quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

191. Vodka, fantasmas e futebol



"Frei Bento Patinho estava sentado de costas para a entrada, num dos bancos da primeira fila. A capela era pequena e não se sabe a que Santo ou Santa ali se fazia devoção. Um altar em mármore cor-de-rosa italiano de Carrara, um crucifixo assente num suporte de pé ao lado do altar e, por detrás, uma Nossa Senhora numa redoma de vidro. D. Bonifácio, quando entrou na capela, fez um rewind à fita magnética das suas memórias. Ali acorria quando brincava às escondidas com os filhos e filhas do caseiro e da cozinheira, ali se refugiava na adolescência onde refletia nas suas crises pseudo-existenciais, ali algumas vezes namorou a filha de D. Verónica de Castro, uma amiga de infância de sua mãe, que amiúde os visitava, ali acompanhava desde criança os seus pais para assistir às missas realizadas pelo padre Augusto Pereirinha, um velho amigo de seu pai que com ele cresceu, ali foi batizado ainda de tenra idade e ali casou com Antonieta, o grande amor de sua vida. Hoje, D. Bonifácio só ali entra para conversar com Frei Bento Patinho, um frade nascido no século XV.

Frei Bento Patinho estava sentado de costas para a entrada. D. Bonifácio aproximou-se. Na capela apenas os seus passos se ouviam. Aristides fcou lá fora pois não iria ouvir o patrão falar sozinho, como ultimamente era costume. Preferiu esquivar-se a tal desiderato. Frei Bento Patinho levantou uma mão e fez sinal para que D. Bonifácio parasse. Ele assim o fez e se quedou em pé, um pouco atrás de Frei Bento. O silencio era tanto que se podia ouvir o zumbir das abelhas. De repente, D. Bonifácio estarreceu. Era noite. Apenas uma lâmpada economizadora que dava uma luz amarelada, uma luz de defuntos, iluminava a pequena nave. O inverno ainda ia a meio. Nem uma flor florira nos vastos jardins da mansão. Corrijo. Alguns malmequeres amarelos e brancos já despontavam. Mas isso era na rua e abertos, apenas durante o dia se podiam ver. Não poderia ser o zumbido de abelhas. Olhou para todos os cantos e fixou o olhar no ouvido direito do frade. Pareceu-lhe ver um ponto negro. Fixou-se nesse ponto e, aos poucos, mesmo com a escassa luz, foi possível ver que se tratava do terminal de um headphone. Era dali que vinha o zumbido. Estaria Frei Bento Patinho a escutar alguma ópera de Wagner em MP3? Uma edição litúrgica em audiobook? As cantatas de Bach? Os madrigais de Monteverdi? O homem que sou do Tony Carreira? Pablo Alboran e Carminho em dueto?

As dúvidas só se desfizeram quando, num repente, o frade salta do banco aos pulos e aos gritos de golo, golo, goooooolllllooo!!! Frei Bento Patinho estava a ouvir um relato de futebol."

Uma enorme gargalhada ecoou naquele salão. Estava tudo em suspenso com mais este episódio contado por D. Micá quando a nossa contadora de histórias se sai com esta de que o fantasma de um frade do século XV gostava de futebol. Foi então tempo para uma pausa e Eduardinha serviu as bebidas onde pontuou o leite magro com chocolate e um licor conventual de avelã.  

Perguntou então o Pires Cunha se podia contar um episódio relacionado com um jogo de futebol o que deixou a Geninha, que não gosta nem de ouvir na palavra, muito enfadada a perguntar a toda a gente «onde é que está a vodka? onde é que está a vodka?» e a Marta Caracinha a afastar-se e a dizer ao Pedro Rebocho que se o serão ia acabar em coisas da bola o melhor era irem embora e sugeriu-lhe as docas, ao que ele respondeu «está bem». Apesar destas e de outras desistências, como o serão mal tinha começado, lá ficaram alguns para ouvir a história do Pires Cunha. O Pires Cunha tem ar de poeta. Usa sempre camisas com gola à padre, compradas na Zara, aliás aproveitou os saldos de janeiro para comprar duas em azul bebé com risquinhas, mas ligeiramente diferentes, porque uma tem bolso de peito e a outra não tem  e ainda uma branca com duplos botões nos punhos, que lhe dá assim um ar de não-sei-o-quê. Raros são os dias em que não coloca uma écharpe, quase sempre de algodão frisado com franjas, dá-lhe duas voltas sem apertar no pescoço e faz-lhe descair as duas pontas para trás. Uns dias usa boina galega preta, outros boina oitavada de tweed em xadrês. Por acaso hoje não usava nem uma coisa nem outra. Vestia umas calças pretas de ganga elástica, uma camisa branca, com gola à padre, claro está, debruada com um friso de um material plástico, quer à volta da gola quer acompanhando a costura onde se situam as casas dos botões, uma écharpe vermelha e branca aos quadrados, estilo guerrilheiro palestiniano e um porkpie bordeaux na cabeça que fez questão de não tirar durante todo o serão, apesar de no salão de D. Micá, não fazer nem sol nem frio e a lareira estar a crepitar desde as seis da tarde para dar conforto à tertúlia. E quando o Pires Cunha se levantou para tomar um lugar em que ficasse virado para todos os que o queriam escutar, ouviu-se a voz do Eduardo Aragão, que como se sabe tem uma vida de boémio de que lhes darei conta noutra altura, a desafiá-lo «Ó Pires, tu com esse chapelinho hoje recitavas-nos era um poema». E o Pires Cunha acedeu, prometendo que contaria a história da bola noutra ocasião. A Marta Caracinha voltou a despir a jaqueta grená com pele sintética a imitar coelho na gola e a Geninha virou de seguida dois shots de vodka. Já não prestou atenção à poesia uma vez que adormeceu a um canto sentada no chão.


4 comentários:

  1. Imprimi todos os capítulos em atraso e estive ontem a ler e depois deixei-os na minha mãe que também adora as tuas histórias:)

    Palavras para quê? só sei que és um magnífico narrador e cá continuarei nestas odisseias, algumas de tirar o fôlego de tanto rir!

    Beijos e não desistas

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  2. Constantino, meu amigo, para mim o mais difícil nestes serões em casa da D. Micá, é saber quem é quem, tanto mais que em cada episódio há mais gente a frequentar a mansão.
    Felizmente, tenho como um quase velho conhecido, o Eduardo Aragão, senão estaria perdida no meio de tanta gente desconhecida.
    Bom, mas desse, de vida boémia e um pouco pervertida, nos darás conta um dia. Assim, mais ou menos, como nos deste conta de quem matou a tal bailarina. Ainda te lembras dela?
    :)
    Beijos e siga a farra!!

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    1. Minha querida Janita,
      no caso da Isabella aquilo descambou; tive de parar de escrever no blog para deixar algum suspense para o livro. "Sete facadas e carapaus de escabeche" foi editado em Dezembro, já está em algumas livrarias e terá uma sessão especial de apresentação aqui em Almada no próximo dia 21. Ainda não o leste? Imperdoável! LOL.
      Grande beijoca.

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