domingo, 23 de setembro de 2012

168. D. Micá, a contadora de histórias



A D. Micá é uma contadora de histórias. Micá de Azeredo, filha do Comendador Jovelino Azeredo, um beirão a quem o cacau tentou em S. Tomé, sem saber como nem porquê. Quando o jovem Jovelino saiu de Albergaria para vir para Lisboa, esperava tudo menos embarcar para África. É através de um primo, que tinha conhecimentos junto dos engajadores do Campo das Cebolas que, no trabalho de estiva, vem a conhecer o imediato Elisiário Godofredo de Almeida, homem de muitas mulheres e de outras que não se sabe, inclusive de uma amantizada de Jovelino, a quem este, por estratégia, fechava os olhos nos seus avanços com o imediato. Este comportamento passivo de Jovelino Azeredo valeu-lhe as boas graças do imediato que, para que chatices não viessem a surgir no futuro, quando os “apalpansos” passassem a deboche e a coisa se complicasse, pois nunca se sabe como se comporta um homem quando passa de candidato a corno, a chifrudo de pleno direito. Assim, convida o Godofredo a Azeredo para que este embarcasse no pequeno navio e o deixou, com uma mão à frente e outra atrás, como soe dizer-se, na ilha de S. Tomé, torrada pelo equador e onde o cacau já era rei. Sem meios nem linhagem, difícil ficava para o jovem Jovelino se embrenhar no meio dos plantadores, fulanos de influência e ligações aos meios militares, a bem dizer, fulanos de tal. Não perdeu tempo, homem de raça que era, em entender o negócio e não vale a pena aqui explicar detalhadamente, porque para contar histórias temos a D. Micá, Jovelino Azeredo acabou como exportador de cacau tendo feito fortuna. Regressou a Portugal em 1976 com quase sessenta anos de idade, solteiro rico e dizem até que não era mau rapaz. Mas não se ficou por aqui, pois num saltinho às berças, veio a conhecer uma bela senhora, que ainda não tinha feito os quarenta anos, a D. Ermelinda Sebastião, casaram e vieram a gerar Maria Catarina Sebastião Azeredo, Micá para os amigos, D. Micá para os conhecidos, grupo onde me incluo. Está visto que é preciso contar como é que o senhor Jovelino veio a ser comendador mas isso conta-se mais rápido do que qualquer história que D. Micá conta aos serões que costuma dar na sua casa apalaçada ali para os lados da Lapa. Tendo ficado órfã de pai, arrastou D. Ermelinda para Lisboa onde o dinheiro e um arquiteto, por acaso de nomeada, de uma firma de Arquitetos que só podemos aqui dizer que se tratava de Fulano, Sicrano e Associados, pois D. Micá, por causa de umas alterações que foram feitas à casa, sem que ela as tivesse avalizado, jurou nunca lhes fazer publicidade, mas dizíamos que o dinheiro e o arquiteto transformaram um velho palacete numa residência moderna. Decorada já nos finais dos anos 90 do século XX, a casa perdeu aquele ar pesado neocolonial para que a modernidade sofisticada se encarregasse de fazer o resto. É assim que um piano Steinway & Sons, totalmente branco com incrustações Swarovsky pontuava na ampla sala, com também amplas janelas de vidro triplo e caixilharia em pau-brasil aclarado e um pequeno varandim onde só cabem duas pessoas de cada vez, quiçá com algumas intimidades. Os tetos e o chão foram forrados de placas de carvalho sueco e uma parede em mármore cinza claro contém uma lareira a gás, incrustada. No centro, uma mesa redonda baixinha em ébano sobre uma grande tapeçaria persa e uma chaise longue acolchoada a couro italiano. Num canto da sala, com vista para o Tejo, dois espaçosos sofás de quatro lugares cada, dispostos em L de tons branco sujo. O único móvel era um aparador em laca onde se encontrava camuflada uma excelente aparelhagem de som e a sua coleção de CDs de música pop-rock anos oitenta. Nas paredes, apenas dois elementos decorativos. Uma pintura de Paula Rego e um retrato emoldurado do Senhor Comendador, de autor desconhecido. Quando o senhor Jovelino regressou, não quis que o seu dinheiro ficasse parado e associou-se com um cunhado de D. Ermelinda Sebastião que era criador de vacas leiteiras. Pois não só criaram uma sociedade de sucesso, mas também uma fundação, a Fundação do Leite Magro com Chocolate, associando o espirito da alimentação saudável com o gosto inconfundível e indispensável do cacau e cuja atividade nunca foi relevante, pois dela nunca se ouviu falar, mas também nunca deixou de receber o devido subsídio estatal. Um certo 10 de Junho recebeu uma comenda, dizem que por causa da sua Fundação, mas que não se sabe se foi bem assim. Coitado, de pouco lhe valeu pois um fulminante ataque cardíaco acabaria por o mandar desta para melhor, apenas alguns meses depois de agraciado. Vivem agora D. Micá, nos seus pouco mais de trinta anos de idade com a sua ainda roliça e bem tratada mãe, de rendimentos e de serões, não vá o tédio matá-las. E se vos falei hoje de Jovelino Azeredo foi porque ouvi contar, da boca da própria D. Micá, um dia que fui convidado para o serão por um primo meu que é seu amigo e que por sinal também é meu amigo, pois senão não me faria tais convites e que arrasta a asa a D. Micá, a contadora de histórias. Dela ainda ouviremos falar bastas vezes nesta sequência de histórias por ela contadas e outras não.


9 comentários:

  1. Ah, vais iniciar mais um ciclo de histórias? Quer dizer, passar para o blogue as da D. Micá... Acho muito bem! :)))

    E podes começar por aclarar lá essa coisa da fundação de leite com chocolate, que não percebi bem para que é que servia, para lá de escapar com a dinheirama ao fisco e ainda receber subsídios estatais... ;)

    Beijocas!

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    1. Teté e para que é servem mesmo as Fundações? LOL.
      Beijocas.

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  2. E a Fundação do Leite Magro com Chocolate terá alguma hipótese de sobrevivência na atual conjuntura? :)

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  3. Eu por acaso conheço uma relativa da D. Micá - que por acaso não se chama Micá- bisneta de um senhor que tem uma estória parecida com essa, de fortunas feitas em S. Tomé, amores e desamores e ainda uma Afunda São, de boa reputação mas duvidosa gestão.
    Devo é dizer que a relativa da D. Micá é mais chata que sei lá o quê, pelo que fujo dela a sete pés sempre que a vejo por perto.
    Abraço

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  4. Quero ver se desta não perco o fio à meada, porque desconfio que vem aí um rol de estórias interessantes.
    Abraço

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  5. Adoro estórias bem contadas. Vou ficar por aqui (que é como quem diz, vou estar à coca de mais).

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  6. Sò não percebi a tua dúvida sobre os motivos dele ter recebido a comenda...

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  7. A Maria Catarina, Micá para os amigos, logo, para todos nós, parece-me ter boas histórias para contar. Vanham elas!
    Mas sem Fundações. Nem de Leite Magro ou desnatado.
    Acho que o governo vai acabar com essa mama e até o Marocas vai perder 30% das benesses.
    Para que mãe e filha não morram de tédio, aconselho-as a ver a "Gabriela", talvez aprendam alguma coisinha com os coronéis do cacau mais as meninas do Bataclã.

    Beijocas para ti e para a Micá.

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  8. Se o Comendador Jovelino tivesse vindo ao Brasil, e ficado na Bahia, com suas plantações de cacau, teria sido trilhardário...

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