O meu espelho começa a cansar-me. Não que não seja um
espelho bonito, numa decoração, quiçá já um pouco démodé, mas ainda assim
funcional e condicente com o ambiente. Não que não esteja em condições, sem
quebra da película que o espelha, sem rachas no vidro, sem perdas nos cantos,
sem manchas. Não que não reflita o ambiente calmo em tons de verde-água que
permite uma suave transição entre o matinal despertar e o mundo azul brilhante
que nos chega pela janela. Não que ao olhar o espelho, olhos nos olhos, não
possa detetar mais uma cã, mais um pé de galinha, mais um engelho na mão que
pega a lâmina com que de manhã me barbeio, me penteio, me apronto. O meu
espelho não tem defeitos e apesar disso começa a cansar-me. Talvez, se um dia
se quebrar eu venha a ter saudades dele, mas agora…
Agora, saudades tenho do espelho do senhor Zé Barbeiro, o
barbeiro, claro, onde em miúdo ia para cortar o cabelo. Na verdade o senhor Zé
Barbeiro não tinha um mas sim dois espelhos. Exatamente um em frente ao outro.
Eu não gostava muito do senhor Zé Barbeiro que me obrigava a permanecer imóvel na
cadeira, minutos sem fim, eternidades, a ponto de me ameaçar cortar-me uma
orelha se eu não estivesse quieto. Estar sentado na cadeira do babeiro era para
mim um suplício mas também um fascínio. No espelho do senhor Zé Barbeiro eu
via-me e o espelho via-me a mim. Quando eu me olhava por detrás, o espelho
olhava-me de frente e quando eu me olhava de frente o espelho olhava-me por
trás. E se a minha cabeça ficava à frente de um e de outro e de outro e de
outro e de outro e de outro, eu inclinava-a um pouco e ficava a ver uma
infinidade de Constantinos, uns de frente outros de trás, pelos espelhos fora.
Queria lá saber se o senhor Zé Barbeiro me cortava uma orelha ou não. Até
aposto que aquilo era mentira dele.
Gostava também do espelho do senhor Isidro. O senhor Isidro,
para dizer a verdade não tinha só um espelho, ele tinha muitos. E todos eles também
me fascinavam e intrigavam. Eram pequenos, colados nos pilares da loja e em
qualquer deles não se via a pessoa mais do que dos joelhos para baixo. Com os meus
três anos, mais que me fascinarem, intrigavam-me. Eu via as pessoas inteiras e no
espelho só tinham calças e sapatos, ou então um bocadinho de vestido meias e sapatos.
E então eu agachava-me para ver se percebia por que é que quando eu andava a
rastejar pelo chão via as pessoas inteiras nos espelhos. E então vinha o
fascínio da descoberta. E por isso a exaustivamente repetida pergunta, que por
vezes já lhe enchia a paciência «mãe, quando é que vamos ao senhor Isidro
comprar umas sandálias?». Até sonhava com os espelhos da sapataria.
Dona Carmo, que é como lhe chamavam mas que eu sempre
duvidei de que se chamasse assim, pois tinha sotaque espanhol, só tinha um
espelho. Eu, quando era garoto estranhava e perguntava à minha mãe porque é que
a Dona Carmo tinha um espelho tão velho. Acho que a resposta que obtive foi
porque Dona Carmo também já era velhota, mas a verdade é que em termos fashion, Dona Carmo estava muito à
frente. O espelho dela era propositadamente velho, numa moldura de castanho,
parecia salpicado e escurecia nos cantos. Quem visitava a loja da D. Carmo era
gente fina que ia lá comprar ou alugar chapéus de cerimónia. Era a chapelaria
mais importante da vila, vendia boinas, bonés, chapéus de coco e até cartolas.
O espelho condizia com a decoração “de época” da loja da Dona Carmo. Balcões,
armários, prateleiras e espelho, tudo a condizer. Uma vez o meu pai alugou na
loja Dona Carmo um chapéu parecido com o do Fernando Pessoa. Quando olhou para
o espelho da Dona Carmo saiu de lá com a sensação que havia qualquer coisa que
não estava bem e quase culpou o espelho por isso. Só dois dias depois é que se
lembrou que não tinha bigode.
Na Feira Popular era rir até mais não poder. Quando cá fora ouvíamos
aquela cassete que não parava de gargalhar, numa antecipação dos risos
enlatados das séries televisivas, sabíamos que estávamos perto do Palácio dos Espelhos.
É claro que lá dentro todos nos partíamos a rir, mas nunca eramos tantos quanto
as gargalhadas vindas do altifalante poderia induzir. Espelhos que nos
distorciam a imagem, onde tão rapidamente eramos anões, como jogadores de
basquetebol, onde reproduzíamos o Bucha e Estica lado a lado, onde eramos
marrecos ou barrigudos, e onde até tínhamos os maxilares de lado sem termos
jogado boxe. Se ainda houvesse Feira Popular voltaria ao Palácio dos Espelhos.
Ando a precisar de rir.
No prédio em frente ao que eu morava, vivia num segundo
andar a Dona Perpétua. Dizem que a Dona Perpétua era uma senhora que tinha tido
uma casa de passe na Baixa Lisboeta. Quando a D. Perpétua se retirou dessa
vida, tendo-se casado com um senhor que tinha um carro desportivo verde-claro e
era, pelo menos, uns vinte anos mais novo do que ela, vimos um dia chegar uma furgoneta
e descarregar umas peças de mobília à porta do prédio. Ouvimos da janela do
segundo andar a Dona Perpétua, com ar de quem se levantara tarde, com um
cigarro numa mão e embrulhada num robe azul-escuro de cetim, gritar «cuidado
com o espelho!». Dizia a malta mais velha, com ar de malandrice, de que era o
espelho que ela punha aos pés da cama quando atendia os clientes. E a gente, na
nossa ingenuidade de putos, ria-se sem saber porquê.
Ah, é verdade, não podia acabar esta minha memória de
espelhos sem vos contar duas coisas. A primeira é que todo este desenrolar de
pensamentos sobre os espelhos da minha criancice não demorou mais tempo do que
o de cortar a barba matinal. A segunda é para dizer que quando o padre fez as
exéquias de Dona Carmo chamou-lhe Mari Carmén. Eu bem me parecia que ela era
espanhola.
Há espelhos sem dó nem piedade. Mostram os nossos mais pequenos defeitos. Outros há ( como em certas lojas) que só lá estão para nos fazer mais elegantes. E bem nos levam ao engano... :)
ResponderEliminarSão uns ingratos. A gente a limpa-los tão bem com Ajax limpa vidros e é assim que eles nos agradecem.
EliminarEspelhos malandros, esses, que nos põe mais umas cãs e uns pés de galinha que ontem nem existiam... :)
ResponderEliminarProblema é que esses espelhos dessas lojas e até da Feira Popular foram desaparecendo todos, com o comércio tradicional a ser substituído por grandes centros comerciais e outras grandes superfícies!
Beijocas!
Por acaso os da Feira Popular eu era maluquinho por eles.
EliminarBeijocas.
Gostei muito dos espelhos da tua meninice, Constantino.
ResponderEliminarFizeram-me lembrar a Casa dos Espelhos da feira anual lá da minha terra. Nuns pareciamos uns gigantões e noutros uns aurênticos potes de almece. Mas era imensamente divertido, mirarmo-nos naqueles espelhos.
Deste no qual te olhas para fazer a barba, já não gosto tanto. É que também eu tenho um igual, e das poucas vezes em que me olho seriamente durante alguns segundos, descubro sempre mais um motivo para me sentir descoroçoada com a velocidade a que o tempo passou e me deixou marcas indeléveis no rosto e na alma.
Também adorei essa ingenuidade de putos com que riam das desventuras da pobre D.Mari Carmén...
Um beijo, Constantino.
Não querida, a D. Mari Carmén era a dona da chapelaria. A "afinal, desventurada, quem és tu?" era a D. Perpétua. RIP.
EliminarBeijinhos.
Ai Constantino, então a D. Perpétua é que era a Rosa enjeitada?
EliminarAinda bem que a Dona Mari Carmén não soube da confusão que eu fiz com a outra, senão ia ser o bom e o bonito.
Fica bem, meu amigo!
Pior é quando olhamos de frente para um espelho e não reconhecemos a criatura que nos devolve o olhar ... Mas, bom mesmo é rirmo-nos de tal e velarmos o raio do espelho ... assim como quem não quer a coisa!
ResponderEliminarGosto muito do seu registo de escrita: um humor fino e acutilante numa linguagem fluída. :))
(P.S. Não resisto a citar Eugénio de Andrade, a propósito da palavra palavras:"Há palavras que beijam como se tivessem boca")
Até breve. :)
Excelente, Vitor, desta vez mais do que a ironia, é um soslaio bem mais profundo. Olhar o espelho e espiolhar a alma... saber o que somos realmente é algo complexo, que muitos não querem ver reflectir...
ResponderEliminarum abraço
Gostei mais ainda por saber, que esse espelho, não era o mesmo de Dorian Gray....
ResponderEliminar;)
Memórias que ficam e que sabem sempre a pouco, quando recordadas.
ResponderEliminarFabuloso!
Beijos