terça-feira, 12 de março de 2013

196. Fruta da época em casa de D. Micá ou a história de Eduardinha e Alfredo



Nestas últimas semanas não tem havido serões na casa da D. Micá. O prazer de se ouvir contar histórias, mormente pela exímia contadora de contos cor-de-rosa que é a nossa anfitriã, ainda que acompanhadas com leite magro com chocolate ou whisky com e sem gelo ou ainda por algum licor, nomeadamente de amêndoa amarga, não parece ter sido suficiente para que os tão famosos serões não fossem interrompidos. Infelizmente é esta época fria e chuvosa a comandar os desígnios de tanta gente por esse país fora que os assíduos frequentadores do famoso salão não poderiam ficar imunes. D. Ermelinda bem vai repreendendo a sua estimada filha. «Eu bem te disse para tomares a vacina, mas tu és teimosa. Sais ao teu pai. Em se lhe metendo uma coisa na cabeça, não havia quem o demovesse. Que Deus lá tenha a sua alma em descanso, coitadinho, que se finou tão cedo». Depois benze-se, fazendo primeiro o sinal da cruz. À filha, que já conhece a lengalenga toda da mãe, com destaque para as comparações que costuma fazer com o defunto, pois sempre que se refere a algo da filha, coisa boa ou coisa má, repete-se a conversa «és tal e qual o teu falecido pai», entra-lhe por ou ouvido e sai-lhe por outro, não sem antes dar uma palavra de justificação ou consolação por respeito à mãe que ela adora de verdade. «Não se inquiete minha mãe que eu já tomei um comprimido e sei que isto vai logo passar», depois dá-lhe um beijo respeitoso na testa e um afago na cabeça, enquanto se dirige ao piano para tocar uma melodia triste ou melancólica que o seu estado febril não lhe permite polkas nem marchas. Por falar em música, desde que o Bruninho Mendonça, que como sabem já toca guitarra portuguesa apesar dos seus oito anos e que sempre achou que aqueles serões onde ele tinha de regressar a casa às dez da noite eram uma seca, deixou de ir, que não se tem cantado o fado em casa de D. Micá. O Dr. Jorge, que agora frequenta sozinho aquela tertúlia, à falta do filho que acabou por se decidir a ficar em casa com a mãe, tenta ele próprio arranhar a guitarra. Mas a uma guitarra, não é qualquer que a agarra e a faz vibrar porque é exatamente como uma mulher. E por ter falado em mulher, dir-vos-ei, a talhe de foice, que a Clara, de quem D. Ermelinda nem gostava muito, disse-nos a D. Micá, está com um processo de divórcio em marcha. Sim porque o Dr. Jorge Mendonça, vejam lá, a pretexto de uma das sua célebres camisas de cambraia estar com uma ruga, foi à casinha dos serviços e demorou-se mais que a conta. Clara Mendonça, que já andava desconfiada com qualquer coisa, viu o marido enrolado com Adriana a sua criada de casa, de quem, logo no início prometi que falava dela e não estou esquecido. Parece que D. Ermelinda agora, apesar de não gostar muito de Clara, porque sempre teve uma pontinha de ciúme do seu casamento, de Clara, com o seu, de D. Ermelinda, amor platónico, se aproximou mais da esposa enganada e dizem, anda com umas ganas de Adriana, que se a D. Micá um dia destes não puser tudo a nu, ela própria desmascara essa impostora da criada dos Mendonça que tem uma história de vida de arrepiar. Mas retornando, o que me fez voltar a falar dos serões de D. Micá foi, precisamente, a ausência desses serões. D. Micá com gripe, o Eduardo Aragão que piorou, e de que maneira, do joelho esquerdo, o que nem lhe tem permitido fazer aquelas saborosas caminhadas matinais de que tanto gosta e que desfruta com regozijo e diz que sair à noite é bem pior, pois que se lhe mete uma humidade nas articulações e que nem com anti-inflamatórios a coisa tem resultado e a Eduardinha. E o que é que tem Eduardinha a ver com a gripe de D. Micá e as dores no joelho do Eduardo Aragão ou a crise de tosse cavada do Fagundes que teve de meter baixa, deixando os alunos de geografia uma semana sem aulas? Nada. Era só para dizer que a Eduardinha, também ela, deixou de comparecer. Despediu-se. Despediu-se sim senhor. Ela já não parecia muito talhada para aquela vida mas quando o Alfredo lá apareceu… Ainda não vos falei do Alfredo, mas o Alfredo é aquele empresário de bares e danceterias de não muito boa fama, que só muito esporadicamente frequenta os serões de dona Micá e fá-lo em memória do senhor Comendador a quem uma vez Alfredo ficou a dever um grande favor, por mor de umas penhoras que Jovelino Azeredo lhe pagou antes que fosse tudo por água abaixo e que, se um dia tiver tempo vos contarei lá para a frente. Dizia eu que desde que o Alfredo lá apareceu, de fato completo, sempre claro e sempre completo com colete e tudo, fosse verão ou inverno, pois Alfredo tinha sempre um ar jovem e bem-disposto, já com o cabelo branco, nos seus quase setenta anos, fumando charuto e usando camisas estampadas, dispensando a gravata mas nunca por nunca ser, o cachené de seda, lhe acenou com umas notas grandes de euro, só para lhe aquecer os pés neste frio e chuvoso inverno, ela que nunca precisou de paracetamol, aceitou. E diz ela, para quem a quer ouvir, que em vez de andar de bandeja na mão a servir este e aquele, é agora ela, servidinha em bandeja. E o Alfredo aprecia. Ah leão!


4 comentários:

  1. Apesar das tertúlias em casa da D. Micá estarem suspensas, não falta aqui fofoca e pardalão e pardaloca nova. Que é como quem diz, novidade.
    A Eduardinha nasceu com o rabo virado para a Lua ou para quem o quisesse ver, pois até esse Alfredo mal entra na historia, vai logo abarbatando o melhor pedaço do sítio, segundo nos tens dito...Ah, grande leão, mesmo!

    Beijo, Constantino! Ah, grande Águia!

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    1. Ela já está a ficar melhorzinha e parece que arranjou uma empregada que não tem medo de fantasmas.

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  2. Embora eu seja do Benfica tenho que concordar. Ah leão!...Adorei . Beijos com carinho

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    1. Eu também sou do Benfica, mas este tipo atirou-se felina e selvaticamente à febra.

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