quinta-feira, 17 de novembro de 2011

75. Afinal o que é ser ignorante? Inculto? Burro?


Qual é o animal mais feroz que existe? Sem hesitação respondeu, É o galo!

A minha saudosa avó Emília nasceu e cresceu na serra algarvia. Os seus pais, gente do campo, bisavós que nunca conheci, eram agricultores. Levavam quintas de renda e outras courelas de sua propriedade. A vida ia-lhes correndo bem. Dos vários filhos, os rapazes iam estudar. As raparigas ficavam em casa. Era preciso cuidar da mãe e fazer o jantar para os homens. E a ceia. Aos domingos passeavam de charrete. Vestidos compridos, a tapar o tornozelo porque as meninas não eram umas quaisquer. Chapéu na cabeça e bonitos sorrisos. Em casa, além dos bordados em telas de linho, havia a cozinha e o quintal. Havia patos, coelhos, galinhas e galos. Não havia luz elétrica, a água era do poço. A televisão não tinha ainda sido inventada e os jornais não chegavam à serra. No rádio a pilhas, ouvia-se a Emissora Nacional. Os patos, os coelhos e as galinhas eram mansos.

Um dia destes, já lá vão uns bons sete anos, entrei no café da minha rua. Estava com pressa, pedi uma bica e dei uma olhada ao jornal do dia. Esqueci a pressa face à estupefação perante aquilo que lia. Daí a dias ir-se-ia comemorar o trigésimo aniversário da revolução do vinte cinco de abril. Os rapazes e raparigas entrevistados não tinham ainda trinta anos. Nasceram todos depois de 1974. A televisão é (era também há sete anos atrás) a cores, tem quase cem canais. Não moravam na serra, tinham frequentado as escolas secundárias, sabiam que havia animais mais ferozes do que o galo. Só não sabiam o que tinha sido a revolução do vinte cinco de abril.

Provavelmente já terão ouvido esta história apesar da juventude de alguns de vós. Mesmo que a conheçam repito-a porque haverá alguns dos leitores destas histórias que não estarão a par. Eu também a ouvi contar, uma vez que, o senhor faleceu no ano em que eu nasci. Sir Alexander Flemming tinha "acabado" de descobrir a penicilina. Um dos seus périplos, para conferências e divulgação, passava por Portugal e Sir A. Flemming chegava, aparentemente, triunfal a Santa Apolónia. Uma enorme multidão enchia o cais e uma banda de música, tchim pum, tchim pum, tocava a plenos pulmões e à força de toque de caixa. O próprio cientista estava abismado com o exagero da receção. Quando o comboio parou, todos se precipitaram numa corrida infernal mas passaram por Sir Alexander como cão passa em vinha vindimada. Nem sabiam quem era. Ao mesmo tempo a Seleção Nacional de Hóquei em Patins (ockey no tempo em que se deu a ocorrência) chegava, após mais uma retumbante vitória sobre a vizinha e rival Espanha, ganhando mais um título mundial. Os nossos jornalistas, da Emissora Nacional, já se vê e dos jornais da época, uns de microfone em punho outros de bloco e caneta, entrevistavam o selecionador, os jogadores e principalmente os dirigentes, gente fina afeta ao regime. Também muitos deles não sabiam sequer o que era a penicilina.

Se houvesse televisão a cores e outras divulgações, talvez a minha saudosa avó Emília tivesse ganho aquele concurso da telefonia. É que já tinha respondido certo a duas perguntas anteriores. E não. O galo não é o animal mais feroz que existe.

15 comentários:

  1. Ler um texto seu deixa-me se jeito
    de o comentar a preceito
    Esta tudo lá, com o detalhe adequado
    à critica, aos costumes e ao clima criado

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  2. E para ti, Vítor Fernandes, qual o animal mais feroz? Sem me perguntares eu já respondo, é o homem!

    Mas veja, nao é privilégio apenas de Portugal, os jovens nao saberem da história do seu país, nao esqueças que a "ignorancia é a maior multinacional do mundo".

    Mais uma excelente história!

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  3. Os conceitos de ignorante, inculto ou burro não serão subjetivos?! : : )

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  4. ...assim burros fossem os Homens...

    Ironizo e sei que me entende...

    E mais um beijinho daqui

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  5. o animal mais feroz? eu conheço é o AJJ
    kis :=)
    BFSEMANA

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  6. Quando se mete um time no meio - hoje é futebol - dane-se a cultura! E uma torcida furiosa...

    Se fosse antigamente e seus textos lidos na rádio, nem precisaria de televisão. Dá para enxergar cada cena! :))

    bjs

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  7. Perdão por não vos responder um a um e mais perdão vos peço por não vos estar a visitar ler e saborear as vossas sempre apreciadas prosas (fotos e poemas), mas confesso-vos que estou num sufoco de tempo. No Domingo vou-me redimir. Ósculos e amplexos para todas e todos.
    Constantino, aka Vítor Fernandes

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  8. Olá Vitor Constantino!
    Eis aqui uma narrativa a convidar à reflexão!
    Por acaso nem era das coisas que mais me apetecia fazer neste momento. Mas, o que não se faz por um amigo?
    Fez muito bem em referir que a criação da sua saudosa Avó Emília era mansa. Gostei!
    O bicho que certamente não era nada manso seria o galo.
    Há galos de briga danados de agressivos. Quem disse ser ele o animal mais feroz, deve ter apanhado uma bicadela e peras, e ser ainda pequenino.

    As perguntas que dão origem ao título, deixaram-me a pensar que a resposta não é tão fácil quanto parece. A ser verdade que a dúvida é o princípio da sabedoria, sendo eu uma criatura cheia de dúvidas e acreditando que quase toda a gente as tem, (excepto o tal) quedo-me, uma vez mais, na dúvida se seremos todos sábios ou todos ignorantes, já que há sempre algo que desconhecemos.

    Imperdoável é a juventude estudantil desconhecer o que tinha sido a revolução do vinte e cinco de abril. Por sinal lembro-me bem dessa reportagem e de ter comentado para alguém que estava ao meu lado: ” Porque raio a repórter não pergunta a esta mocidade se sabem o que foi a Revolução dos Cravos e dos Capitães de Abril?”
    Duvido que a malta feminina não tivesse ideia de alguma vez ter visto na TV, aqueles garbosos e bravos militares. Sim, porque na Escola aprendem outra escola.
    Sinceramente não percebo bem a razão da sua estupefacção. Igualmente não entendo a sua admiração pelo facto do povinho correr em debandada para junto da malta desportiva do hóquei, em detrimento da figura proeminente do célebre cientista.
    Se após 37 anos de Democracia ainda se enchem os Estádios de futebol em vez de se assistir a importantes debates sobre a calamitosa situação económica e política com que o país se debate, imagine no tempo em que se alienava o povo com serões para trabalhadores.
    E não. O galo não é o animal mais feroz que existe. Mas, diga-me: qual é?

    Agora estou na dúvida se apague esta lenga-lenga toda ou em alternativa lhe peça desculpa pelo arrazoado. Acho que opto pela alternativa. Beijinhos -:))
    Janita

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  9. Abra uma excepção para o galo ou para alguns que bem cantam de poleiro...

    cumprimentos

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  10. Ah, também vou escrever sobre este caso. Quer dizer, não sobre a tua história em si, obviamente, mas sobre a que deduzo ter servido de base a esta tua reflexão... genial, por sinal! :)))

    Bom fim de semana, Vitor!

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  11. Pelos vistos as coisas não mudaram nadinha!!
    Os "heróis" sempre foram uns eternos desconhecidos!
    Gosto da tua ironia afiada!

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  12. Um sátira muito interessante sobre uma realidade dos nossos jovens (com excepções como é óbvio)...bem diferente dos da minha geracção, porque hoje têm tudo e sabem...quase nada do que não lhes interessa e a culpa é de quem?

    Gostei imenso!

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  13. Quando eu era miúdo, o saramago era uma erva, aparentada com o nabo (suponho).
    E mais não digo, porque isto de cultura geral também não é o meu forte. lool

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  14. por aqui as coisas não são diferentes. E quando eu lembro o que foi o golpe de 64, com tantos amigos assassinados pela ditadura, os jovens me dizem: "mas isso é história!" como a querer dizer que as coisas que eles aprendem na escola, na disciplina "história" não podem doer no coração...

    quanto ao bicho, efetivamente, o animal mais feroz é o homem. E o homem no poder fica mais feroz ainda: experimenta alguém tentar tirar-lhe as benesses :(

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