terça-feira, 22 de novembro de 2011

76. Ismael (1)


Tal como Agatha Christie com o seu Poirot, Uderzo com Asterix ou, mais recentemente, Daniel Silva com Gabriel Allon, também eu sempre sonhei em ter Ismael Gusmán como o protagonista das minhas estórias. Há no entanto algumas diferenças substanciais e inultrapassáveis entre o meu projeto e o dos citados ou outros que poderia ter referido. A principal é o engenho e a arte. Referi uma mestra da literatura policial, um colosso das histórias aos quadradinhos e uma das principais figuras da escrita de romances de espionagem e suspense. Nunca chegarei aos seus calcanhares, mas não custa nada tê-los como referência ou melhor, tê-los como mentores. A segunda é a circunstância. Os personagens de Christie, de Uderzo, de Silva são personagens de ficção, criados nas suas mentes brilhantes, desenvolvidas com desmesurada genialidade. Ismael Gusmán, não. Ismael é real e eu conto histórias reais de gente real.

Conheci o Ismael há mais de cinquenta anos e podia aqui retratá-lo pormenorizadamente, descrever a sua vida tim-tim por tim-tim, explorar-lhe os gostos e as aversões, os amores e os ódios, a idas e as voltas, os altos e os baixos, as alegrias e as tristezas, os humores e as cabisbaixices, as vitórias e as derrotas, as mulheres que teve e as que o rejeitaram. Ismael Gusmán falava comigo pelo menos uma vez por semana, tinha sempre uma história para contar. Quando veio da Galiza, mão dada com um tio, irmão de doña Pilarxita, sua falecida e saudosa mãe como sempre se referia a ela, dormia num enxergão de palha no saguão da taberna que o tio tomou de renda na rua dos Correeiros, em plena baixa Lisboeta. Quando o conheci, o Ismael já estava quase nos quarenta, de avental azul escuro apertado na barriga e sem peitilho, servia copos de três e lombinhos de porco na chapa enquanto me olhava, eu de moleskine e esferográfica bic entre os dedos. Porque as tardes eram mais calminhas, conversávamos enquanto eu lhe lia o Mundo Desportivo e foi o Benfica que nos uniu. Havia de ter visto xogar o Xulinho e o Roxério Pipi, sr. Constantino, dizia-me ele que nunca perdeu o sotaque galego, apesar de ter chegado a Lisboa com oito anos de idade. E comentávamos as fotografias do Zé Henriques em felino voo para uma bola castanha de catechu enquadrada com o ângulo dos postes da baliza. Depois abanava a cabeça e dizia que não tinha a certeza se o nosso Zé Gato seria capaz de defender assim as bolas do Valadas.

Se eu fosse Agatha Christie, o meu Ismael seria, provavelmente, um médico reformado que se sentava na tasca do galego com um charuto na boca, que o tio dele, um judeu estabelecido no Chiado, importava de Cuba e que lhos fornecia a um preço especial por reconhecimento dos cuidados que ele tinha tido com a sua filha mais nova que sofria de tísica, quando entraram em Portugal refugiados da Polónia. Ismael não seria Gusmán, mas sim Ismael ben-Avraham mas leria do mesmo modo o Mundo Desportivo. Seria arrolado como testemunha do crime que se passou no quarto andar do número quarenta e três e apesar do alibi que inventou para se livrar de testemunhar e que, por sinal, tinha fornecido ao Inspetor Zé Gato, de que estivera a assistir, no campo das Amoreiras, ao jogo do Benfica com o Carcavelhinhos, ao lado do seu amigo Valadas, não o iria liberar de ter de depor, pois nem o Carcavelhinhos já existia, nem o Benfica jogava mais no Campo da Amoreiras. Isso o meu lsmael, o galego, sabia-o bem, pois ao homem do balcão e avental azul escuro só a saudade de ver jogar o seu Deportivo superava a paixão pelo Glorioso. Ismael ben-Avraham já tinha, ele também, relegado para segundo plano a sua quase obsessão pelos puros havaianos, face às cores papoilares das camisolas dos seus ídolos. Mas não posso ficcionar, afinal o meu Ismael nem é judeu, nem vive numa pensão da Rua do Alecrim, mas é, porém, efetivamente galego, mora na Quinta do Conde que é, à data, quase uma aldeia isolada. A única coisa que ele tem medo mesmo é que o céu lhe caia em cima da cabeça. Quanto ao vinho tinto que serve em copos de três, não bebe nem uma gota. Disse-lhe o tio, mas ele não sabe se é verdade, que quando era bebé caiu dentro de um pipo na casa dos seus avós. Um seu antepassado, Jacques Ismaelix, que era o marido da parteira, seria o único capaz de o confirmar mas já tinha morrido pelos finais do século XIX. Só se ainda existisse algum testemunho escrito na Igreja de Goscinny, sua terra natal.

14 comentários:

  1. O teu Ismael é de "carne e osso", não uma personagem de ficção, por maior que seja a minha admiração por Poirot e Astérix (e nem por isso pelo tal Gabriel)!

    As pessoas reais, com histórias dentro delas para contar, nem sempre nos encantam, com relatos de vivências tão comezinhas como as nossas, em que não há crimes por desvendar, nem proezas de combates diários contra um exército romano, nem outros espiões adversários a abater! Mesmo assim, Ismael tem mais pernas para andar, desde que haja força no teclado! :)

    Fico a aguardar por mais, desse galego benfiquista, que tão bem recorda o "nosso" Zé Henriques... :D

    Beijocas!

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  2. Olá Vitor Fernandes!

    Por vezes a realidade é bem mais interessante do que a ficção, e este Galego aviador de copos é personagem bem rica, de vida preenchida - e muita bem descrita. Só é pena, mesmo, ficarmos sem saber se terá realmente caído dentro da pipa do vinho, mas também é detalhe que agora já não importa muito ...

    Gostei.
    Abraço amigo.
    Vitor

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  3. Nem só o engenho e a arte fazem um mestre da escrita. A vida leva as pessoas pela estrada, quando é nos trilhos que, muitas vezes, a viagem se torna mais interessante.
    Quem saiu a lucrar fomos nós. Não temos de comprar os livros para lermos estes contos fascinantes. :)

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  4. Eu prefiro as personagens reais como o Ismael e gente que saiba contar boas histórias com gente dentro, como é o seu caso, caro Vítor

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  5. isso que é entrevero!!

    sabe que eu dei ao maridão uma moleskine, uns quatro anos atrás, crente de que iria agradá-lo pela lembrança e pela utilidade. Ele gostou tanto que até agora não a usou! Diz que não tem coragem..seu eu soubesse, dava um caderninho brochura, daqueles de vendinhas do interior..ora!!
    bom que vc use a sua. Mas moleskine não combina com Bic, definitivamente ;)

    bjs

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  6. Caro VMF ou Constantino pouco importa, mas aqui está um conto bem condimentado, tem de quase tudo, mistura galegos com judeus, vinho tinto com Zé dos frangos e benfica com banda desenhada.
    Tudo no seu sitio, tal como esta agua-pé que estou a acompanhar com um queijinho de cabra fabrico particular,... "está mesmo muito bem apaladada".

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  7. Ora viva, amigo Vitor Constantino!

    Como sou do género feminino não corro o risco de me chamarem "amaricado" pelo que começo por dizer: Adorei...adorei...adorei!
    E se calhar pouco mais direi.
    A mim pouco me importa que as suas histórias tenham gente real dentro, sejam ficcionadas ou uma mistura de ambas as coisas, gosto de todas!

    Nesta já soltei umas boas e sonoras gargalhadas e só tenho a agradecer-lhe por isso.

    Só a pronúncia galega do Ismael e o seu tio Ismaelix marido da parteira, mais a dúvida sobre a eventual queda do dito cujo na dorna do vinho, me fizeram rir a bandeiras despregadas.

    E vivam as papoilas saltitantes!!

    Só tenho pena de não poder acompanhar esta salada com uma pinga de água-pé e um queijinho de cabra.

    Parabéns, meu amigo, por esse dom maravilhoso com que foi dotado. Venha de lá o resto...
    Um beijinho.
    Janita

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  8. Ó Constantino...
    agora reparo eu...atão na há ali uma redundância?
    Ai Janita...Janita! É por estas e outras...

    Beijo de Bons-Dias!

    PS- Ah, espero que na Igreja de Goscinny não tenha acontecido o mesmo que na de VNSB: um incêndio que destruiu os registos onde constava o do meu baptizado!

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  9. @Janita, e vai encontrar mais incoerências. Quero ver quem está com atenção :)

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  10. Não me atrevo a fazer comparações entre os seus contos e os dos autores que refere, não seria de bom tom e além disso não vejo diferenças no engenho e arte que diz não possuir (humildade em demasia também é vaidade , meu caro).
    Criou um estilo que só é concedido aos que nasceram com o dom de bem escrever, de nos transportar de forma avassaladora a momentos que tão bem descreve, criando em mim a ilusão de que também sou espectadora das narrativas que tão bem constrói.
    Mais uma história que me deixou a imaginar como seria bom estar, também eu, naquela tasca de moleskine na mão.

    Manu

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  11. Ai…pena, pena, pena. Pena de não ter conhecido o Ismael há mais de cinquenta anos…quiçá também me autorizaria ser protagonista e aqui adicionar algo mais a esta estória; obviamente não tão exemplar e irrepreensível quanto a sua, que o conheceu, já ele estava quase nos quarenta!... ;)

    Beijinho prosista de minha eleição e
    Bom fim de Semana

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  12. Vítor Fernandes, tu és um contador de histórias como poucos, por mais que eu seja repetitiva, não me canso de dizer: aqui o riso e o envolvimento são garantidos!

    Mas acaso o Ismaelix, apesar de ser um personagem real, tinha, tem algum parentesco com Asterix?

    ;)))

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  13. @Canto da Boca, Ismaelix saiu de quadradinho de Uderzo e Goscinny.

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