Recompuseram-se algumas situações. D. Micá
melhorou muito, graças ao paracetamol e a um xarope que comprou numa ervanária
da Baixa e a garganta já vai ficando capaz, pois deliciou-nos com um pouco mais
da história de D. Bonifácio e dos seus fantasmas. Nem uma palavra acerca da
provocação, o tempo da matraca já lá vai e quem só começou a ler esta história
neste momento nem sabe o que já perdeu. Mas há pessoas para tudo, até para
começarem a ler um livro pelo meio, vá-se lá saber qual a razão. Por outro lado
Rosalina já chegou. E que bem que lhe fica o nome de Rosalina. Veio diretamente
de Albergaria, velhos conhecimentos entre D. Micá, D. Ermelinda e a mãe da
jovem provinciana que, desde que Eduardinha se amantizou com o Alfredo, o
serviço andava muito por baixo. Por sorte, praticamente não houve serões, por
mor da gripe de D. Micá e ainda devido ao estado semidepressivo em que andou,
porque não é impunemente que se é alcunhada de matraca por um personagem de uma
história que a própria conta. E se esta miscigenação entre narrador e narrado
já é coisa vista nas figuras de estilo da literatura portuguesa, não é menos
verdade que, uma criadita adolescente, vinda das berças, faces rosadas, um
ligeiro buço e mais ou menos roliça, é um protótipo que os nossos maiores
vultos da poesia e do romance já usavam nos seus muito apreciados clássicos.
Não admira pois que, nós, escribas bem mais modestos, quer seja o Constantino,
quer seja D. Micá, que são os que mais contribuem para que estes episódios e
até histórias completas, tenhamos encontrado para substituir a bela Eduardinha,
uma filha da ruralidade, com a fisionomia que se descreveu e que se chama
Rosalina. De Rosalina, suas venturas e desventuras se falará no tempo próprio,
desde a depilação laser, que a deixou sem qualquer pelinho no rosto e que, se
não fosse por pudor, diríamos mesmo que sem qualquer pelo nos sovacos e nas
pernas, aspeto físico que passou apenas a ser uma ténue memória de um passado
não muito remoto e que ousaríamos supor, porque não foi possível fazer passar
Rosalina por um crivo inspecional mais rigoroso, que nem na púbis se poderá
encontrar qualquer vestígio de excrescência pilosa, até ao seu atribulado
namoro com um ex-militar do antigo Regimento de Artilharia de Costa que tem um
agora um barquinho de pesca na Trafaria e que se dedica ao arrasto clandestino
da ameijoa. Mas por enquanto Rosalina ainda não usa blushs nem sombras, o seu
ar rosado é completamente natural e se alguma vez alguém, em frente dela, lhe
fala em pó-de-arroz, é para ela, com o ar mais púdico que se possa imaginar,
colocar os três dedos, o médio, o anelar e o indicador bem juntinhos sobre os
lábios e rir disfarçadamente pois que lhe vem à lembrança a filha da D.
Doroteia, que saía todas os fins de tarde completamente pintada e só se sabia
que ela regressava de madrugada porque o Idalécio taxista, o único que levava
pessoas da aldeia até Albergaria ida e volta era, um boca de charroco, “pior
que as mulheres” como se dizia lá na terra, e que aqui não se reitera porque eu
não sou machista, mas que lá que ele não guardava um segredo, lá isso pode-se
jurar. Era por isso que à memória das pinturas do rosto da Sandrinha, as suas
meias pretas de fantasia, com rendas no lugar das ligas, a minissaia muito
curta, passe o ênfase, os grandes decotes, as botas de cano alto e o cigarro
fumado com boquilha, Rosalina levava primeiro os três referidos dedos à boca,
sorria com ironia, corava ainda mais e depois benzia-se três vezes. E mais se
benzeu quando, pela primeira vez, ouviu D. Micá contar uma parte da história de
D. Bonifácio, a parte em que ele e Aristides falam sobre a confissão a frei
Bento Patinho, que como todos sabemos é um fantasma e dos antigos. Não vos
queria adiantar muito, mas ainda vos digo que Rosalina arreou uma bandeja com
duas caneca de leite magro morninho com chocolate sobre o aparador, saiu a correr
direita à casa de banho, primeiro começou com náuseas, depois um forte vómito,
foram-se-lhe as cores rosáceas, a moça começou a ficar branca, D. Micá
aflitíssima gritava não se sabe para quem, “Um chá! Um chá! Alguém que me
arranje um chá!” e segurava a cabeça de Rosalina que com os olhos ainda
bastante encovados e muito a custo lhe respondeu “deixe-me ficar melhor minha
senhora, que já lhe vou arranjar um chazinho”.
Bolas, Constantino! Eu a fazer figas para que a D. Micá ficasse afónica e de matraca fechada durante mais uns tempos e vens-me tu com esta conversa toda sobre a pobre substituta da Eduardinha?
ResponderEliminarLá que lhe tirem o buço - então a cera já não serve? - ainda vá que não vá, agora essa pretensão absurda de deixar a desgraçada sem pelinho nenhum no corpo é que nem no tempo da Inquisição alguém se lembrou de semelhante tortura.
Lá depilar as axilas e as virilhas com cera, tá bem, sofre-se um bocadinho, mas depois a gente habitua-se. Agora o resto, não! Deixa lá a púbis da Rosalina sossegada, que isto da bandeja ir parar ao chão desperdiçando o leite morninho achocolatado, não me caíu lá muito bem.
Ou a moçoila de Albergaria já foi prenhe para a mansão ou está envolvida nessa história sórdida do fantasma do frei Bento.
Tadita, nem se apercebeu que quem precisava do chá era ela e não a patroa.
Só espero que não apareça por lá nenhum tertuliano que lhe tire a inocência...:)
O que será que a gaivota observa com tanta atenção dentro dessa minúscula embarcação??
Beijinho, Constantino.
Trata-me bem da moça!!
Minha querida, enquanto D. Micá não nos acabar de contar a história enigmática de D. Bonifácio e Antonieta e enquanto Constantino não nos satisfizer as curiosidades que constituem a atribulada, mas de muita riqueza cultural e de preenchimento de vida do seu amigo Eduardo Aragão, não nos vamos conseguir ver livres destes pedaços de prosa.
EliminarBeijocas e boa Páscoa.
PS. Quando vieres para as minhas bandas avisa-me para te entregar o livro.
este texto está muito fashion...
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