sexta-feira, 1 de março de 2013

195. Pintar um conto




Hoje vou pintar-vos um conto. A lata de tinta já está pronta e a velhinha, sentada num corte de tronco de azinho, ajeita o lenço. Vê-se que está impaciente pois atou e desatou o nó por mais de uma vez, tirou o chapéu e voltou a pô-lo, colocou o lenço sobre o chapéu e apertou o lenço de novo. Esta forma graciosa de usar um lenço sobre o chapéu preto é muito típica aqui da região. Víamo-las assim quando em bandos ceifavam o trigo ou quando, à tardinha, sentadas no mocho acariciavam o bezerrito que Bonita, a vaca, acabara de parir. Uma ave, esclareceu-me numa voz meiga, com a ternura do costume, que era um rabilongo, posou na figueira em frente à porta. Comia os restos de um figo maduro que desta vez não teria tempo de passar. Depois aparentando um ar sério e fingindo-se zangada, confidenciou-me «são uns bandidos, comem tudo». Rimos os dois e ficamos ali um pouco à conversa explicando-lhe que a luz do sol ainda não era aquela que eu queria para iniciar a pintura. Teria ainda tempo para atender o telefone e trazer-me uma chávena de chá bem quente que por este tempo, no inverno, faz frio por estas bandas. Um cheiro a lúcia-lima invadiu o espaço. Voltou a sentar-se, esperou que eu terminasse a bebida, enxotou o gato e disse-me «estou pronta». Respondi-lhe que também estava pronto, acrescentado «esta é a hora de ouro para um pintor». Peguei no pincel mas acabei por terminar o trabalho já sob a luz de uma fraca lâmpada de tungsténio. «Vai ali para o lado do meu Joaquim. Nunca mais vais dormir só», falou primeiro para mim, depois para a velha moldura com um retrato a sépia de Joaquim. Retirou um velho calendário já manchado pela humidade dos anos e no seu lugar pendurou o quadro acabado de pintar.


23 comentários:

  1. Bom conto, bem pintado Vitor.

    Abraço

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    1. Obrigado JP. Se não me tivesse acabado a tinta teria dados uns retoques. Abraço.

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  2. Navegando, encontrei este espaço, vou ficar e acompanhar.
    Beijo.
    Nita

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  3. Mais que um conto, pintou-se a vida, pendurada...

    Beijo

    Laura

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  4. Um conto deliciosamente pintado!
    Parabéns!

    Posso passear-me por aqui?

    Abraço

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  5. Ninguém melhor do que tu saberia pintar um quadro tão belo sobre alguém que me fez lembrar a minha doce tia Ana, que vivia no Monte da Retorta, embora tivesse casa na então Vila de Serpa.
    Era lá que eu passava as férias grandes e quantas vezes ela fingia ralhar, quando eu saltava pela janela e vinha ter com ela à horta, em vez de sair pela porta, como qualquer pessoa normal...:)

    Um dia também eu gostaria que um pintor assim talentoso, como tu, me retratasse sentada num banquinho sob uma figueira, indiferente aos rabilongos comedores abusivos dos belos figos alentejanos...Talvez, um dia, quem sabe?

    Só que a minha, ainda não escolhi aonde a quero pendurar.
    Talvez, ao lado da minha Mãe e do meu tio João Batista. Naquele local ao lado da Sta. Casa da Misericórdia. Sabes onde fica, Constantino?

    Beijinho, boa semana.

    PS. Sobre o "Sete Facadas..." deixei-te recado lá no meu canto.

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    1. Por acaso não sei onde fica a Sta Casa da Misericórdia de Serpa, mas acho Serpa uma cidade muito bonita. Estive lá há pouco tempo. Adoro a imperial do Lebrinha.

      Boa Semana.
      Beijinho

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    2. "Convento de São Francisco em Serpa

      Ponto Turístico
      Monumento

      Estrada de São Francisco (EN 517)
      Serpa

      Convento que denota as arquitecturas manuelina, maneirista e barroca. A sua origem é gótica, que mostra com a igreja de portal inscrito em alfiz e arco triunfal. É na decoração que se mostra o barroco, especialmente na pintura do tecto."

      Passe a publicidade, aqui no Convento de S. Francisco, considerado Património Nacional, funcionou- agora não sei- a Santa Casa de Misericórdia e Lar para a terceira idade. Pensei que conhecesses!
      Maia à frente fica a tal residência.:(

      A Cervejaria Lebrinha é local obrigatório para quem aprecia uma cervejinha gelada e um bom petisco! Assim do tipo salada de orelha de porco à moda de Ismael Gúsman...:)

      Beijinhos e óptima semana.

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  6. É, de facto um tela preciosa. Visível daqui, a olho nu.

    Obrigada!


    Lídia

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  7. Vítor, também eu me deliciei aqui a apreciar esta tela.
    Belíssimo!

    Deixo um abraço
    Sónia

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  8. Não sei o que admire mais. A foto, ou o belo texto que a acompanha.
    Obrigado pelas palavras que me deixou no Cronicas On the Rocks.
    Abraço

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  9. Muito bem escrito o conto, Vítor. Elegante, sóbrio e cheio de nuances e sinestesias. Pintar a escrita, escrever a cor e a forma das coisas... Parabéns!

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  10. Gosto deste modo de escrever...das coisas simples do quotidiano, da beleza envolvente que chama a atenção...apenas interrompido pelo sabor delicioso de um chá Lúcia-Lima...ainda sinto o perfume por aqui... Claro que voltarei...seria imperdoável!!
    Um abraço
    Graça

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  11. Gostei da tela e do texto.
    Gosto de ler os seus textos. Nem sempre comento mas o que importa é que os leia.
    Abraço

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