quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

186. As passas de D. Micá ou uma noite de Réveillon com fantasmas



Uma sala com pouco mais de vinte e cinco metros quadrados ostentava um bar, todo em mogno, fazendo um recanto onde algumas dezenas de copos se suspendiam de um teto incorporado e onde uma lanterna com lâmpadas de halogénio fazia refletir o brilho imaculado do cristal de chumbo. Nas prateleiras, garrafas com os mais finos whiskies, maltes de 30 anos, blendedes das mais diversas origens, alguns bourbons e vários irlandeses. Numa secção reservada aos nacionais, não escasseavam os Porto e os Madeira, alguns moscatéis de Setúbal, nomeadamente roxos e outros do Douro e, como não podia deixar de ser, o nosso bem conhecido Licor Beirão. Noutra prateleira perfilavam-se as cachaças, vodkas, runs e aguardentes velhas e mais umas quantas bebidas que nem vale a pena referir, tal é a diversidade de espirituosas que D. Micá faz questão que constituam recheio do seu famoso bar. Como era de se prever, estava reservado algum espaço para umas garrafinhas muito simpáticas de 0,25 l contendo leite magro com chocolate, um ex-libris da Fundação. Um sofá em forma de círculo e uma mesa de centro em pau-brasil completavam a mobília, com dois bancos altos junto ao balcão do referido bar.

Sentada num destes bancos, D. Micá, vestido vermelho comprido com uma racha lateral que surgia do tornozelo e terminava na anca, apesar dos folhos translúcidos, deixava ver as rendas das meias pretas. Nos pés os sapatos com salto de agulha de doze centímetros eram de verniz e o seu longo cabelo, penteado por Felisbela, a sua cabeleireira preferida do salão das Amoreiras, culminava em duas loiras tranças enroladas e cruzadas na testa como se fosse uma grinalda vitoriana. Nos pulsos, várias pulseiras de ouro e prata, em aros entrecruzados cujo blaisé do conjunto, fazia contraste com uma gargantilha preta incrustada de brilhantes Swarovsky e discretos brincos com aplicações de fino cristal. Na mão direita fazia girar, em gestos suaves, um copo em forma de flute, meio cheio de D. Perignon, ora cheirando ora degustando, com elegância, o seu conteúdo. A mão esquerda, com um anel solitário no anelar e um relógio Gucci com incrustações de diamante, deambulava de um lado para o outro ou em círculos, acompanhando o ritmo do conto com que nos tem vindo a entreter e que também nos brindou naquela noite de réveillon.

«De repente, como que por magia, a trovoada parou e nem mais uma gota de água caiu da negro cinzento dos céus. Penafiel sossegou em cima do tapete e Gatófio foi-se enrolar nas suas patas dianteiras. D. Bonifácio, tentou encetar o diálogo com Antonieta. Ou com o seu fantasma para se ser mais preciso.
- O que queres com essa caixa?
Fez-se um silêncio sepulcral. Penafiel rosnou. Gatófio nem se mexeu. D. Bonifácio, pacientemente, esperou uma resposta. Uma forte corrente de ar, de desconhecida origem, apagou o castiçal que estava em cima do aparador. Então uma voz cavada, com o timbre da outrora voz de Antonieta mas com um assustador vibrato, respondeu.
- São os teus restos.
Não se notou nenhum ar de perplexidade no rosto de D. Bonifácio. Bateu três vezes com a bengala no chão. Penafiel ergueu-se e espreguiçou-se. Uma buzina de carro escutou-se, vinda algures do portão de ferro. Um fogo-fátuo acendeu-se sobre a cabeça de Antonieta e Gatófio soltou uma gargalhada, uma humana gargalhada, talvez melhor dizendo, uma sobre humana gargalhada e o som de um violino, tocando uma música triste começou a encher o compartimento.
- O que queres de mim, Antonieta? – Perguntou, mantendo uma calma que ora parecia real ora se assemelhava a uma calma aparente.
- Tens de te confessar - disse-lhe Antonieta, e o som do violino foi agora substituído por cânticos gregorianos como se a mansão de D. Bonifácio fosse agora um enorme convento.
Gatófio voltou a rir-se e Penafiel ladrou-lhe. Gatófio esticou as quatro patas e elevou a cauda que, entretanto, parecia um escovilhão.
De novo se ouviu a buzina do carro, agora acompanhado de mais umas quantas buzinas de outros carros estacionados na ampla garagem da mansão. Antonieta sobrevoou o chapéu de D. Bonifácio e dirigiu-se à janela. A noite estava calma, mas Aristides estava com um apito na boca e fazia gestos como que a regular o trânsito. Uma música brasileira substituiu o cântico gregoriano.»

D. Micá calou-se. Pediu às quatro pessoas que a ouviam com atenção e interesse o desenrolar da fantasmagórica e, mais tarde, ver-se-á, arrepiante história de D. Bonifácio da Assunção, paciência, mas naquela noite ela não estava em condições de continuar a narração. Estava preocupada com outra coisa. Faltavam cinco minutos para a meia-noite e Eduardo Aragão ainda não tinha chegado. E se apesar do champanhe e de uma mesa bem farta, com leitão da Bairrada e camarões de Madagáscar, champanhe genuíno e algum, pouco, leite magro com chocolate, se Eduardo não chegasse antes das doze badaladas com a caixa de passas de uva sem grainha que ela lhe tinha encomendado, aquilo não era meia-noite digna de uma passagem de ano, não era nada. Mas antes que o anúncio da Raposeira ou da Coca-cola, do Óleo Fula ou da Aqua de Gio passassem nos écrans das televisões, interrompendo a contagem decrescente, a campainha da porta tocou.


1 comentário:

  1. já estava com saudades dos textos, sempre bem arquitectados com a ironia adequada... de repente, julguei que a Micá era a Pepa, a fedelha ridícula...

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