enquanto acenava o braço com uma carcaça com fiambre na mão, à qual, ato contínuo, deu uma dentada. Acenei-lhe de volta com o caderno de apontamentos em riste, já que não me dava jeito nenhum acenar-lhe com o anemómetro, nem mesmo com o cronómetro. E antes que eu pudesse arrumar tudo na caixa de cartão canelado, que me sobrou de uma oferta de vinhos no Natal passado, já ela tinha entrado areal adentro e inclinado a cabeça para me cumprimentar com dois beijos. A rapariga da esplanada, fanática de sandes de fiambre com manteiga, amante de Luís Sepúlveda, que quase me havia tratado com indiferença no nosso último encontro em Sesimbra, aparece-me quase eufórica a correr em pleno areal da Costa da Caparica, quase tropeçando numa prancha de surf espetada na areia, indo de encontro a uma criancinha que caiu de cu e ficou a chorar, enquanto uma rapariguinha, talvez dos seus doze anos, talvez irmão da mais pequena, a comer um chupa de rebuçado cor-de-laranja e a segurar na outra mão um moinho feito de papel de lustro, se virou para ela e lhe chamou «estúpida!». Indiferente, sorriso de orelha a orelha, depois das tais duas beijocas, perguntou-me «novidades?», e eu «nada».

Subimos lado a lado a escada de acesso ao paredão, ela já tinha acabado de comer a sandes, ajudou-me na caixa, não que fosse pesada, mas apenas por gentileza, eu «não te incomodes», ela «ora essa», eu «mas o contrário é que normal», ela «deixe-se de machismo», eu «estás então a chamar-me velho», ela «novo, não estou, mas você vai aí ocupado com o seu caderninho, não para de tirar apontamentos» e eu «já acabei», ela «o livro?», eu «não, os apontamentos», ela «pode-se saber de quê?», eu «não tem nenhum interesse para o crime do número 43» e ela «a propósito, eu estive cá a pensar umas coisas…». Chegamos finalmente á esplanada de um conhecido restaurante, em que o seu dono usa uma barba muito comprida e é um fanático adepto do Glorioso e sentamo-nos. E foi aí, já com dois cafés à nossa frente, ela a fumar um cigarro e eu «ainda fumas?», ela «infelizmente», eu «não deixas porque não queres», ela «qualquer dia vai ter uma surpresa», eu «pensa nisso», que reiniciamos o diálogo.

- Pensaste em quê?
- No seu livro.
- Nem sei se alguma vez irá ser um livro…
- Tenho andado a segui-lo.
- Não me digas que também lês blogs…
- E quem é que não lê?
- Tens razão.
- Eu arranjava-lhe já um final.
- Não tenhas pressa.
- Mas os seus leitores estão impacientes.
- hum..
- Nunca se deu conta?
- Dei.
- E então?
- Acho que só ficam a ganhar se esperarem.
- Senhor escritor, não sei se o hei-de tratar assim ou por senhor Constantino…
- Fica à vontade, podes mesmo tirar o senhor.
- Estava eu a dizer-lhe que pensei num final surpreendente.
- Não me digas que não estás a achar surpreendente a maneira como eu estou a preparar o final.
- Não é isso…

Tenho de interromper aqui o diálogo para vos dizer que em todas as frases eu poderia ter escrito disse ela franzindo um sobrolho, disse eu encolhendo os ombros, disse ela com um sorriso nos lábios, disse eu com ar preocupado e outras coisas que se costumam escrever e até mesmo pôr aspas. Mas não o fiz, propositadamente para não quebrar o ritmo e a fluência. Creio que me entenderão e provavelmente até aprovarão, neste caso concreto, esta tomada de opção.

- Então é o quê?
- Um final sem final.
- O que é que queres dizer com isso?
- Senhor Constantino, podemos falar baixinho para ninguém nos ouvir?
- Podemos…
- Então seria assim, bzz bzz bzz.
- bzz, bzz, bzz?
- Sim, bzz bzz bzz e ainda bzz bzz bzz. O que é que acha?
- Olha eu até há uns quinze minutos atrás pensei que, a seguir a Francisca, eu era o mestre dos finais complicados, mas estou a ver que tu superas-me.
- Acha que é complicado este raciocínio?
- Não acho, nem deixo de achar, vai é contra tudo o que eu tinha pensado para terminar o crime da rua 43.
- Por falar nisso, Já tem título?
- Bom, um crime… é um «Crime …»
- Eu estou é a perguntar-lhe pelo tríptico Crime da rua 43 – Histórias de Constantino e Ismael – Conto das ilhas de lá.
-Tenho alguns nomes provisórios. Gostas de “Hoje há pezinhos de coentrada”?
- E eu tenho dúvidas se será suficientemente apelativo. Ainda vão pensar que é um livro de culinária.
- Lá isso não é, mas que não se safa de ser uma grande caldeirada, isso não!

Convidei-a para almoçar. Aceitou. Chamamos o empregado e pedimos caldeirada para dois. Enquanto degustávamos um branco da península de Setúbal, acordamos os detalhes para o final do crime que vitimou Isabella Vicentini. No fim, depois da sobremesa, ainda me disse que teve pena de nunca ter conhecido Ismael Gusmán. Com certeza que os petiscos dele dariam um bom livro de culinária. E eu respondi-lhe que não me meteria nisso. E enquanto dois tratores alisavam o areal da Caparica eu, decididamente, achei que seria muita areia para a minha camioneta.


sexta-feira, 25 de maio de 2012

142. Ismael (55) - Angústia para o almoço


O esplendor da tasca do meu amigo Ismael deu-se na segunda metade dos anos oitenta do século passado. Para se almoçar na sua tasca, que não era muito grande, diga-se em abono da verdade, era necessário fazer fila à porta. Ismael, que respeitava todos os seus clientes por igual, não aceitava marcações, tinha um serviço rápido e eficaz, trazia um rapazito a biscate, que lá ia apenas fazer os almoços, mas que era muito despachado, simpático e diligente. Lembro-me de ele gritar para a cozinha «uma laranja descascada ao momento, para o senhor Constantino» e a cozinheira, a velhota, a que já me conhecia desde os meus tempos de universidade, por passar por lá aos fins de tarde quase sempre para petiscar, chegava a cabeça no passa-pratos, olhava para mim, dava um sorriso e dizia ao Ricardo, «aqui está a laranja do senhor Constantino». Mais do que ficar na bicha (*), custava-me estar a comer, com os olhos famintos daqueles que tinham chegado depois e que olhavam para as mesas quase como que a suplicar «despachem-se, pá, que a gente também quer comer». Lia-se-lhes nos olhos a frase «despachem-se, pá, que a gente também quer comer», pareciam trazer na testa um post-it colado em que se lia em letra impressa «despachem-se, pá, que a gente também quer comer», traziam na lapela dos casacos, nos colarinhos do polos, nas mangas das camisetas, néones que acendiam e apagavam com a dilacerante frase, para o meu coração de manteiga, «despachem-se, pá, que a gente também quer comer». Tatuagens, grafitis, cartazes, etiquetas, livros de instruções, bilhetes de elétrico, estampagens, anúncios classificados, publicidade estática, bonés, bulas de medicamentos, capas de discos, badanas de livros, caixas de jornais, subtítulos, sinalização horizontal, cupões de concursos de TV, talões de desconto em supermercado, identificadores dos polícias, placas de matrícula, campainhas das portas, em tudo e em todo o lado, aparecia a frase, «despachem-se, pá, que a gente também quer comer». Agora podem os leitores, destes momentos que eu passei com o meu amigo Ismael ou na sua tasca e que aqui vos costumo relatar, imaginar se um almoço pode cair bem a alguém, que está a comer uma posta barrosã grelhada ao ponto, com batata frita, dois ovos estrelados, duas fatias de bacon na chapa, estaladiças, uma travessa de arroz e uma salada mista e que está a acompanhar esta refeição, mais ou menos ligeira, com uma garrafa de vinho tinto do Douro, colheita selecionada ou garrafeira do enólogo, e os outros, coitados, famintos, desesperados a olharem para um tipo, com aquela cara de onde sobressaem dois olhos de carneiro mal morto, olhos de quem está com uma vontade inebriante de chegarem junto a nós e suplicarem de joelhos, de mãos postas, «despachem-se, pá, que a gente também quer comer». Eram tempos em que o governo não tinha ainda proibido que se fumasse nos restaurantes. Antes de serem pedidas as farófias ou o leite-creme, os morangos com chantili, o doce da avó, o bolo de bolacha, a manga de avião fatiada, o melão de Almeirim ou a maçã reineta assada com vinho do Porto, não para mim porque eu comia «laranja descascada ao momento para o senhor Constantino», como dizia o Ricardo, havia sempre um ou dois no grupo que tiravam o seu cigarro do maço. E antes que chegassem á mesa as sobremesas, o queijo da serra, o requeijão com mel, a sericaia com ameixas de Elvas, o toucinho-do-céu, o pudim flan, as cerejas, a tarte de amêndoa, já havia uma nuvem de fumo, ligeiramente acima das nossas cabeças que nos impedia de ficarmos olhos nos olhos com os olhos de desespero, os post-its nas cabeça, os néones nas lapelas dos casacos ou nas mangas das camisetas, as tatuagens, os cartazes, suplicando quase em delirium tremens, os rótulos das garrafas, o remetente da carta, o bordado de Viana, a frase, a frase, a frase, «despachem -se, pá, que a gente também quer comer». Ou então não. Talvez que em vez a carne das terras do Barroso, o bife do Alto Minho, o naco na pedra, a posta mirandesa, o bife à casa com ovo a cavalo, o prego especial à moda da Tasca, estivéssemos a comer uma posta de bacalhau na brasa acompanhada de brócolos e batata a murro, temperada com azeite quente e alho fervido no próprio azeite e com umas rodelas de cebola fininhas por cima e, quem sabe, acompanhado por um vinho branco de Borba, de Reguengos ou da Vidigueira e aqueles olhos suplicantes, aqueles post-its na cabeça, aqueles néones nas lapelas, as tatuagens, os grafitis, os cartazes, a publicidade estática, as senhas de almoço, o verniz das unhas, os monogramas do lenço de assoar, a capa do último LP dos Led Zeppelin, os versos do Ary dos Santos, a canção do Sérgio Godinho, a campanha eleitoral às sete da tarde na RTP, os toldos das esplanadas, os outdoors nas paragens de autocarros, a voz rouca da Kim Karnes, o Passeio dos Alegres e a frase, sempre a frase, a dilacerante, a desesperada, a suplicante … Também não me parece que fosse necessário tanto desespero, tanta angústia. A gente só ia demorar mais um bocadinho. Assim que tomássemos a bica. E além disso a gente já pediu a conta.

(*) – Fila de espera

Nota:
A foto foi tirada à mesa do almoço na Casa do Xisto, que fica num desvio (5 kms), na estrada entre Paredes de Coura e Extremo (entroncamento com a Nacional entre Arcos de Valdevez e Monção). Além da simpatia do dono, o sr. Délcio e do empregado, o senhor António, come-se bem, mas é mesmo bem, bebe-se bom vinho e se quiserem podem pescar nos lagos de trutas. 


terça-feira, 22 de maio de 2012

141. Ismael (54) - The Nutcracker ou a tristeza de Ekatrina ou Isto para mim são facadas



«Ekatrina», começou por dizer o inspetor Ismael Sacadura Flores, fazendo com que todas as cabeças rodassem em direção à bailarina clássica bielorussa, umas virando-se para a direita e outras para a esquerda sem contar com aqueles que estavam praticamente defronte da jovem que apenas a fixaram com mais atenção, «andava triste nos dias que antecederam a morte da sua companheira de quarto», continuou o inspetor Flores, sem que esta frase impressionasse quem quer que fosse.  «A verdade é que Ekatrina Smirnova tinha razões para isso», frisou dramatizando, Ismael Sacadura Flores, inspetor chefe da brigada de homicídios da Polícia Judiciária, ao acrescentar o apelido da, apesar de magra, ainda assim elegante bailarina. E dito isto, fazendo uma pequena pausa para apalpar o ambiente, questionou os presentes, quase como que declamando a pergunta, «E será que vos interessa saber o motivo dessa tristeza?» A assistência vai trocando olhares entre si, uns vão abanando a cabeça no sentido do assentimento, outros encolhendo os ombros tentando demonstrar uma falsa indiferença, outros um sorriso nervoso e outros até uma expressão de cumplicidade, mas Francisca, essa não, essa estava empolgada. E ainda mais empolgada ficou quando o inspetor se virou para o jovem Espinheira e lhe disse «Ó Espinheira, esta reunião está a cansar-me, resuma você o meu relatório sem se esquecer de referir que Francisca teve papel preponderante na descoberta do enredo». Não é, portanto, de admirar, que só faltou ela levantar-se, fechar os dois punhos como faz o Cristiano Ronaldo e festejar com os restantes. Ou então dar um beijo na testa do inspetor.

Espinheira, não obedeceu, em rigor, ao inspetor Sacadura Flores. Em vez de resumir como ele pediu, leu tudo com todo o detalhe. Leu mesmo coisas que para os meus leitores e principalmente leitoras, não interessam para nada, como, por exemplo, aquele dia em Ekatrina Smirnova encharcou a camisa de dormir com suor devido a um estado febril, derivado de uma gripe apanhada na praia do Meco. Ela, cujo corpo fora talhado e esculpido para as baixas temperaturas do clima continental europeu, onde ventos siberianos congelam até os bicos dos fogões, não aguentou os trinta e quatro graus que se fizeram sentir naquele dia. E porque é que eu digo que isto nada interessa às minhas leitoras? É porque no suor da crise, no culminar do delírio, vejam quanta poesia, aliás similar ao congelamento dos bicos do fogão, no ardor da leitura do termómetro, na efervescência da derme tisnada pelo sol, na cambraia branca da sua veste, deixava que os seios, não grandes como apraz a uma bailarina da Companhia Nacional, pouco maiores que dois limões, não raro a caberem sem excesso nas delicadas mãos do seu amado Ismaelix, deixassem desenhar dois escuros e salientes mamilos. Ora isto, como é bom de ver, não traz nenhum avanço para a divulgação, se bem que para a descoberta do crime já não seja assim tão linear, do autor de tão arrepiante crime que, como todos sabem, vitimou Isabella Vicentini. E se não o resumiu Espinheira, vai o escritor tentar fazer o melhor que sabe e pode, para que não fiquem nem confusos, nem com qualquer espécie de dúvida no contributo que Ekatrina aportou no desfecho desta novela.

Ekatrina andava triste. Recebera uma carta da União Soviética que o KGB conseguira fazer passar pelos canais clandestinos, escapando assim ao crivo da PIDE, em que se lhe anunciava que a sua missão tinha terminado. Sendo ela uma especialista em ouro, não ter descoberto onde Isabella Vicentini guardara a medalha original, fazendo-se passear com uma pequena joia de imitação, comprada algures num quiosque da Rua Barros Queiroz e comendo as papas na cabeça de uma espiã soviética, não abonava nada em seu favor pelo que teria de regressar de imediato à base. Este imediato, com uma condescendência inacreditável em serviços secretos, mas sabe-se também que o pai de Ekatrina tinha sido um homem muito influente no aparelho o que lhe dava uma pequenina margem de manobra, ressalvava o tempo que Ekatrina teria de gastar para poder partir sem dar nas vistas e muito menos que alguém desconfiasse, renunciasse ao seu contrato com a Companhia, fizesse uma pequena mala, adquirisse uma passagem para Paris e, não sabendo mais pormenores porque o Espinheira, apesar de detalhar não os referiu, atreve-se o escritor a dizer, etecetera e tal. 

Ekatrina andava triste, mas a grande tristeza de Ekatrina nada tinha que ver com o facto de não ter descoberto a medalha; nada tinha que ver com o ter de terminar assim abruptamente a sua carreira de bailarina, onde ela tinha investido quase tudo, nada tinha que ver com o ter de romper o namoro com o chefe de brigada Ismaelix, um homem que usava uma trança até ao meio das costas e um bigode à Chalana, porém branco, fosse naquela época, Chalana quem fosse, mesmo que ainda não tivesse nascido, que não tinha mesmo; não tinha que ver com a quantidade de cisnes que o lago tinha nem com a proteção do lobo e do Pedro; não tinha, também, que ver com a tasca do Ismael, que embora situada na mesma rua onde morava, servia uns carapaus de escabeche que lhe faziam lembrar o arenque de cebolada em conserva, mas para o bom, que ela não comia, como também não comia o arenque, por mor de manter a linha; não tinha nada que ver com o facto de em Belém se comerem pastéis de Belém; não tinha que ver com deixar uma cidade com marchas populares na avenida, com fado nas tascas e nas vielas, com pregões matinais ao figo da capa-rota e à fava-rica; não tinha nadinha, mesmo nadinha, que ver com a graça do amarelo da Carris nem com o azul do céu, espelho do azul reflexo do incomparável estuário, toalha do nosso contentamento. A sua tristeza prendia-se com uma coisa bem mais triste. Uma tristeza triste. Uma tristeza sombria. Uma tristeza pressagiada. Uma tristeza mais do que pressagiada, sabida. A tristeza que ela partiria para Paris e que Isabella partiria para nunca mais ser vista. Isso, ela sabia-o, não perguntem ao escritor porquê, porque o escritor acha que ainda não é tempo de o dizer. Quanto ao inspetor Ismael Sacadura Flores, virou-se para Ismael Gusmán, pediu-lhe para que ele servisse um copo de água ao jovem Espinheira, pois este estaria com certeza com a boca seca e virando-se para os assistentes, disse-lhes, com um embargo de voz, como se fosse uma noz a quebrar-se, que antes de saberem se Ekatrina iria ou não acompanhar a comissária Xana até aos calabouços da esquadra da Mouraria, o melhor era comerem todos um caldo-verde com uma rodela de chouriço, que era mesmo acabadinho de se fazer e escutarem o que ele tinha que dizer sobre a velha e misteriosa senhora de Trás-os-Montes. 


quinta-feira, 17 de maio de 2012

140. Ismael (53) - O rececionista



Como se pode verificar sem muito custo e após o que o inspetor já disse sobre Fernandinha, o capítulo 32 está todo errado. E se Francisca tem muito mérito nas suas notas e apontamentos que nos deixou no manuscrito, tem também grandes responsabilidades nos erros aqui cometido, pois a péssima caligrafia não deixa muita margem de manobra ao jovem Espinheira na sua leitura e interpretação. É assim que, quando se diz que Fernandinha recebe um telefonema de um primo de Lajeosa da Beira, uma análise mais atenta teria levado o cabeça-de-vento do Espinheira a interpretar que Fernandinha recebeu um telefonema de um primo, em Lajeosa da Beira. Isto é, não era o primo que estava em Lajeosa da beira, mas sim Fernandinha que estava em Lajeosa da Beira quando recebeu o telefonema do primo, que por acaso também era natural de Lajeosa da Beira, facto que não é relevante. E tudo teria sido diferente. Fernandinha iria emigrar para França, como aliás foi, e não teria ido dormir, como Espinheira nos quis fazer querer e, diga-se em abono da verdade, Francisca rabiscou, com um senhor rico da alta finança, como aliás, não foi. Coitadinha, embora isto não seja uma novela lamecha, permite-se-me que lhe chame coitadinha, desta roliça e coradinha menina que, no ano em que faleceu, não de morte morrida mas, como sabemos, de morte matada, a nossa protagonista Isabella Vicentini, ainda não tinha conhecido Lisboa. Sendo assim, e reposta que foi a verdade dos factos, não é de estranhar que alguns de vocês recuem algumas páginas, tracem a lápis toda a parte da história que deita Fernandinha na cama de uma pensão da Mouraria com um ricaço da época ou que tomem ainda a decisão mais radical de rasgar a página e destruí-la na lareira desvalorizando assim uma obra-prima como a que aqui se está a produzir, mas isso é decisão vossa, o escritor lava daí as suas mãos e tão pouco vai deitar mais achas nas fogueiras, nem na do Espinheira e tão pouco na de Francisca.

Interrogam-se agora, como aliás é de se esperar e nem de outra coisa o escritor está à espera que vos passe pela mente, que se não dormiu Fernandinha com o homem da alta finança, que mais tarde se descobriu ser pedófilo, mas que Constantino não quer revisitar nesta história, com quem dormiu o capitalista? Ou melhor, porque nos parece muito mais importante do que aqui andar com coscuvilhices de quem dorme com quem, quem anda a meter chifres a quem, se Sebastião gostava da Isaurinha ou da Isabella, se Castro Ribeiro fez um filho à Raquel Baruch, bem esta já é importante, é saber se essa tal pensão com águas quentes e frias, existiu ou não existiu mesmo no contexto do que aqui se romanceia. E para não vos deixar na expetativa, oiçamos o que o inspetor apresentou nas suas congeminações, quando se anunciou quem matou Isabella. E depois digam-me se eu não tinha razão em ter vindo a arrastar a trama até aqui.

«Pois então, minhas senhoras e meus senhores, posto que Fernandinha não existe nesta fase do enredo e, portanto, ninguém a conhece, ou melhor, é uma pacata rapariguinha que vai emigrar para França e talvez só daqui a uns vinte anos é que venha fritar pastelinhos nesta tasca onde nos encontramos», Ismael Sacadura Flores fez uma pausa, molhou os lábios num copo de tinto, e esperou que o narrador interviesse para dizer que este mix literário que já passou e continuará a passar por histórias da sua vida, romance policial, conto romanesco com palavras difíceis e cena eróticas, tem também o seu quê de fantasia, aparecendo Fernandinha e desaparecendo, como se fosse a fada madrinha do Espinheira, da Francisca, do galego Ismael, do inspetor Ismael, do Rogério e mesmo do filho do senhor Ismael da farmácia e, quiçá, do escritor. Continuou, então, já com a garganta clareada, o inspetor da Judiciária, «posto isto, interessa ou não saber quem dormiu com o homem do papel, que é como quem diz com o ricaço que gosta de meninas e de rapazinhos, interessa ou não saber se existe a tal pensão logo ali em cima, na nossa querida Mouraria, interessa ou não saber se jantaram no João do Grão, interessa ou não saber se na receção um rapazinho esperou a hora de silêncio, para sair à socapa do seu posto de trabalho?». E ante a admiração geral, a propósito de nada ou, pelo menos, de nada descortinável pelo próprio escritor, ouve-se o inspetor soltar uma sonora gargalhada, virar-se para o Espinheira, perguntar-lhe se desta vez pode confiar na sua interpretação do manuscrito de Francisca, pelo que recebeu desta um verdadeiro olhar fulminante, se o que iria agora ser lido poderia ou não ser considerado fidedigno ou se o escritor terá de vir daqui a mais uns quinze o dezasseis capítulos, dar o dito por não dito e arranjar desculpas de interpretação do manuscrito e jogar aos bichos Espinheiras e Fransciscas, quando ele, ele sim, o escritor, é que é o responsável por todo este emaranhado. Espinheira levantou-se, dirigiu-se ao inspetor, deu-lhe uma palmadinha nas costas como que a sossega-lo, pigarreou uma vez, pigarreou outra vez, ia começar a ler, mas talvez o nervosismo lhe tenha apanhado a voz e pigarreou pela terceira vez. Depois leu o manuscrito de Francisca e todos ficaram a saber que às três da manhã já não se ouvia um único ruído proveniente do amoroso enlace entre um depravado financeiro e, sabe-se lá quem, talvez uma meretriz. Ficou-se a saber também, mas desconfia o escritor que isto é invenção do Espinheira ou brejeirice do inspetor, que o obrigou a referir, pois de Francisca não viria uma coisa destas, que o jantar de bacalhau com grão fez das suas, pois vários traques foram ouvidos, alguns arrotos, eventualmente com cheiro a alho ou cebola, também e umas risadas cúmplices, até que tudo sossegou. E posto isto, diz-nos Espinheira que não há dúvida nenhuma no que Francisca escreveu, recebendo desta, desta vez, um olhar sorridente e cúmplice, que pouco depois a receção da pensão ficou vazia. Que o rapaz saiu sorrateiro e nem precisou de dar duas voltas à chave. Que desceu a Rua do Capelão, virou as costas à senhora da Saúde, atravessou o Martim Moniz, entrou na Barros Queiroz, subiu as Portas de Santo Antão, entrou no Jardim do Regedor, atravessou os Restauradores e, ao som dos saltos altos que pisavam a calçada, se escondeu atrás de um candeeiro na Avenida da Liberdade. Nessa noite, quando Isabella regressou a casa, sentiu medo. Sentiu muito medo.


terça-feira, 15 de maio de 2012

139. Ismael (52) - Exposições



Não seria fácil. Na tasca do meu amigo Ismael, já bem entrados nos anos setenta, talvez em 1976 ou 1977 não me recordo bem, ainda o meu amigo galego decorava as paredes da taberna com réstias de alhos e de cebolas, ramagens de loureiro atados com um cordel e até molhos de orégãos, estes em sacos plásticos para não se espalharem pelo chão. Esta decoração era alternada com pratos de barro, de cerâmica regional representando também em barro moldado, uma morcela, um papo-seco, um garfo e uma faca. Alguns azulejos típicos podiam ver-se pendurados nas paredes, com frases do tipo “hoje não se fia e amanhã também não” ou com quadras populares, onde por vezes a métrica não estava certa, mas que deixavam o cliente com um sorriso “se aqui vens de boa-fé / para seres servido com agrado / bebas cerveja ou café / nunca me peças fiado”. Esta acabou de ser inventada, mas eram do género, só que a minha memória já não dá para tudo. O bom e simpático Ismael Gusmán tinha também nas paredes uns fundos de pipa com publicidade ao produtor, recordo-me que dois deles eram de vinho do Porto, um da Offley e outro da Kopke. Quando lá entrava, uma das conversas que tínhamos frequentemente era que, um dia, ainda iriamos mudar toda a decoração daquelas paredes. Mas não seria fácil. Eu, provavelmente utópico para a época, falava-lhe que ele poderia aproveitar as paredes para fazer exposições de pintura ou de fotografia. Mas era cedo demais. Hoje entendo isso. O problema era, primeiro mudar mentalidades, inclusive a de Ismael, segundo, o sempre presente, ontem e hoje, dinheiro. Quem entra numa tasca para um pastel de bacalhau e um copo de três, às vezes, muitas vezes, a contar os tostões, iria investir em quadros? E muito menos em fotos. Não seria fácil.

Terminava a conversa quase sempre a incriminá-lo, coitado, que ele era um bota-de-elástico, que era mesmo um galego, que só via presunto fatiado, saladas de atum e pratinhos de burrié, que não dispensava o cheiro do louro e dos refogados, que para ele a cultura era o hóquei em patins do Liceo da Coruña e ele a chamar-me intelectual de merda, que se não fossem os tordos fritos às sete da tarde lá na tasca eu passava uma fominha do caraças e nem força tinha para jogar à bola e eu a querer levantar-me e arrancar e a dizer não «me ofenda senhor Ismael» e ele a chamar-me «puto mimado com pancada de intelectual de esquerda». Bom na verdade todo este período foi inventado, eu e o Ismael Gusmán eramos unha com carne, amigos como é difícil encontrar, nunca nos zangámos na vida, ele era uma belíssima pessoa e eu, um miúdo bem respeitador e comportado. Mas olhem que se aquela discussão nunca aconteceu, bem podia ter acontecido. E depois, para apaziguar, vir de lá a Fernandinha, sim porque foi exatamente naqueles anos setenta, que Fernandinha regressou de França, onde foi abusada por um barão francês, filho da mãe, fez ela muito bem em dar-lhe cabo da garrafeira, mas estava eu a dizer, vir de lá a Fernandinha, para acalmar os nossos ânimos, com uma travessa de salgadinhos, e como ela fazia bem os pastéis de bacalhau, mon Dieu!,  e um canjirão, se bem que nessa época eu fosse mais gasosas, mas de vez em quando virava um copinho e sendo na tasca do Ismael, não havia dúvida que era pinga de qualidade. Quanto eu não pagaria por uma discussão assim, só para ter por perto a presença da roliça, da sempre rubra, da decotada, e como ela se inclinava e deixa ver-se entre sutiãs, com mais ou menos rendas, bom vocês sabem, não digo mais nada a não ser de novo oh mon Dieu, da fresquíssima Fernandinha, não me lembro bem, mas com pouco mais de vinte anos. Mas não. Eu inventei isto tudo e sabem porquê? Para vos falar de uma outra coisa, prestem atenção ao parágrafo seguinte.

Ontem dia 14 de Maio foi inaugurada uma exposição coletiva de fotografia onde eu também estou presente. É a primeira vez que eu exponho uma foto impressa ao público, pois por aqui, quer no blog, quer em outros sites como o Facebook, o Flickr ou o Olhares, exponho diariamente fotos minhas. Mas assim em papel impresso é de facto a minha primeira vez. É no Fórum Picoas, em Lisboa e estará patente ao público até dia 18. Está a ver, amigo Ismael, quem é que se armou ao pingarelho, quem foi? 


domingo, 13 de maio de 2012

138. Noventa por cento



Sapatos I

Mais de  noventa por cento dos dias do ano, uso ténis. É uma vingança. Anos e anos seguidos usei sapatos, muito mais de noventa por cento dos dias. E de atacadores. Mas tenho de confessar que os sapatos são mais higiénicos. E não tem nada que ver com a qualidade dos ténis que uso, pois aqui o Constantino é rapazinho para calçar Adidas, Nike, Sketchers, New Balance e outras mariquices. Mas o cheiro dos pézinhos quando saem dos ténis não tem nada a ver com o que sai de um belo par de sapatos de couro genuíno, fabricado em S. João da Madeira. Acho que vou ter mais cuidado a escolher as meias.


Televisão I

Cá em casa há sete aparelhos, sete, agora parecia o anúncio aos toiros de uma ganadaria situada algures no Alto Alentejo, aparelhos de televisão. Quatro deles recebem emissão digital de um operador de cabo e as outras três é direto do coax. Destas três, duas estão avariadas. As digitais são também emissões HD. Com ou sem digital, com ou sem HD noventa por cento das vezes que os televisores estão ligados sintonizam o canal Panda. O neto merece tudo, digam cá se é ou não é verdade senhores avôs que me leem?


Tiques

Devo ter mais, mas este é aquele que até eu reparo. Dobro o dedo indicador da mão esquerda e aperto a narina esquerda. Ato contínuo aperto com o mesmo dedo a narina direita. Em ambos os casos aperto as narinas contra a cana do nariz. Mais de noventa por cento das vezes, passo depois o dedo por debaixo do mesmo nariz, quer dizer, do nariz, pois só tenho esse. Este gesto que é feito todo de seguida não é para limpar o nariz. Acho que não se limpa o nariz assim. Mas quando me apanharem a fazê-lo dêem-me um toque. Pode ser com o cotovelo ou só com um olhar. Pode ser que eu, aos poucos, perca o tique.

Sapatos 2

As solas dos sapatos devem ter mais bactérias do que os ares condicionados dos nossos hospitais. Andam pelo chão, pisam tudo, lixo, beatas de cigarro, pastilhas elásticas, o que é, rigorosamente, uma porcaria, cocó de cães, o que é, rigorosamente, uma grande porcaria e até... não digo, porque é, rigorosamente, um grandessíssima porcaria. Não é por acaso que me descalço à porta de casa, antes de entrar e só me volto a calçar para ir à rua. Isto, eu faço quase 100 por cento das vezes e também já o considero um tique. Só é pena que as minhas visitas não tenham o mesmo tique. Se calhar é porque elas não pisam cocó de cão.
 ♣

Leite

Esta nem a minha mulher sabe. Eu tenho um tique tetrapak. Depois de abrir um pacote de leite só gosto do primeiro copo. Se cada copo de leite não me acabasse por ficar mais caro do que uma água sem gás num café qualquer e sem fatura (a propósito, hoje paguei 75 cêntimos por uma garrafa de 33cl, que no supermercado custa menos de 10, leram bem, dez), só bebia o primeiro. Dá-me tanta raiva não ser rico, mas mais raiva me dá ser um incorrigível militante anti desperdício.

Sapatos 3

Os sapatos que mais gosto têm os cordões pequenos de mais. Os ténis que mais gosto têm os cordões compridos demais.




Tive um colega de trabalho que passava mais de noventa por cento do dia a sacudir o pó do casaco, da gravata, da camisa, das calças, da gravata, do casaco, da camisa, das calças, das calças, da gravata, do casaco, da camisa, do casaco, das calças, da camisa, da gravata. Eu sempre pensei que dobrar o dedo indicador esquerdo e apertar a narina esquerda, a narina direita e passar o dedo dobrado por debaixo do nariz era um tique.


Sapatos III

Será que os meus amigos não pisam cocó de cão?


Resulta

"Compraste pão?"
"Não, amor. Esqueci-me".
"Importas-te de ir comprar?"
"Ooohhh amor, já estou descalço"
"Então deixa. Eu vou lá".

Noventa por cento das vezes, resulta.


Televisão II

Desculpem acabar assim abruptamente o post mas tenho de ir ver as histórias do rei Babar.


quinta-feira, 10 de maio de 2012

137. Ismael (51) - Seria ela capaz de uma coisa dessas?



Poderia Isaurinha ter sido ela a autora do execrável crime? Isaurinha era uma moça acima dos trinta anos, mas de ar jovial. Sebastião andava pelos vinte e tal e, claro está, mais jovial ainda. Isaurinha era alta e esbelta. Sebastião, embora coxeando ligeiramente, era alto e bem constituído. Isaurinha tinha o seu palminho de cara. Sebastião, para homem, poder-se-ia dizer que era um pedaço. Isaurinha não era culta talvez o suficiente pra se apresentar a um concurso de televisão, se naquele tempo já houvesse concursos de televisão, mas não era nenhuma bruta. Era mesmo capaz de escrever uma frase com sujeito, predicado e complemento direto, ou mesmo com nome predicativo do sujeito, mas era voz corrente, discurso direto e por vezes comentado em voz passiva, entre o pessoal da Quinta do Conde de que ela não fazia a menor ideia do que era um sintagma. Sebastião também não, apesar de falar qualquer coisinha de inglês e arranhar o italiano. E o que é que tudo isto poderá contribuir para responder à questão inicial? Poderia Isaurinha ser a autora de crime tão hediondo? Isaurinha tinha já uma considerável experiência de vida. Não só vivera largos anos com o nosso taberneiro Ismael Gusmán, o galego, bem como, o que já é do conhecimento geral, andou enrolada com o filho do senhor Ismael da farmácia. Sebastião, por seu turno, não terá frequentado apenas os bares de má fama do Cais do Sodré. Embarcadiço, dos sete mares marinheiro, de todos os portos vadio, de mulheres de vida fácil, meretrizes de esquina e bailarinas de varão e de uma noite amantes, de uma noite Sebastião lhes era amante também, em uma noite só que fosse, Sebastião lhes frequentava as alcovas. Esta frase foi mesmo poética, reflete o narrador. Quites, diria Sebastião, se o confrontassem com Isaurinha. Poderia, então, Isaurinha ter perpetrado tão arrepiante desenlace? Isaurinha morava na Quinta do Conde, com seu pai, um honesto trabalhador manual, artífice dos coiros e dos fios ensebados, do martelo e da bigorna, das formas, do formão e da sovela, da arte de bem coser e martelar, de bem colar e de bem pregar e para bem da verdade, da nobre arte de bem engraxar e de bem puxar lustre, um, por assim dizer, artista, trabalhador e honesto sapateiro. Sebastião morava na Quinta do Conde, na casa de sua tia, emprestada porém tia, uma viúva respeitada e respeitadora que se, por acaso, o escritor lhe inventou um caso com um inspetor de polícia era caso que só pela cabeça do escritor podia passar para além do jovem Espinheira que sempre desconfiou de que ali haveria moira na costa, dado os embrulhinhos, ora de chamuças, bem denunciadas pelo seu cheirinho a caril, ora croquetes de atum de lata, ora dos dois, que o inspetor sempre levava quando apanhava o autocarro em Cacilhas, uma mulher de vários talentos, mormente a de contista e criadora de ficções de caráter erótico ou, para ser mais preciso, de textos para mentes desempoeiradas mas um tanto ou quanto safadas, uma anotadora de factos do dia-a-dia, uma observadora de olhares, de movimentos e de silêncios, em suma uma criativa. Isaurinha frequentava a mesma farmácia que Sebastião, Sebastião ia ao mesmo lugar de frutas que Isaurinha, Isaurinha comprava castanhas quentes e fumegantes ao homem do carrinho com assador, Sebastião era perdido por castanha assada. Isaurinha fazia um bacalhau à Braz como não existe, ainda hoje, um único restaurante que o faça. Sebastião encostava-se ao parapeito da janela de Isaurinha, sem que esta alguma vez o desconfiasse, a saborear o cheiro dos seus cozinhados. Isaurinha vestia vestidos colados ao corpo, realçando glúteos, excrescências peitorais, curvas perigosas. Sebastião usava calça à boca-de-sino e boina basca. Isaurinha ouvia o Tide na telefonia do carvoeiro, durante a semana, Sebastião ouvia o relato da bola na mesma telefonia, aos domingos. Poderia Isaurinha Bate-Sola ter consumado um crime que tem tanto de sanguinário como de horrível? Isaurinha viajava de cacilheiro de Cacilhas para o Cais das Colunas no Terreiro do Paço, só que era rara a viagem em que não se nauseava. Sebastião fazia o mesmo percurso mas nunca, em toda  a sua vida, Sebastião enjoou numa vigem. Sebastião conhecia perfeitamente a tasca de Ismael Gusmán, amigo do escritor, como já várias vezes aqui foi referido. Isaurinha era ela própria a concubina, a amante, a esposa que Ismael estimava desde que a cantadeira Lucrécia, um dia, se finou e se juntou ao Criador. Sebastião comia com gosto pataniscas de bacalhau com arroz malandrinho de feijão. Isaurinha garantia, embora em surdina, que um dia haveria de ser a sua patanisca, o seu caldo do arroz, o seu feijão encarnado. Sebastião olhava para Isaurinha como que lhe suplicando isso e ainda um arroz de lingueirão com alcabozes ou jaquinzinhos fritos. Isaurinha ripostava olhando para Sebastião oferecendo-lhe tudo e a ainda a sobremesa. Poderia Isaurinha ser tão vil que cravara não uma, nem duas, mas sim sete vezes a faca no peito de uma modesta bailarina de revista? Era esta a pergunta, nestes ou em termos parecidos, alguns deles já aqui usados pelo escritor, que o inspetor Ismael Sacadura Flores fazia aos presentes na célebre reunião da tasca de Ismael, na rua do Correeiros, enquanto entre ela e Sebastião o inspetor dissecava semelhanças e cumplicidades. E, tendo Isabella Vicentini se atravessado no caminho dos dois, pois se Sebastião já convergia com Isaurinha, que necessidade havia de se formar ali um entroncamento? É neste mar de ciúmes e paixões, de amores e ódios, de fados e romantismos, de músicas e silêncios, de nuvens e de cacimbo, que Ismael Sacadura Flores navega, onde Sebastião flutua e onde, provavelmente Isaurinha Bate-Sola se poderá afundar. Mas o escritor fundeia aqui. Mandou parar a máquina e baixar a fateixa. Não ficará à deriva, mas só responderá à pergunta se poderá ter sido Isaurinha a execrável criminosa, mais tarde, lá pelo virar da maré.


terça-feira, 8 de maio de 2012

136. Genoveva




Gabo-lhe a paciência, mas também a ingenuidade. A primeira pessoa que lê o que escrevo é a minha mulher. Não publico nada que ela não tenha lido primeiro. Nunca me propôs alterar o sentido de um texto, mas dá-me sugestões para as continuidades. E faz comentários.

"amor, a nossa empregada não se chama Genoveva"
"eu sei"
"mas escreveste várias vezes Genoveva"
"mas também não digo que é a empregada. A propósito, se fosse a empregada não seria despropositado eu gabar-lhe a beleza das mãos?"
"então sou eu amor?"
"não"
"não?"
"não"
"porque não?"
"não tens cabelos loiros e compridos"
"pois não"
"logo não podes ser a Genoveva"
"pois não... inventaste a Genoveva?"
"inventei"
"ah"
"..."
"e quem é a Genoveva?"
"não te disse que inventei?"
"disseste"
"então..."
"podias ter-lhe dado outro nome..."
"podia"
"porque é que não deste?"
"porque não me apeteceu"
"apeteceu-te Genoveva?"
"apeteceu"
"se quiseres deixo crescer o cabelo"
"para quê?"
"e posso pintá-lo de loiro"
"para quê?"
"para amarrares a brisa"
"mas hoje nem uma aragem corre”,
"não estás a ser romântico"
"desculpa"
"posso ser a tua Genoveva?"
"podes"
"posso mesmo?"
"eu disse que sim"
"posso amarrar-te com os meus cabelos loiros?"
"só depois de me fazeres um sumo de ancoras selvagens"

Fiquei com a impressão que a minha mulher não vai querer ler mais nenhum dos meus posts

domingo, 6 de maio de 2012

135. Ismael (50) - Estes não são os suspeitos do costume



Com apenas dois toques, nem um, nem três, mas realmente com apenas dois toques, se bateu à porta fechada, naquele fim de tarde, da tasca do galego Ismael Gusmán. Se Fernandinha não tivesse sido mandada embora daquele período histórico e apenas autorizada a voltar à novela lá para meados dos anos setenta do século XX, sob pena de graves consequências para a sua integridade física e, principalmente, para a integridade mental do narrador e dos leitores desta trapalhada, teria sido ela e levantar-se prontamente daquele banco de pernas altas, em que se costumava sentar por detrás do balcão, onde assentava um cotovelo e, de palma da mão em concha virada para cima, pousava o queixo nas horas mortas e espreitava de viés para a televisão a preto e branco, colocada numa prateleira por cima de um quadro com a fotografia de D. Ismael de Gusmán y Toledo, o falecido pai do meu amigo Ismael. Teria sido ela a levantar-se, como dizia, a encaminhar-se célere para a porta, para, corrido que fosse o ferrolho e entreaberta a dita, espreitar no lusco-fusco que àquela hora já era, sim porque a reunião se estava a alongar e a perguntar quem seria que tão despropositadamente batia assim na porta de uma taberna, sem usar a aldraba para o fazer. Teria sido, portanto e volto a repetir, Fernandinha que se iria inteirar do motivo de tão inesperada, para ela, quanto inoportuna visita, principalmente sendo aquela uma reunião da iniciativa de um inspetor muito conceituado da nossa polícia Judiciária. Muitos anos se haveriam de passar para que a eficaz e necessária polícia de investigação criminal viesse a ter um outro Flores, tão proeminente como o nosso Ismael Sacadura Flores, esse que um dia ainda presidiria a uma Câmara Municipal, quem haveria de dizer, deixando mais pobre a produção telenovelesca. Mas isso são coisas do futuro e nós cá continuamos em 1956 que foi quando Isabella Vicentini foi, efetivamente e, nunca é demais repetir, barbaramente assassinada. Com Fernandinha, coisa que muitas leitoras e principalmente leitores ainda hoje não perdoam ao escritor, fora de cena, quem teve que ir abrir a porta foi o nosso anfitrião, Ismael Gusmán, caramba que o narrador é chato, já lhe conhecemos o nome. Mais chato é o escritor ripostaria o narrador, sabendo de antemão que os outros também o sabem. Ora quem bate apenas duas vezes, nem uma, nem três, apenas duas, querendo com a sua presença inteirar-se de tudo e dos porquês das coisas, fazendo toc  toc em todas as portas, não poderia deixar de ser outra senão a comissária de polícia Alexandra Semião, mais conhecida nos meios policiais por Xana, só não podendo ser chamada de Xana Toc Toc porque essa já é uma marca registada, que os miúdos, vá-se lá saber porquê, gostam de ver no Canal Panda.

Apresentada que foi a comissária Alexandra Semião aos presentes, que ficaram a saber por quem seriam depois acompanhados à Esquadra da Mouraria e já com a porta da taberna novamente fechada, serviu à senhora, o nosso Ismael, o Gusmán, porque o outro é polícia, um café em chávena de vidro de onde exalava um cheirinho a bagaço mas que, por mor da senhora comissária Xana estar de serviço, todos comeram e calaram, não fosse o diabo tecê-las. E continuou então o inspetor Ismael Sacadura Flores, a quem Xana tratava por, «Ó Sacadura isto», «Ó Sacadura aquilo», só faltando mesmo tratá-lo por Sacadura filho, Sacadura amor ou Sacadura querido, tal era a intimidade que aparentava ter com o, efetivamente chamado, Sacadura, que com a sua dedução racional e linear, que como sabem, leitoras e leitores, já vos tive ocasião de dizer antes, conduziu à descoberta da careca do pilantra, que é como quem diz, conduziu a quem cometeu tão horrendo crime e que, se não fosse aviltante para a própria natureza do crime, dir-se-ia, quem molhou a sopa no peito da bela, elegante, simpática e também sexualmente poderosa, bailarina italiana, só que isso do sexualmente poderosa não está nas cogitações do escritor revelar neste livro. E é neste contexto que, virando-se para o Dr. Castro Ribeiro lhe perguntou se este não teria nada a dizer aos presentes sobre a sua relação familiar com o marinheiro Sebastião, não tendo contudo a intenção de deixar o juiz de direito jubilado, Castro Ribeiro, falar, já que aquilo não era um interrogatório, mas sim uma preleção.

E abrindo um caderninho pouco maior do que um bloco de apontar números de telefone, leu em voz baixa num murmúrio que nem um tísico conseguiria apanhar uma só palavra, duas ou três linhas, tendo-o voltado a fechar, guardando-o de seguida no bolso do lado direito do casaco. E continuou agora em discurso direto, apenas para deixar descansar o narrador, que já lhe dói a garganta de tanto narrar, dando, por sua vez, a vez ao escritor, que está folgado das pontas dos dedos, de continuar a escrever, pois que ainda é jovem, apresentável e de boas famílias. Só que por causa das tosses e talvez fazendo birra por causa desta inesperada atitude do narrador, isto hoje está bonito, está, resolveu o escritor dar um salto no discurso e passar quase para os finalmente.

«… E é assim, que vamos encontrar Francisca, a tratar como irmã a pobre Raquel Baruch, a quem chamavam Rosa da Madragoa, pois todas as manhãs saía do cais de Santos com uma canastra à cabeça a apregoar sardinha viva da costa. Nunca o senhor Ishmail perdoou ao Nuno, que era assim, por Nuno, que a sua sobrinha se referia a ele quando escrevia em cartas de papel fininho e, não menos de baixa gramagem, envelopes circundados com as cores nacionais, vermelho e verde e que traziam já pré impressos a menção “por avião” quando escrevia para seu tio Ishmail Baruch, que na época ainda vivia na Áustria». Neste momento Castro Ribeiro baixou a cabeça e olhou para o chão, que é para onde olham as pessoas que baixam  a cabeça, desde que não estejam de olhos fechados. Continuou Sacadura ou seja, mais formalmente como o momento exige, Ismael Sacadura Flores: «Quando o jovem Sebastião nasceu, ainda não se notava que iria ser coxo como o seu tio-avô Ishmail, mas via-se logo que era a cara chapada de Castro Ribeiro, seu pai. Nuno Castro Ribeiro vinha com alguma frequência a Lisboa por mor da sua paixão por Raquel, que conheceu um dia que teve de escolher um rodovalho para grelhar numa paródia de comes e bebes com outros colegas advogados num congresso em Lisboa, deixando vazios, por dois ou três dias por semana, os seus aposentos em Vila Nova de Gaia onde em tempos teve um escritório de advogados, mas isso foi antes de se ter tornado juiz, mas nunca foi capaz de assumir a paternidade do futuro marinheiro». O narrador ousa interromper o escritor para informar que naquele dia, não só o rodovalho era fresquíssimo mas também a salada mista estava magnífica, com tudo o que tinha direito, incluindo os pimentos assados e para perguntar aos leitores se isto não está a ficar romântico, digno de uma novela radiofónica, onde um juiz de direito, ex-advogado de nome e créditos firmados na praça nortenha, que até come rodovalho que é um peixe fino e caro, se apaixona por uma simples peixeira, vendedora de carapaus e de sardinhas, vá lá de chicharros também e, uma vez por outra, rodovalhos. Voltando de novo ao escritor e ao discurso direto do inspetor Sacadura:  «Quando Raquel morreu, após ter escorregado numa rampa de acesso ao Mercado da Ribeira e batido com a canastra numa montra e com a cabeça no chão, pensa-se mesmo que a canastra só serviu para a desequilibrar ainda mais, Nuno veio a conhecer Francisca que era como que uma perceptora de Raquel e foi amor à primeira vista». Cá está mais uma cena romântica, tão linda, que faz até chorar, ousa interromper de novo, o narrador. E continua o inspetor da polícia: «Casaram pouco tempo depois e Castro Ribeiro pode assim ajudar a criar o filho, a quem tratava carinhosamente por Sebas, este que sempre tratou afetuosamente Francisca por tia e esta, por sua vez, que sempre tratou, carinhosa e afetuosamente, para poder usar os mesmos adjetivos, Sebastião, como um filho. E porque é que o senhor Ishmail Baruch, nunca perdoou o Dr. Nuno Castro Ribeiro?» perguntou o inspetor Ismael à assistência, ciente que, apesar do discurso um bocado enrolado do polícia, não se tinham esquecido ainda de que foi praticamente assim que o inspetor, pela mão do escritor, já que o narrador nem se quer meter nisso, começou este pedaço de texto. Pois continuou então o reputado Ismael Sacadura: «Nunca lhe perdoou porque não gostou nada, ouso até dizer, não gostou mesmo nada, mas mesmo nada, friso, repito e acrescento que poderá ter sido ou terá mesmo sido a gota de água que fez transbordar o copo, ou seja, o que conduziu ao corte de relações entre os dois homens, de saber que um homem de tantos recursos, como era e ainda é o Dr. Castro Ribeiro, e com aquela afinidade familiar, ex-namorado da sua sobrinha, que sabe-se lá por que razão teria escolhido Portugal para viver, sem se saber ainda se naquele tempo, em meados dos anos trinta do século passado, Portugal iria entrar ou não na Segunda Grande Guerra e também não se saber ainda se viria a haver alguma Segunda Grande Guerra e se o Hitler iria perseguir ou não os judeus ou quiçá outro povo, pai, embora não oficialmente assumido do seu sobrinho-neto, se abastecia de charutos marados num quiosque rasca do Cais do Sodré em vez de os comprar na sua loja, a genuína casa havanesa, a única importadora autorizada dos mais puros charutos cubanos. E se Castro Ribeiro tinha recursos para os comprar! E se eles eram de primeira qualidade! Primeiríssima! E se quisessem uma testemunha, não do crime, mas sim da qualidade dos seus puros, era chamarem o Dr. Ismael ben-Avraham, o seu mais conhecido consumidor».

Aqui chegados, o escritor começa a entrar com as ideias em parafuso, quer continuar a escrever um livro mas está a sair-lhe uma coisa embrulhada em folha de tabaco e, por isso, pede ao narrador para tomar ele as rédeas do texto antes que ninguém fique a não perceber patavina da história. E é assim que Constantino, outra vez no comando da narrativa, se vê obrigado, para rematar, a dizer que isto que acabamos de ler explica muita coisa.


quinta-feira, 3 de maio de 2012

134. Temporal



Quando hoje acordei senti uma vontade inexpugnável de escrever. Por outro lado, o narrador que há em mim, divertia-se com este impulso e saía de mansinho para se assomar à janela. Lá fora chovia e fazia um vento pré-ciclónico. Eu, escritor, queria dizer que as gotas que me cobriam, como se de uma diáfana cortina se tratasse, os vidros da minha janela, auguravam que lá fora chovia. Eu, escritor, queria escrever que o zumbido que pelas frinchas das janelas e das portas me penetrava os tímpanos, sugeria-me que lá fora o vento enrolava nuvens, transportava pólenes, beijava gaivotas e acariciava os ramos do meu plátano. Eu, narrador, abri um pouco a janela e fechei-a de seguida. Constatei e transmiti ao escritor, como se lhe fizesse um favor, que lá fora chovia a cântaros e que um vendaval arrasava árvores e telhas. Sem querer, estive quase a deixar escapar um palavrão, mas o escritor reprimiu-o. Eu, escritor, que hoje pela manhã acordei cedo com uma inexpugnável vontade de escrever, terrível vontade essa, obsessiva compulsão para o papel e a caneta, reprimi o palavrão do narrador e não o escrevi. Com palavrões não se faz poesia e a chuva que bate em pancadas no zinco do telhado da garagem em frente à minha janela, umas vezes fortes, outras irregulares, mas suaves, pode não ser poesia mas escreve pautas de fás sustenidos e bemóis de sol e de dó, em compasso ordenado numa sinfonia concorrente com a do cantar do rouxinol. Eu, narrador, preocupei-me em contar ao escritor que hoje os pássaros não saíram dos ninhos, não abandonaram o resguardo das folhagens, não espreitaram para fora das chaminés, não colocaram asas fora dos telheiros. Eu, escritor, depressa compreendi que o pica-pau não sairia do buraco da sua árvore para acompanhar a sinfonia das águas cadentes no telhado de zinco da garagem em frente à minha janela, nem o silvar da flauta de vento que me entrava pela frincha da janela do quarto de dormir. Eu, narrador, quis que o escritor soubesse e disse-o em voz alta, que aquela frincha precisava de conserto e não de concerto e que existiam fitas isoladoras apropriadas. Talvez que hoje fosse um dia bom para os arranjos, talvez que hoje fosse o dia certo para que saísse à rua e na loja de ferragens procurar remédio para as frinchas da minha janela do quarto de dormir. Eu, escritor, pensei que isso não seria muito conveniente se bátegas de água fustigavam campos e estradas, enchiam represas e barragens, lavavam almas empoeiradas, molhavam mais a imensidão do mar, se o vento sacudia para-chuvas. Eu, escritor, olhei-me de pantufas e de pijama de cetim, acendi o cachimbo, dei duas baforadas e preparei-me para descrever o pequeno-almoço, que em breve Genoveva me serviria, de crepes de centeio com doce de mirtilo e amoras, de leite de cabra em jarro da Companha das Índias, de café quente de São Tomé (que Genoveva preparava primorosamente), cujos aromas se misturavam com âmbares do perfume de Genoveva, com as rosas do seu odor a sabonete e com os pólenes transportados pela brisa que, agora sim, amainara o vento, prendera-o com amarras feitas com fios dos cabelos loiros de Genoveva e beijava o fumo exalado da minha pipa de antigo marinheiro. E a tosta morna já aguardava o foie-gras, a melancia e o ananás, descascados pelas finas e brancas mãos de Genoveva, cobriam por completo um desenhado prato de porcelana, o sumo de ancoras silvestres resplandecia nos resplandecentes cristais que a cristalina Genoveva parecia beijar quando lhe tocava com os veludos. Eu, narrador, gritei para mim próprio, escritor, que as torradas já se estavam prontas na torradeira, que o copo de leite tinha de ir de imediato para o micro-ondas de forma a evitar as torradas, acabadas de sair, não viessem a arrefecer. Eu, escritor cheguei à cozinha, não sem antes ouvir a crítica do narrador que me censurou do meu aspeto desgrenhado, com a barba por fazer, embora de cara lavada, olhei para o leite no pacote tetra-pak brotei-o alvo para um copo de vidro, olhei para a amarela cor de margarina que a manteigueira de plástico continha, dei de caras com azul anil da toalha de mesa que tinha deixado de véspera, reparei no cor-de-laranja dominante que emanava da fruteira repleta de laranjas e tangerinas, tomei nota do vermelho doce de morangos ainda no frasco de supermercado e deslumbrei-me coma o roxo das glicínias que da floreira me trepavam o candeeiro de jardim. Eu, escritor, sabia que aquela seria uma manhã de arco-íris. Eu, narrador, tomei o pequeno-almoço, vesti uma inenarrável gabardina, penteei os cabelos, fixei-os com brilhantina e saí para comprar o isolamento para as frinchas da janela. E se vos narrei, narrado está.


terça-feira, 1 de maio de 2012

133. Ismael (49) - Isaurinha Bate-Sola saiu-se bem



«Ó homem, deixe-se disso», vociferou Isaurinha Bate-Sola. «Isso agora não interessa para nada», rematou. Afinal a célebre frase da televisiva Teresa Guilherme não passa, aparentemente, de um plágio. Decorria o ano de 1956 e, reunidos na tasca de Ismael Gusmán, na Rua dos Correeiros em Lisboa, os suspeitos e não suspeitos, os inspetores da polícia e até o taberneiro, ouviam a preleção de Ismael Sacadura Flores. Afinal quem teria matado com sete facadas uma pobre, infeliz, desgraçada, desditosa, desventurada, infortunada, malfadada corista italiana que ganhava, parece que honestamente, o pão, mostrando as pernas e fazendo realçar as nádegas, sobre sapatos de salto muito alto, num teatro de revista no Parque Mayer, em Lisboa, era o que se pretendia saber e vinha agora o jovem Espinheira ainda imberbe, quiçá eivado de pensamentos malinos que à época eram deveras, feroz, assanhada e diga-se que, para bem da moral e dos costumes, justamente censuráveis, propor à assembleia que se fizesse uma pausa para que ele pudesse ler mais um capítulo, mais propriamente o VII, do conto de Francisca, apelidado com algum a propósito, diria o narrador, quiçá porque adora a palavra quiçá, quiçá desanuviador do pesado ambiente que entretanto se gerara, apelidado, dizia o narrador, como um conto de perdição. «Isso agora não interessa para nada» é pois a frase chave deste intermédio que surgiu no referido meeting, frase que hoje estamos a ver terá sido proferida pela primeira vez por Isaurinha Bate-Sola. O escritor ainda pesquisou alguma literatura antiga desde Estrabão até Sófocles, passando por Platão e Aristóteles, lendo minuciosamente o antigo testamento, procurando em Émile Zola e Eça de Queiroz, em Camões e Cervantes, em Jean-Paulo Sartre e António Damásio, de Pessoa e Álvaro de Campos a Drummond de Andrade, de Jorge Amado a Erico Veríssimo, de Descartes a Lavoisier, de Martinho Lutero a João XXIII, não se encontrou elocução similar, pelo que «Isso agora não interessa para nada», à falta de melhor, vai ser atribuída a Isaurinha Bate-Sola, já que neste relambório ainda não teve qualquer mérito, tendo encornado até, passe o calão de circunstância para dizer o mesmo que colocar um par de chifres, o meu amigo Ismael Gusmán, o que para o escritor é imperdoável e procedido, em várias ocasiões e situações, como uma puta, que é o que ela era na verdade, coitado do pai, um honesto sapateiro. Quem não gostou muito disto tudo foi, claro está, a nossa romancista surpresa, a nossa contista de eleição, a nossa anotadora de serviço, a inesperada amante de Ismael Sacadura Flores, a parte-corações, pois até o Rogério ficou dececionado, a tia, talvez emprestada, de um marinheiro sem sextante nem rumo, mas acima de tudo a grande inspiradora do escritor que aqui modestamente se apresenta, como Constantino Guardador de Vacas, já que não tem mais idade para sonhar, a nossa bem conhecida Francisca. E se não chegaram a vias de facto foi por causa de Ismael Gusmán.

Ismael Gusmán era uma boa pessoa. Disso creio que o narrador já conseguiu levar a mensagem aos leitores deste conto de Constantino, cuja biografia já teve ocasião de ser publicada. O narrador, neste momento e uma vez já conhecem detalhadamente o escritor, apenas pode acrescentar que ele é benfiquista e que isso não foi incluído na biografia para não criar divisões entre os seus leitores, pois consta que há pelo menos dois que são do Atlético e um que é adepto do Carrazeda Futebol Clube, uns seis que torcem pelo Sesimbra e, ainda outro, pelo Quarteirense. Ismael Gusmán era um homem pacífico, apaziguador e absolutamente nada presunçoso. Quando soube que o escritor iria referir estas suas caraterísticas de homem comedido, desempoado, simples, humilde, encabulado, recatado, falou ao ouvido do escritor para que ele não gastasse todos os sinónimos num só texto ao que o narrador acedeu e nem vai aqui reproduzir o que mais sobre Ismael Guzmán o escritor se espraiou. Pois Ismael Gusmán, apagou a luz e no silêncio repentino que se instalou, o jovem, o imberbe, o mancebo, fez ouvir a sua voz e leu para quem quis ouvir, que foram todos menos Isaurinha Bate-Sola, o sétimo capítulo de “Contos da ilha de lá”  de cuja autora, Francisca, só não se notou que estava ruborizada porque as luzes continuavam apagadas.

“Os membros da tribo só saíam da aldeia por dois motivos. Caçar e, quando se tornava necessário, iniciar o ritual do casamento. Era da tradição que qualquer jovem da tribo, antes de casar, fosse desvirginada por um ‘estrangeiro’. Por um lado, a jovem nunca seria acusada pelo futuro marido de que tivera tido um romance antes com alguém do mesmo grupo. Isso diminuía drasticamente as relações de desconfiança. Por outro lado, uma vez que a cerimónia era pública, haveria a certeza que a jovem era virgem antes do casamento. Desta vez, o estrangeiro escolhido fora eu. Quando a jovem parou de lacrimejar, respirei fundo. Abstraí-me da plateia e fiz amor com ela. Para ser preciso, o ato durou apenas o tempo de a desflorar. Uma ladainha ecoou em todo o anfiteatro e como que por magia, as nuvens, que desde há horas cobriam os céus, desapareceram e o luarejar misturou-se com a luz dos archotes. Foi um ato lancinante. Para mim, por me ter prestado a tão lapuz ritual. Para a implume jovem, porque o seu rosto se contorceu de dor no momento da penetração. Quando a ladainha que as anciãs entoavam em uníssono terminou, o chefe ergueu alto o lábaro com as armas da tribo - um falcão com focinho de jacaré. Numa lemniscata desenhada no chão, onde num dos círculos me sentei e, no outro, se sentou o futuro noivo, o tratado que antes haveria assinado com sangue, foi-nos lido em voz alta, por uma espécie de feiticeiro. Teria de ficar na aldeia até que a gravidez da jovem se consumasse”. 

E depois de lido mais um capítulo do conto de Francisca, Ismael Sacadura Flores recomeçou a sua preleção tendo-se vindo a saber no final da mesma quem teria morto Isabella Vicentini. E correndo o risco de que algum dos meus leitores me ameace a mim, Constantino, com sete facadas por não revelar o autor material de tão horrendo e indescritível crime pede o escritor ao narrador que vos comunique que isso fica para mais tarde. Na sua incomensurável bondade trouxe Ismael Gusmán ao escritor duas bolachas torradas e um copo de leite. E assim continuou este a escutar atentamente o inspetor Ismael Sacadura Flores até que adormeceu de cansaço.