Imprimi todas as páginas escritas do meu livro cujo nome ainda não inventei. Há pouco, enquanto tirava a fotografia a uma nuvem cujo sol-pôr a iluminava numa chama voadora, ai que bonito que isto é, ainda pensei, provisoriamente, chamar-lhe “ Ismael, Isabela e Incesto, três is, uma só história”. Mas retirei logo isso da cabeça pois, no meu livro, não tenho qualquer intenção de escrever sobre nenhum incesto. Assim impressos em Trebuchet MS 14, justificado em ambas as margens, já vai numas belas 39 páginas, somando aquelas que ainda não publiquei na Internet, já começaria a compor algo vendável. Enfiei os A4 numa pastinha plástica da Âmbar e saí, como raramente o faço, para tomar um café.
Já vi que é escritor, disse-me mesmo antes de dizer bom dia, bom dia e desculpe a intromissão, continuou sem que eu tivesse ainda reagido. A bica estava quente, uma mania que nunca entendi esta de servirem o café em chávena escaldada que me queimou os lábios mal lhe toquei com os ditos. Soltei um bolas, não em voz alta mas o suficiente para aliviar a tensão quando um tipo não está em situação de dizer um impropério. Pedi desculpa, olhei-a na mesa ao lado da minha, com um livro de Luís Sepúlveda fechado ao lado da sandes de fiambre com manteiga. Respondi-lhe que era uma tentativa. Quis saber qual era o tema e eu disse-lhe que ainda não tinha. Deu uma gargalhada e suspirou um não acredito! Depois ainda sem ter sustido completamente o riso perguntou-me como é que se pode escrever um livro sem tema?. Foi aí que eu lhe expliquei que na verdade eu não sabia bem se aquilo era um livro ou se eu iria escrever um livro. Pareceu-me confusa e obrigou-me praticamente a explicar-lhe detalhadamente todo este imbróglio. Ela foi comendo a sandes e no fim lambeu um pouco de manteiga que lhe ficou num dedo. No fim da sandes, quero eu dizer, mas não no fim da nossa conversa que ainda durou mais uma bica, desta vez em chávena apenas morna e um carioca fraquinho para ela. Sugeriu-me que fossemos até à esplanada para que pudesse fumar um cigarro e desta vez foi a minha de soltar uma gargalhada. O café não tinha esplanada.
Quando saí dali, não trazia apenas a garota na cabeça, trazia novas ideias, mas que não as explanarei agora, pois isso tiraria algum suspense. Discutimos se Isabella poderia ter uma irmã gémea que fosse na verdade o objeto do crime e que só por engano tenham recaído sobre ela as sete, logo sete, facadas; falamos também do tio do médico israelita e da coincidência de ele ser coxo, coincidência essa com o facto da misteriosa senhora de Trás-os-Montes achar que na noite do crime alguém coxeava; falamos que até pode não ser coincidência e falamos também que o meu livro não é um livro policial, que a morte de Isabella é um fait-divers para que eu possa contar as minhas histórias e as minhas relações de amizade com o galego Ismael Gusmán e que, eu próprio, nem sequer sei se na Rua dos Correeiros, 43, há ou alguma vez houve um prédio com sexto andar direito. Só não a consegui convencer como é o Dr. Castro Ribeiro um senhor de famílias, escrivão de Direito na cidade do Porto, divorciado de uma mulher com os dotes de Francisca, notívago de vocação, frequentador de cabarets, casas de alterne e outras de má porte, não tem nada a ver com esta história mas sim com um posfácio que eu terei forçosamente de escrever para me esclarecer.
Se isto tivesse sido noutros tempos, o meu amigo Ismael Gúsman ao ver a minha cara de preocupação com a evolução deste trabalho, tinha-me trazido um daqueles pãezinhos saloios, com dois lombinhos na chapa, passados em manteiga de vaca e um copinho de tinto das Gaeiras. Colocaria ao meu lado uma tacinha com mostarda e uma colher de café e dir-me-ia, batendo-me nas costas, Oh Constantino, não penxe mais nixo!