segunda-feira, 25 de novembro de 2019

251. Um conto de Natal



A angústia do bacalhau antes do dente de alho

Cenário: Sala de aula; intervalo entre duas aulas; os alunos tentam discutir o tema que se seguirá, nesse dia; a linguagem utilizada é uma linguagem jovem, do dia a dia.

Rafael (ar angélico, imperturbável, meio alheado): Não sei, já ouvi falar, aliás já ouvi falar muitas vezes, posso mesmo dizer que todos os dias oiço falar, mas não sei do que se trata, nem sequer dou importância a isso.
Zé Jerónimo (olhando a janela da rua, sem se virar): Só podes estar a brincar! Toda a gente sabe. Uns dão mais importância, outros não ligam nenhuma, mas ninguém pode dizer, não sei, já ouvi falar…
Luís (apaziguador): Não pode? Claro que pode. Qualquer um pode dizer o que quer. Afinal de contas a liberdade de expressão é isso mesmo. É cada um de nós poder ter opinião.
Zé Jerónimo (vira-se para o Luís e assanha-se): Olha, olha, parece ele que está a tentar ensinar missa a um padre. Mas se o Rafael diz que não sabe, mas que já ouviu falar e tal, mas não liga importância é porque está a ser presunçoso ou então está a tentar jogar-nos areia para os olhos.
Luís (novamente a tentar deitar água na fervura): Deixa lá o rapaz… ele é assim. Parece que não o conheces. Se calhar ele até sabe muito bem. Está é como sempre em negação. Até que ele esteja de acordo ou venha de encontro às nossas conversas tem primeiro que dizer que não. Está-lhe na massa do sangue.
Lambisgoia (a mais pequena da turma e sempre com vontade de intervir, procura apoio em Fatinha): É por essas e por outras é que nunca vamos a lado nenhum. Ele sempre a desdenhar, o Luís, sim tu, Luís, a aparares-lhe os golpes e sempre a desculpabilizá-lo e o Zé ali a mandar vir. Isto assim não me parece que vá ter uma conclusão. Olha os outros a rirem ali no canto. Não dizes nada, Fatinha?
Fatinha (esquivando-se à discussão): Eu? O Zé Jerónimo já disse tudo, para que é que eu me hei de meter na conversa? Se o Rafael fosse um gajo jeitoso, ainda era capaz de mandar um palpite, mas um aventesma daquelas, branquinho que nem lençol de fantasma, parece que nunca cá está…nem sei porque é que pertence ao grupo!
Lambisgoia (a defender, desta vez o Rafael): Não digas isso Fatinha! O Rafael até é bom rapaz, mas é como diz o Luís, está-lhe na massa do sangue. E a boniteza não vem aqui para o caso. Eu até gosto dele! Aquele ar nórdico, tipo copinho de leite. E o cabelo ruivo e as sardas na pele branquinha…
Zé Jerónimo (a passar-se com a metediça da Lambisgoia): Olha aí, já a formiga tem catarro, é? Quem é que te pediu opinião, ó lambisgoia? Cresce e aparece. Não vês que ainda és uma teenager inconsciente?
Lambisgoia (ripostando): Olha, que grande homem me saíste! Ainda ontem estavas a pedir à mãezinha se podias sair de casa para jogar ao pião com os putos. Sei lá se já usas cuecas ou se ainda usas cueiros…
Zé Jerónimo (que não gosta muito da Lambisgoia nem de levar desaforos): Ó lambisgoia, já estiveste a falar melhor. Vê lá se estás aqui, estás a ir comer uma bifana à rulote.
Tiago (que saiu lá do canto, farto daquela conversa inconclusiva): Mas onde é que isto já vai, Santo Deus! Se o rapaz diz que não sabe que, quer dizer, já ouviu falar mas não sabe nada disso, ou melhor, usando as palavras dele, sabe mas não passa cartão, porque é que estamos aqui a insistir?
Fatinha (intervém, só para chatear o Tiago): Ó Tiago, tu também? Não basta o Zé Jerónimo sempre a atacar o rapaz, e vens tu agora mandar vir connosco… Vê lá se te ligas, man. Isto aqui não é um peditório para nenhuma instituição de caridade.
Tiago (o erudito da turma e incomodado com o teor e os termos da conversa): Antes fosse, ó Fatinha, antes fosse. E se de repente, em vez de estarmos aqui com esta linguagem de miúdos, subíssemos um pouco o nível à conversa? Já repararam que não há uma única frase adjetivada à Eça? Não há um único raciocínio prolongado à Saramago, sem pontos, nem virgulas. Não há sequer um vocábulo inventado à Mia Couto! Vocês acham que se alguém estivesse a gravar a nossa conversa e a passasse a letra de forma teria cabimento nalgum escaparate de livraria? E é a falar assim que aprendemos na aula de Português?
Luís (poderíamos alcunhá-lo de O Pacificador): Lá nisso tens razão. E tampouco foi ainda dito nada com pilhéria. Apenas uma pequena intriga à volta do caso. Podemos então enumerar alguns factos e assim enriqueceremos o nosso debate.
Fatinha (a mostrar que não pode mesmo com a intelectualidade do Tiago): Mas quais factos, qual carapuça, tu não vês que o Tiago quer é conversa? Daqui a pouco este texto é só metáforas. Um texto branco de névoa matinal, um fulvo campo de trigo esvoaça na cabeleira da Maria de Fátima (eu, claro) e até a Lambisgoia vai ter direito a uma figura de estilo. Que tal,  um eufemismo? A Lambisgoia tem um ligeiro limite cognitivo.
Lambisgoia (chocada com a sua, pressupostamente, amiga): Olha a gracinha, Fatinha. Se fosses chamar atrasada mental à tua madrinha. Tu não vês que com o teu nome se podia construir uma verdadeira parábola? Maria de Fátima, mania que és Maria e que és de Fátima… Ai… ai…Eu vou-me retirar, isto não passa de insultos camuflados por detrás de frases que se pretendem eruditas. Vê lá se queres reescrever o Crime do Padre Amaro.
Luís (a querer dar por finda uma discussão completamente estéril): Basta! Deixem-se de arremessar uns contra os outros. E se voltássemos ao assunto do Rafael? Não acham que está na hora? O Rafael começou por dizer que não sabe, aliás que já ouviu falar e colocou um segundo aliás, que na realidade não dava nenhuma importância ao caso. Certo?
Todos (mesmo os que estão a um canto, alheados da conversa): Certo!
Fatinha (irónica): Certo. E daí?
Luís (O Pacificador e também O Pensador): Pois se ele não liga nenhuma importância, por mor da sua participação, não seria melhor pô-lo ao corrente?
Fatinha (condescendente como nunca a víramos, mas ainda assim sem perder o seu ar sarcástico): E achas que ainda vamos a horas? Ele é tão avesso a isso. Ó Rafael, chega lá aqui por favor. Tu achas que serias capaz de entender, se te explicássemos devagarinho?

… * …

- Ó Cardoso, amor! Está tudo à tua espera para cearmos. Os teus filhos já estão sentados à mesa e até os teus netos estão sossegadinhos a esmigalhar os ovos cozidos. Só faltas tu, amor.
- Ai querida estava tão distraído a escrever…
- Mas agora noto, amor. Estás com ar apoquentado. O que é que se passa?
- É que hoje é noite de Natal e eu ainda não acabei o argumento para a peça. Estava a tentar acabar os diálogos e não consigo encontrar aquele murro no estômago, passe a metáfora. E só tenho até amanhã. Disse-me o diretor artístico “Isto é assim, amigo Cardoso. Faça a sua peça nascer no dia de Natal que eu até lhe ofereço uma dúzia de rabanadas. Mas nem mais um dia, ouviu?”
- E ainda te falta muito?
- Isso agora já só depende do Rafael. Mas vamos lá ao bacalhau com todos, que nunca se deve fazer esperar a família numa noite como esta.
- E até pode ser que te dê a inspiração à mesa, amor. Não só porque hoje é noite de Natal, mas também porque o Rafael é um anjo!
- Eureka! Milagre! Milagre! É isso! Era isso que me faltava. O Rafael é um anjo! É mesmo por isso que ele não sabe o que é, mas que já ouviu falar e que o assunto não lhe interessa para nada. Afinal os anjos não têm sexo!

25/11/2019

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

250. LTB - Saudades do Schubert



Hoje, enquanto estava a fazer o almoço, lembrei-me do meu gato Schubert. O meu gato, que partiu já há cinco anos e que ainda me faz sentir um arrepio quando penso nele, acompanhava-me à hora de almoço, quando eu escrevia o Lunch Time Blog, para me inspirar no PS com que acabava sempre o post.

E não é que isto anda tudo ligado? Primeiro que tudo , fiz para almoço uma salada tropical. Ou melhor, como diz no Healthy Bites da Teresa D’Abreu, um “arroz tropical”. Digo-vos já que segui a maioria das sugestões e ficou delicioso. Como não vos posso deixar provar, deixo-vos a imagem. Segundo que tudo, estava eu a fazer o almoço e a ver as notícias e soube dos resultados na Madeira. O voto inútil no PS – desculpa Schubert, este não é o teu PS. O teu era Post Scriptum – não resolveu nada. O piéssedê ganhou de novo e para fazer maioria basta que faça uma Paf madeirense. Quanto ao piésse, sem deputados do PCP e do BE que cheguem para uma geringonça madeirense (se calhar na Madeira chama-se carrinho do Monte) vai continuar a ver a passar o bailinho.

Se nas legislativas nacionais os portugueses forem pelo mesmo caminho e tendo em conta que o PSD caminha pelas estradas da amargura e o CDS anda na lavoura a apanhar couves, talvez tenhamos um PS a governar com o PAN. O que me preocupa não é que mais cantinas adiram à abolição da carne de vaca. O que me preocupa é que cativem as vacas a favor do déficit, para manter Centenos em Bruxelas.

Desculpa Schubert eu te ter chamado à liça por causa do meu LTB. Mas juro-te que não levava carne de vaca nos ingredientes. Mas levava frango. Bolas, desculpa lá isso ó PAN. Para a próxima faço o prato só com tofu.

PS. Porque agora também coloco posts no FB, deixei de alimentar o meu blog Predatado. Os textos em que me aprouver colocar na blogosfera, fá-lo-ei no http://constantinogvacas.blogspot.com/

terça-feira, 23 de julho de 2019

249. A minha avó Emília e as cegonhas






- That's one small step for a man, one giant leap for mankind.

- O que é que ele disse filho? – perguntou-me a minha avó Emília.

Eu ainda não dominava a língua inglesa para fazer uma tradução exata do que Neil Armstrong acabava de dizer e além disso as condições sonoras da transmissão não eram as melhores. A minha Schaub Lorenz não raro necessitava de umas palmadas para que as válvulas estabilizassem e aquele scroll vertical acalmasse. Ainda assim respondi:

- Disse que era um feito muito importante para todo o mundo.

Foi desta maneira que acabei por explicar, em palavras simples, à minha avó Emília que, nos seus setenta e seis anos de idade se aguentou firme, ela e eu, a ver a chegada do homem à Lua, o que Armstrong dissera. A minha avó não sabia ler, nem escrever, mas era de uma inteligência incontestável. Obviamente em muitos casos, limitada às suas vivências o que não contraria a famosíssima tese de Ortega y Gasset, mas ainda assim, nem um só momento duvidou de que o homem tinha chegado à Lua. O que ela afirmava bastas vezes, é que receava o que poderia acontecer por eles andarem a “mexer” lá em cima.

Mas ao contrário da da minha avó, era voz corrente a de que o homem não tinha ido à Lua e que aquilo era tudo inventado pelos americanos. Não me admiravam essas afirmações. Estávamos no terceiro quartel do século XX, um século que viu nascer o avião a jato, a televisão, o computador. Era muita coisa num século só. E de que daí nascessem teorias da conspiração, ficções para vender livros e documentários não me espantou nada. O pior não era esse tempo. O pior é hoje. O pior é que ainda há quem afirme que a Terra é plana. E têm seguidores. Um dia destes ainda os vamos ver em manifestações para exterminar as cegonhas com o fim de controlar a demografia. Ai não tarda, não.