sábado, 2 de julho de 2011

47. Salvo pelo gong



Ele estava à beira de desistir de tudo. De tudo o que era material, para ser mais preciso. As encomendas de quadros, desde que expôs em Santarém, começaram a aparecer-lhe no seu correio eletrónico num ritmo nunca antes acontecido ou sequer, cogitado. Tinha decidido não pintar mais. Ter pintado aquela pega de caras fora apenas uma inspiração de momento e, a festa brava não era, irónica e contraditoriamente, uma paixão sua. Também já não escrevia. O último romance seu fora editado há mais de dez anos, apesar da insistência da editora, que tinha gostado muito da aceitação pública dos seus trabalhos, nomeadamente de ele ter tido um título no lugar mais alto dos escaparates durante quase meio ano. Há muitos anos, muitos mais do que os livros, que tinha pendurado a guitarra e fechado o piano. Gostava de tocar os clássicos e, aos serões, atacava com tanto fervor as teclas para executar a Dança do Fogo do grande Manuel de Falla como dedilhava com mestria o Concerto para Aranjuez de Joaquin Rodrigo. Aliás, a este gosto pelos mestres espanhóis não lhe era alheia a costela castelhana herdade de D. Pilar Jurado de Navarra, sua avó paterna e de quem ouviu imensas histórias. A mim pessoalmente, contou-me muitas da guerra civil espanhola quando eu lhes visitava a casa, mormente para tomar um Pedro Domecq, na companhia do neto e de um outro amigo, tertulianos do verbo, amantes de Pessoa e de Cervantes e da arte de Velasquez. Talvez um dia eu aqui traga alguma dessas histórias. Ele tinha nascido para as artes, cursado na faculdade de Belas Artes da Universidade de Madrid e não desperdiçou nenhum dos seus conhecimentos. Um dia caímos de exaustão, uma noite inteira a discutir Brasília e Niemeyer sendo que de antemão sabia que ele, tal como eu, fazia da arquitetura uma das suas paixões. Quando olhamos para o relógio, responsabilizamos de imediato o Pedro Domecq do qual, diga-se de passagem, nunca lhe faltava na garrafeira uma solera reserva.  De todas as suas atividades criativas não se lhe viam sinais de vontade de continuar e isso, para quem conhecia a sua garra, era motivo de grande preocupação. Só fiquei descansado acerca da sua saúde mental quando, na semana passada, o encontrei a passear no paredão da praia, de mão dada com Elisabete, com quem está casado há mais de trinta anos. À mesa do café, onde desenvolvemos mais do que dois dedos de conversa desta vez sem brandy, ele, virando-se para Elisabete, afirmou, quase solenemente e com um ar tão sério como o de quando tocava Miguel Llobet ou Regino Sains de La Maza, que ainda não desistiu de fazer amor. E enquanto eu dava uma sonora gargalhada, Elisabete não conseguiu evitar o rubor nas suas, sempre jovens, maçãs do rosto.

Texto e foto do autor. Todos os direitos reservados.

19 comentários:

  1. Ahahah, quando ele desistir dessa "arte" é porque o artista morreu dentro dele. Ou, quem sabe, o corpo também... :)

    Beijocas e bom fim de semana!

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  2. Passando pra desejar um ótimo final de semana!!!


    Bjos

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  3. salvo pelo amor...boa história, Constantino!um abraço

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  4. Prazer em ler o seu texto, uma narrativa envolvente e que toca em temas tão valorosos para mim, música, poesia, pintura e arquitetura. Quem nesse mundo não já leu Pessoa e ou Miguel de Cervantes, ou não se encantou com uma tela de Velasquez? E para arrematar, Niemeyer com a perfeição dos seus traços. Creio que é impossível falar nele, e não vir a reboque, a nossa capital federal e 'a exploração das possibilidades construtivas e plásticas do concreto armado', que em sua genialidade, traçou linhas, para que o futuro contasse outras linhas de uma história de uma cidade, de um povo, e de um arquiteto singular. Naturalmente que minha admiração é de brasileira para com um brasileiro, um grande arquiteto, que a meu ver trouxe "soluções totalmente inesperadas, propostas estruturais fora de qualquer compêndio e uso de materiais simples, ele cria espaços comoventemente democráticos”, mas passa pela postura ética e política do cidadão Niemeyer, que em momento algum, para quem quer que seja, ‘jamais deixou de ter posições políticas claras’- ele é comunista -, um grande militante da e para a humanidade, para o humanismo, com seu veemente ‘protesto contra a desigualdade social existente no mundo’.
    Desculpe a empolgação, Constantino, era pra ser um pequeno e acanhado comentário.

    Abraço e obrigada pela visita, é sempre prazer te ver no Canto.

    (concordo contigo, é preciso chorar, às vezes faz bem, mas...;))

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  5. Constantino. Já vi que temos mais coisas em comum do que eu imaginava. Conheço perfeitamente todos esses grandes clássicos para guitarra. Manuel de Falla, Albéniz, Miguel Llobet e joaquin Rodrigo são os meus Mestres. Eu próprio também os toco. Já agora aceita este meu novo desafio para guitarra:

    http://ocantinhodomestre.blogspot.com/2011/07/desafio-musical-n-4.html

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  6. O título deste blogue está incompleto. Deveria ser "Constantino, guardador de vacas e contador de histórias".
    :))

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  7. E assim não desistia de valores importantes.
    Que personagem impressionante aqui traçaste. Todos gostaríamos de conhecer alguém assim.

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  8. Obrigado pela visita e pelo comentário!
    Interessante seu blog, já sigo!

    Abraço,

    Rui
    OLHAR D'OURO

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  9. ჱܓOlá, amigo!
    。°✿

    Passei para conhecer seu blog. Vim movida pela curiosidade "Contantino, guardador de vacas?!... muito original.
    Mas... amei mesmo!!! Agora sou sua fã... você é um exímio contador de histórias.

    Bom fim de semana!
    Beijinhos.
    Brasil

    ✿✿♪

    ♫° 。✿ ✿ჱܓ

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  10. Não se pode mesmo desistir:::!

    Aprecio as imensas referências aos elementos externos que povoavam o nosso tempo, como as marcas das bebidas, os gostos musicais etc.
    Um abração

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  11. Pintura, escrita, música, arquitectura, sexo...
    Estava quase a mais que admirar, até invejar o personagem, quando reli e... desisti. Não é o meu quase heroi por si descrito aceitou pintar só por pintar? Desfaça-me a impressão: diga-me que ele escreveu livros que amou, que amava o que tocou, que admirava Niemeyer para além da perfeição dos seus traços e que o que fazia com Elisabete era mesmo amor. Diga-me, por favor...

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  12. Meu caro Rogério, não fique dececionado com ele. Eu não fiquei. Quando ele pintou a pega, disse-me que foi como que uma inspiração de momento. Só tinha, segundo ele, assistido a três touradas na vida, uma das quais em Espanha, onde não entram forcados. Um amigo comum, esse sim aficionado dos toiros, ao ver o quadro mexeu lá uns cordelinhos e conseguiu-lhe a primeira exposição. Depois começou a receber encomendas e quando recebeu a primeira desistiu de pintar. Eu acho que ele só sabe mesmo respirar por amor. Ele é um dos meus personagens, deste e de outros mini contos.

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  13. Ainda bem que li também a sua resposta ao amigo Rogério, tinha ficado com a mesma impressão.

    Cheguei cá pela sua imagem no Avatar.
    Curiosamente, tive muitos gansos que acabei por dar porque precisei do espaço enorme e do lago para outros fins.
    Dei todos os meus gansos porque nunca teria sido capaz de os ver matar muito menos de os comer.

    Achei curioso que tenha escolhido esta imagem para um Blog cujo título é o Guardador de Vacas, embora saiba muito bem que os gansos são excelentes guardadores.

    Gosto muito de boas narrativas.
    Voltarei certamente.

    Fernanda (Ná) para todos os amigos.

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  14. Olá Constantino.
    Começo por congratular-me que a festa brava não fosse uma paixão para esse homem excepcionalmente dotado para as Artes e para as Letras, porque, caso contrário, a minha admiração por ele iria esmorecer muito.
    Como foi possível e porquê, tanto poder criativo cair assim nessa apatia?
    Intrigante, mas não incompreensível de todo, creio eu. Aliás, o facto de ele ter pintado a tal pega de caras numa inspiração de momento, não significa que o tenha feito só por fazer.

    Penso que existem certas coisas que ficam adormecidas em nós durante muito tempo, mas continuam latentes e de um momento para o outro podem despertar em força.

    Ora, se ele reconheceu e afirmou com tanta solenidade e convicção ainda não ter perdido a vontade de fazer amor com a sua Elisabete e o rubor dela foi a confirmação disso mesmo, então temos homem!

    De um momento para o outro dependura a guitarra, abre o piano, arma o cavalete, e a sua garra criativa vai renascer como uma onda avassaladora.
    Um dia destes estará ele a convidar o Constantino para ir lá a casa tomar um Pedro Domecq…
    Mais uma vez repetindo o que já lhe disse vezes sem conta, rendo-me ao seu talento como brilhante contador de histórias e… guardador de sonhos.
    Beijinho
    Janita

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  15. O que aprendo contigo rapaz e destes uma volta soberba a momentos que te marcaram para sempre e o reencontro, sempre bom, mas com esse ar que descreves que não desistiu... hum quando anunciam é porque...esquece, porque há mil formas de fazer amor.:):):)

    Adorei!

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  16. ... e assim se contam e inventam

    histórias verdadeiras

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  17. Volta-se atrá no tempo, recordam-se poetas músicos e conversas..bebe-se para aquecer o coração e amenizar os diálogos e no final um desfecho feliz para uma prosa excelente, nunca desistir!!!
    Abraço
    Manu

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  18. Já sou fã do Constantino.Até breve.

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  19. ...e entre todos os valores,
    é claro que o amor feitinho
    sob os lençóis tbm ganhou
    destaque.

    lindo isso...

    bj, moço querido!

    adoro encontrá-lo em meu canto!

    Vivi/Infoco

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