Nestas últimas semanas não tem havido serões na
casa da D. Micá. O prazer de se ouvir contar histórias, mormente pela exímia
contadora de contos cor-de-rosa que é a nossa anfitriã, ainda que acompanhadas
com leite magro com chocolate ou whisky com e sem gelo ou ainda por algum
licor, nomeadamente de amêndoa amarga, não parece ter sido suficiente para que
os tão famosos serões não fossem interrompidos. Infelizmente é esta época fria
e chuvosa a comandar os desígnios de tanta gente por esse país fora que os
assíduos frequentadores do famoso salão não poderiam ficar imunes. D. Ermelinda
bem vai repreendendo a sua estimada filha. «Eu bem te disse para tomares a
vacina, mas tu és teimosa. Sais ao teu pai. Em se lhe metendo uma coisa na
cabeça, não havia quem o demovesse. Que Deus lá tenha a sua alma em descanso,
coitadinho, que se finou tão cedo». Depois benze-se, fazendo primeiro o sinal
da cruz. À filha, que já conhece a lengalenga toda da mãe, com destaque para as
comparações que costuma fazer com o defunto, pois sempre que se refere a algo
da filha, coisa boa ou coisa má, repete-se a conversa «és tal e qual o teu
falecido pai», entra-lhe por ou ouvido e sai-lhe por outro, não sem antes dar
uma palavra de justificação ou consolação por respeito à mãe que ela adora de
verdade. «Não se inquiete minha mãe que eu já tomei um comprimido e sei que
isto vai logo passar», depois dá-lhe um beijo respeitoso na testa e um afago na
cabeça, enquanto se dirige ao piano para tocar uma melodia triste ou melancólica
que o seu estado febril não lhe permite polkas nem marchas. Por falar em
música, desde que o Bruninho Mendonça, que como sabem já toca guitarra
portuguesa apesar dos seus oito anos e que sempre achou que aqueles serões onde
ele tinha de regressar a casa às dez da noite eram uma seca, deixou de ir, que
não se tem cantado o fado em casa de D. Micá. O Dr. Jorge, que agora frequenta
sozinho aquela tertúlia, à falta do filho que acabou por se decidir a ficar em
casa com a mãe, tenta ele próprio arranhar a guitarra. Mas a uma guitarra, não
é qualquer que a agarra e a faz vibrar porque é exatamente como uma mulher. E
por ter falado em mulher, dir-vos-ei, a talhe de foice, que a Clara, de quem D.
Ermelinda nem gostava muito, disse-nos a D. Micá, está com um processo de
divórcio em marcha. Sim porque o Dr. Jorge Mendonça, vejam lá, a pretexto de
uma das sua célebres camisas de cambraia estar com uma ruga, foi à casinha dos
serviços e demorou-se mais que a conta. Clara Mendonça, que já andava
desconfiada com qualquer coisa, viu o marido enrolado com Adriana a sua criada
de casa, de quem, logo no início prometi que falava dela e não estou esquecido.
Parece que D. Ermelinda agora, apesar de não gostar muito de Clara, porque
sempre teve uma pontinha de ciúme do seu casamento, de Clara, com o seu, de D.
Ermelinda, amor platónico, se aproximou mais da esposa enganada e dizem, anda
com umas ganas de Adriana, que se a D. Micá um dia destes não puser tudo a nu,
ela própria desmascara essa impostora da criada dos Mendonça que tem uma
história de vida de arrepiar. Mas retornando, o que me fez voltar a falar dos
serões de D. Micá foi, precisamente, a ausência desses serões. D. Micá com
gripe, o Eduardo Aragão que piorou, e de que maneira, do joelho esquerdo, o que
nem lhe tem permitido fazer aquelas saborosas caminhadas matinais de que tanto
gosta e que desfruta com regozijo e diz que sair à noite é bem pior, pois que
se lhe mete uma humidade nas articulações e que nem com anti-inflamatórios a
coisa tem resultado e a Eduardinha. E o que é que tem Eduardinha a ver com a gripe
de D. Micá e as dores no joelho do Eduardo Aragão ou a crise de tosse cavada do
Fagundes que teve de meter baixa, deixando os alunos de geografia uma semana
sem aulas? Nada. Era só para dizer que a Eduardinha, também ela, deixou de
comparecer. Despediu-se. Despediu-se sim senhor. Ela já não parecia muito
talhada para aquela vida mas quando o Alfredo lá apareceu… Ainda não vos falei
do Alfredo, mas o Alfredo é aquele empresário de bares e danceterias de não
muito boa fama, que só muito esporadicamente frequenta os serões de dona Micá e
fá-lo em memória do senhor Comendador a quem uma vez Alfredo ficou a dever um
grande favor, por mor de umas penhoras que Jovelino Azeredo lhe pagou antes que
fosse tudo por água abaixo e que, se um dia tiver tempo vos contarei lá para a
frente. Dizia eu que desde que o Alfredo lá apareceu, de fato completo, sempre
claro e sempre completo com colete e tudo, fosse verão ou inverno, pois Alfredo
tinha sempre um ar jovem e bem-disposto, já com o cabelo branco, nos seus quase
setenta anos, fumando charuto e usando camisas estampadas, dispensando a gravata
mas nunca por nunca ser, o cachené de seda, lhe acenou com umas notas grandes
de euro, só para lhe aquecer os pés neste frio e chuvoso inverno, ela que nunca
precisou de paracetamol, aceitou. E diz ela, para quem a quer ouvir, que em vez
de andar de bandeja na mão a servir este e aquele, é agora ela, servidinha em
bandeja. E o Alfredo aprecia. Ah leão!
Apesar das tertúlias em casa da D. Micá estarem suspensas, não falta aqui fofoca e pardalão e pardaloca nova. Que é como quem diz, novidade.
ResponderEliminarA Eduardinha nasceu com o rabo virado para a Lua ou para quem o quisesse ver, pois até esse Alfredo mal entra na historia, vai logo abarbatando o melhor pedaço do sítio, segundo nos tens dito...Ah, grande leão, mesmo!
Beijo, Constantino! Ah, grande Águia!
Ela já está a ficar melhorzinha e parece que arranjou uma empregada que não tem medo de fantasmas.
EliminarEmbora eu seja do Benfica tenho que concordar. Ah leão!...Adorei . Beijos com carinho
ResponderEliminarEu também sou do Benfica, mas este tipo atirou-se felina e selvaticamente à febra.
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