Tinham acabado as festas, Baltazar, Belchior e Gaspar já tinham entregado os presentes ao Menino Jesus, as mesas já haviam sido levantadas, as passas sobrantes, os pinhões, e até as frutas cristalizadas um dia destes serviriam para fazer um bolo inglês. Quando abri o frigorífico já nem um pouco do borrego assado no dia de Reis, envolto em gordura coalhada, sequer sobrava. Os queijos haviam levado um sumiço e até do pedaço de presunto comprado na feira de Natal só sobrava o osso. Tinha de sair para a escola, a minha mãe atrás de mim com uma caneca de café acabadinha de fazer e uma fatia de bolo-rei e eu a dizer que não tinha tempo para tomar o pequeno-almoço, farto que estava de bolos, filhoses e fatias paridas. Sei que ela ficou com uma lágrima no olho por eu ter sido tão brusco ao fechar o portão da escada, mas o Sr. Ramalho não iria esperar para pôr a carreira em andamento até Cacilhas só porque aqui o moi même tinha de tomar o cafezinho e assim saí e assim, sem nada no bucho, cheguei à faculdade.
Com aulas atrás de aulas acabei devorando uma sandes de queijo e um sumol num dos intervalos e uma bica e dois cigarros noutro. Quando por volta das cinco da tarde saí do Técnico estava com uma fome de lobo e não pensei em mais ninguém, nem em mais nada. Apanhei o metro até ao Rossio e dirigi-me à Rua dos Correeiros, à tasca do meu amigo Ismael. Passarinhos acabados de fritar, rissóis de camarão e pastelinhos de bacalhau, como só a Fernandinha os sabia fazer, só naquela tasca recôndita, mal iluminada onde o Rogério se senta a ler e a escrever.
Ainda não vos falei do Rogério, tampouco da Fernandinha, mas deixarei para mais tarde alguns detalhes e quiçá, umas narrativas dos personagens. Hoje apenas vos digo que a Fernandinha era a moça que o Ismael tinha contratado para a cozinha. Uma jovem beirã, faces rosadas, um pouco anafadinha para a idade mas que não deixava de ser a cobiça de quantos paravam na taberna. Sabe, xenhor Constantino (apesar de eu me irritar com este tratamento, jovem de pouco mais de vinte anos que eu era), se voxê quisesse tinha ali um bom partido. E eu começava-me a rir, oh homem, vossemecê não acha que ainda sou muito novo para me prender? Não sei que idade tinha o Ismael Gusmán, mas já teria entrado nos cinquenta, o filho, Ismael Gusmán como o pai, a quem tratávamos por Júnior já era crescidote na altura e o senhor Ismael já não era novo quando teve aquela aventura com a cantadeira Lucrécia, Deus tenha a sua alma em descanso porque era boa mocinha mas, enfim, muito fraca de corpo e, naquele tempo, a tuberculose era fatídica. Ou então, venha de lá quem saiba, teria sido de ciúmes da Isaurinha bate-sola, pois se se morre de amor, também se morre de ciúme. No entanto, aquela contratação da Fernandinha, trazia água no bico. Adiante.
Ficamos depois ali mais de uma hora a falar de namoradas e a comer rissóis de camarão, passarinhos fritos e pastéis de bacalhau e eu a vingar-me da bebida que em casa não bebia, não que não tivesse havido espumante, anis e vinho abafado, mas um adolescente e ainda por cima estudante, não se mete nessas coisas. Não foi portanto de admirar que um bom jarro de tinto já me tenha dado um certo tremor nas pernas. Não dei parte fraca mas acho que ao senhor Ismael não lhe passou despercebida a cor dos meus olhos. Quando lhe dei as boas noites e lhe acenei com a mão como quem faz continência, estava quase na hora do último vapor do Terreiro de Paço para Cacilhas. Voei, literalmente, e lembro-me de um homenzinho de camisa azul e panamá branco, de virola dobrada, gritar-me salta ou ficas em terra. Saltei.
Durante uns quatro ou cinco dias não tive oportunidade de passar pela taberna do galego pois um exame de eletrotecnia e uma discussão do trabalho de uma disciplina tão parva que já nem me lembro o nome, me ocuparam mais horas do que aquelas que eu gostaria de ter despendido. Para mim há outras coisas boas (muito boas) na vida que não seja só estudar, mas obrigações, são obrigações.
Seja bem aparexido sr. Constantino, cumprimentou-me o Sr. Ismael mal bati com a cabeça nos espanta-espíritos, anjinhos em latão amarelo tocando sinos com uma vareta, suspensos na porta que sinalizavam a nossa entrada. Respondi-lhe à saudação com um aperto de mão e meio abraço e aproximamo-nos de uma mesa isolada quando ele me atacou. Oiça lá xenhor Constantino, o tintinho faz boxê perder o xuízo ou está a ficar maluquinho de tanto estudo? E eu com uma cara de parvo que nem imaginam, fazendo-me de novas sobre o que ele estava a falar. Esperto e perspicaz, o meu amigo galego dá uma gargalhada e diz-me baixinho, não, não xenhor, não o estou a criticar de ter passado o tempo a bater olhos à Fernandinha, mas que história é essa de me ter passado a tarde a chamar xudeu, de me dixer que eu era tal e qual o xenhor ben-Avraham e dizer-me que um dia ainda vai desvendar o crime das sete facadas?
Nesse dia, li um livro de Asterix, folheei três páginas de Herman Hess e decidi-me por Edgar Morin. E nem a voz abafada de um bardo cantando como se estivesse atado a uma árvore me inspirou o resto do dia. Quando adormeci, em vez de sonhar com Isabela voavam à roda da minha cabeça seis passarinhos fritos e três pastéis de bacalhau.
Genial e consegues prender-me do início até ao fim:)
ResponderEliminarQuando se é jovem e não se está habituado a beber, nem socialmente, a cabeça a andar à roda é um clássico. Ou os passarinhos em volta dela, se bem que nem todos sejam fritos... :)))
ResponderEliminarJá pastéis de bacalhau, é menos frequente! :)
Mas ficamos a aguardar os próximos capítulos e o que é que a Fernandinha e o Rogério realmente faziam na tasca do galego... :D
Beijocas!
No meu canto, apesar de moreno senti-me corar... Não porque tenham falado em voz alta do nome e da minha ocupação...mas pelo olhar meigo da Fernandinha... e também eu adormeci com meia dúzia de passarinhos fritos a andarem-me à roda da cachimónia empoleirados em três pastéis de bacalhau com que a dita Fernandinha me apaparicou... Amanhã volto à tasca. Mas não vou escrever nada...
ResponderEliminarmas porque razao mostras o bolo-rei, para me infernizar o juízo, é? sabes, eu sou louca por bolo-rei e sou capaz de comer assim um bolo sozinha mais deus
ResponderEliminarkis .=)
Ai, sr. Constantino... suas lembranças nos prendem sentados aqui até o fim. Demais! :)
ResponderEliminarO seu texto encheu-me de fome! E não é hora para isso e nem devo, além das risadas de praxe!
ResponderEliminar;)
Foi nos tempos da faculdade que apanhei a minha segunda (e última) bebedeira. Subi o Bairro Alto agarrado a não sei quem, e voltei para casa sabe-se lá como. Mas acho que não insultei ninguém! Abraço!
ResponderEliminarOs pitéus puxavam para a pinga, só que por vezes sobe à cabeça e não há passarinhos que nos valham:))) Só a cabeça roda e a língua desprende-se proferindo palavras que a amnésia alcoólica é culpada.
ResponderEliminarPerdoa-se o mal que faz pelo bem que sabe e não fossem estas aventuras, não tinha o prazer de ler mais uma aventura bem humorada que me deixa com um sorriso de orelha a orelha.-;)
É o que eu digo!!
ResponderEliminarNão há nada como um copito para nos soltar a imaginação... e os sentidos!
Bem ... misturar Asterix, Hesse e Morin com o mundo de Ismael é obra!
ResponderEliminar:):):)