quarta-feira, 13 de julho de 2011

52. Injeção



Chamávamos-lhe doutor, embora a bordo daquele navio não existisse nenhum médico. O enfermeiro assumia assim o cargo do médico e o seu estatuto. Passava a frequentar a messe dos oficiais, a sala de estar dos oficiais e o convívio entre oficiais, numa das áreas profissionais que era à data (hoje não sei, estou afastado) das mais corporativistas e gregárias que conheci em toda a minha atividade profissional. Foi assim, dada esta abertura que lhe foi concedida e a uma gripe que durante uma semana não me quis abandonar que conheci o doutor.

Entrar naquela cabine de enfermagem era ter a certeza de algumas coisas. Que o doutor dava uns toques no xadrez que jogava amiúde com o terceiro piloto. Que o frigorífico do doutor também fez as suas promoções, sendo que uma garrafa de whisky tinha o mesmo estatuto de uma caixa de supositórios ou que uma dúzia de cervejas ombreava em galões com as anti-tetânicas e as vacinas da gripe. Que o doutor às vezes estava sóbrio.  Que o doutor era uma pessoa de trato simpático e de quem toda a tripulação tinha uma excelente imagem pessoal.

Quando desembarcamos num porto de nuestros hermanos e colocamos a nossa bagagem no espaço do autocarro concebido para o efeito, esta foi arrumada de tal maneira que as caixas de garrafas das mais diversas bebidas, whiskies, runs, vodkas, gins e outras que naqueles tempos eram um luxo no nosso país, pertencentes ao doutor, pois claro, não pudessem ser detetadas na alfândega da fronteira. Ainda assim havia algum risco mas que não se consumou. O doutor vinha acompanhado daquilo que mais gostava e durante algumas semanas nem se lembraria mais do que era uma seringa.

Foi assim, sem grande admiração e fazendo jus à simpatia que granjeou junto de todos nós que, a uma observação minha sobre o facto de não ter encontrado (à hora em que os nossos irmãos aqui do lado faziam a sesta) uma única tienda aberta onde comprar uma garrafa de brandy para oferecer ao meu pai, o doutor só não se transformou em garrafa porque não pode. Abriu um saco com meia dúzia delas, para ele não havia siesta que resistisse a uma boa pinga, e logo ali, perante a turba, ofereceu-me uma das suas recem adquiridas garrafas. Foi já com algum espanto que umas semanas depois recebi uma carta do doutor a relembrar-me que “ lhe devia oitenta e quatro escudos de uma garrafa que ele  gentilmente me tinha dispensado, para que eu pudesse ter um gesto simpático para com o senhor meu pai”.

Texto e foto do autor. Todos os direitos reservados.

16 comentários:

  1. Que gentil... :)))

    beijocas


    Mirian Martin

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  2. Me reportei ao meu Vó, ele tinha um alambique lindíssimo,

    Que saudades Dele!

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  3. "o doutor só não se transformou em garrafa porque não pode". Se tivesse podido, V. teria ficado... prejudicado (com efe grande)

    PS: Até quase ao fim,
    julguei que este texto falava de mim
    (do livro que estou a escrever.
    Ainda não viu? Vá ver!)

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  4. Rogério, por agora só li o 85 e o 86. De dia, quando os olhos estiverem menos cansados lerei muitos mais. Gostei do que li, digo-o com sinceridade. Um dia escrevi um pequeno romance na net. Está em livrodecontos.blogspot.com que dediquei aos meus filhos. Para que percebessem um pouco o 25 de Abril. Nunca pensei em publicar em papel (também não sei se seria possível), mas gosto dele assim. Um abraço.

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  5. Constantino... Que história, hein?!
    Imagino quantos outras vc ñ tem ainda para nos contar!
    É sempre muito bom ler seus contos, amigo.
    Obrigada por partilhar :)

    Bjs,

    Tânia

    PS.: Adorei a fotografia também ;)

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  6. Afinal ofereceu ou vendeu???? :D

    Agora gostaria de falar de outra coisa que não sei bem se tem a ver ou não com o acordo ortográfico.
    Repare na seguinte frase:

    "Quando desembarcamos num porto de nuestros hermanos e colocamos a nossa bagagem..."

    Tive que ler esta frase duas vezes para perceber que, afinal, os verbos "colocar" e "desembarcar" não estavam no presente do indicativo, mas sim no pretérito perfeito. "Desembarcámos" e "colocámos" estaria mais correcto. (Mais um golpe do acordo ortográfico ????).

    Um grande abraço, meu caro amigo.

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  7. Na verdade meu caro LOL, existe uma incoerência no meu texto, já que no primeiro parágrafo eu escrevi chamávamos-lhe, acentuando o pretérito perfeito e no que refere omiti o acento. Existe incoerência à qual eu deveria ter prestado mais atenção. No entanto em nenhum dos casos existe erro porque, vamos lá a saber porque é que certos impérios continuam a tecer teias destas, o acordo ortográfico, no que respeita à acentuação refere:
    4º-) É facultativo assinalar com acento agudo as formas verbais de pretérito perfeito do indicativo, do tipo amámos, louvámos, para as distinguir das correspondentes formas do presente do indicativo (amamos, louvamos), já que o timbre da vogal tónica/tônica é aberto naquele caso em certas variantes do português.

    Já agora agradeço imenso a observação que me fez, porque estou a tentar habituar-me ao acordo e escrever segundo o mesmo o que não é tão fácil à primeira tentativa.

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  8. Amigos, amigos... negócios à parte... :))Sempre agradável de ler estas suas histórias. Abraço

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  9. Se todas as injecções fossem assim tão agradáveis de tomar, toda a gente queria estar doente...eu pelo menos, e olhe que detesto ser picada!

    Mais uma deliciosa e bem narrada estória, Constantino.

    O final só veio comprovar aquela velha teoria de que na vida...nada é de graça.:))

    Um beijinho.

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  10. :) F a b u l o s o
    imaginação grandiosa e ponto final!!!


    Uma ligeira observação no que concerne ao acordo ortográfico, na verdade é, e sempre foi, facultativo o acento agudo aquando utilização do verbo no pretérito perfeito, eu própria nunca o fiz, até porque, como diz o Constantino e muitíssimo bem, a própria tónica das palavras se encarrega disso. Onde verifiquei, por grande tristeza minha diga-se, a adesão ao AO foi na palavra "detetadas".

    Bem sei..bem sei que é uma questão de hábito, mas eu ainda estremeço só de pensar que tenho que aderir ao dito!



    Grata. Grata pela partilha dessa imaginação infindável...

    Um beijinho
    da
    Assiria

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  11. Nessas coisas mais vale pagar, que ficar a dever um favor!!
    ... e ele que nisso não dava ponto sem nó!!

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  12. Esse "doutor" era um bonzão!!! Pelo menos fez essa figura, ao oferecer em público a tal garrafa. Depois, lá pensou melhor, e resolveu que era preferível fazer negócio com isso... :)))

    Há gente que não existe!

    Beijocas!

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  13. Mas acabou que ele fez bonito perante à turba!
    :)

    Como diria meu pai: Tem umas que até parecem duas!
    :)))

    Meu caçula é doutor de verdade (cirurgião), vou mostrar o conto pra ele, e sei que ele vai gostar demais, assim como eu gostei.

    Beijokas pra ti,

    Cid@

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  14. Até mesmo ao fim e dada a simpatia com que descreve o "doutor" pensei que o desfecho seria outro e que a generosidade era qualidade inata do dito,,,,bem me enganei...84$? que belo final...sempre a surpreender!

    Abraço
    Manu

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  15. Não há bela sem senão, pena o senão ter chegado à posteriori.

    Gostei, como é habitual!

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  16. Mais uma bela narrativa e nunca fiando numa oferta porque pode sair caro loll

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